“Pobres”, programas sociais e apostas no cenário político brasileiro
Em nossa sociedade, demonstrar padrões de comportamento e de consumo que contrariem a imagem da pobreza é considerado uma espécie de desvio de caráter pela população de baixa renda
A despeito da recriação do Programa Bolsa Família em 2023, o significado do termo “pobres”, enquanto descritor moral de condições vividas e facilmente identificáveis com certos padrões, formas e modos de viver e de consumir, intrinsecamente relacionadas ao público deste e de outros programas sociais, parece não poder mais ser recomposto aos mesmos padrões de 2003.
Naquele período, quando a maioria dos programas sociais de combate à pobreza e à fome foi criada, ocorreu uma confluência de percepções, valores e pautas que pressionaram não só as possibilidades do formato desses programas e ações sociais, mas também certo entendimento social em torno de quem são e como vivem os trabalhadores considerados “pobres”. De modo mais objetivo, cortes de renda foram definidos para quantificar essa parcela populacional e alimentar os índices de desenvolvimento econômico e social brasileiros.

Durante a campanha eleitoral de 2024, a impressão de um dos candidatos à prefeitura de São Paulo capturou com bastante clareza a impossibilidade de recomposição do termo aos mesmos patamares dos governos petistas anteriores. Guilherme Boulos, em entrevista na qual apresentou um balanço da campanha do PSOL e do desempenho da esquerda em geral, afirmou à jornalista Mônica Bergamo, em entrevista à Folha de S. Paulo, que a candidatura não havia conseguido dialogar com o que o candidato chamou de “nova periferia”, pois embora sua agenda eleitoral e sua própria imagem sejam associadas à defesa “dos pobres”, tanto pela direita, quanto pela esquerda, os trabalhadores localizados nessas regiões consideradas periféricas não se veem como “pobres”. Boulos cita o exemplo dos trabalhadores autônomos que, mesmo sem direitos e quantitativamente em linhas de renda que os definem como “pobres”, não se veem dessa maneira. O então candidato atribuiu a desconexão do diálogo entre projeto eleitoral de governo e esses trabalhadores a uma mudança nas relações sociais com foco no trabalho.
Entretanto, aspectos como a desregulamentação do trabalho e, portanto, dos direitos trabalhistas, travestidos de empreendedorismo, parecem ser apenas parte do jogo colocado. Há significativa literatura sobre auto percepção de pobreza em beneficiários de programas sociais e de não beneficiários em relação ao público dos programas sociais que indica, desde, pelo menos, os anos 2010 em diante que, em geral, pessoas que são beneficiárias de programas sociais, ou que vivenciam privações materiais agudas em diferentes momentos da vida, não se identificam como “pobres”. Em pesquisas que abordam o tema, grosso modo, pobreza, em geral é um fato associado à doença, às oportunidades de emprego indisponíveis, à sazonalidade de serviços, ou mesmo à uma série de infortúnios que podem ocorrer ao longo da vida e sob os quais se tem pouco ou nenhum controle.
Ainda em 2018, na esteira da necessidade da legitimação da retirada e da perda de direitos trabalhistas derivados da reforma trabalhista levada à cabo pelo governo Temer, a extrema direita soube surfar com maestria nesse entrecampo, colando a imagem do “pobre” aos truísmos e julgamentos morais que circulam em nosso tecido social. Entre 2019 e 2022, o que antes era narrativa de campanha e um amontoado de fake news foi institucionalizado enquanto um fato.
A pobreza e, portanto, os “pobres” eram vistos preguiçosos, com muitos filhos, os que não queriam trabalhar. Entretanto, construiu-se uma exceção importante: esta era apenas uma parcela dos “pobres”, havia ainda aqueles outros “pobres” que, beneficiários de programas como o Bolsa Família – então prestes a ser extinto em 2021 – que gostariam de trabalhar, mas eram “escravizados” – termo utilizado por Jair M. Bolsonaro, do PL, em peça de campanha em 2022, pelo Estado e pelos governos anteriores, pois, caso conseguissem um emprego perderiam o benefício.
Àquela altura, Bolsonaro apostava com a percepção de consumo e de meritocracia, ressoando uma percepção mais generalizada de que seria possível “sair” da condição de pobreza com as próprias mãos, ou mesmo com certo “esforço individual”, tal como o extinto Auxílio Brasil postulava em lei. Suas falas motivavam, não só a desmoralização da rede de assistência social brasileira – parte importante de seu projeto de governo – mas também reviravam consensos que moralizaram por décadas a ideia de que é papel do Estado prover os mínimos assistenciais para que as pessoas possam sobreviver, suportando assim, a legitimação social do encolhimento e da perda de direitos sociais para e entre trabalhadores.
A mudança de percepção, ou mesmo nas relações sociais e de trabalho, passa por esse caldo no qual consensos anteriores em torno da noção de “pobreza” precisaram ser substituídos por outros que permitissem manejar as parcelas populacionais encontradas por Boulos nas periferias em 2024, e que foram mais fortemente afetadas, primeiro, pela desregulamentação das relações de trabalho. Ademais, a generalização do Auxílio Emergencial e, em seguida, do Auxílio Brasil pretendia forjar uma base eleitoral que se identificasse com o ideal liberal tresloucado da direita brasileira: como atender, com o Auxílio Emergencial e com o Auxílio Brasil, trabalhadores que nunca haviam se identificado como pobres e nunca haviam sido atendidos por programas sociais, mas que passaram a precisar do Estado, em meio a uma narrativa de que qualquer nível de “dependência” só corria com aqueles que não se esforçavam o suficiente?
Foi um processo de legitimação que contou com a narrativa de que o Estado deve “ajudar” pontualmente os que precisam, mas nunca se responsabilizar pelos indivíduos – já que a ideia de coletividade não importava naquele contexto. Os “invisíveis” deveriam ser “bancarizados”, a vida e os direitos sociais, financeirizados, os empréstimos, o consignado e a viração estariam disponíveis aos que quisessem se esforçar individualmente.
No fim de setembro de 2024, a repercussão de uma nota técnica elaborada pelo Banco Central a pedido de um senador, alardeou que uma proporção dos benefícios do Programa Bolsa Família estavam a ser utilizadas em jogos de azar virtuais, a nota estimou que “em agosto de 2024, 5 milhões de pessoas a famílias beneficiárias do Bolsa Família (PBF)” haviam enviado transferências à empresas de apostas, com uma mediana estimada em R$100,00 por pessoa, sendo 4 milhões de pessoas as responsáveis pelo recebimento do benefício. O fato é lamentável em um país que ainda possui parcela expressiva da população em condição de fome e em meio a um cenário no qual as disputas pelo corte de gastos em políticas e programas sociais avançam, não cabem relativizações sobre isto. Porém, o assunto se espalhou rapidamente e gerou danos em torno da reconstrução do programa, os quais se tenta controlar, acertadamente, com o estabelecimento de comissões e grupos de trabalho governamentais focados na regulamentação, proibição e impedimento das apostas com o bloqueio de cartões do programa. Entretanto, a notícia provocou dano em torno da imagem da eficiência do Bolsa Família a partir do retorno ao debate público de opiniões e impressões morais, que intencionam dizer sobre o uso do dinheiro de programas do tipo por beneficiários.
Este debate não é necessariamente uma novidade, mas é um fato agravante em uma conjuntura na qual a extinção de direitos e a disputa pela democracia ainda se fazem presentes. Julgamentos sobre a forma como se manejam recursos domésticos sempre tiveram um lugar reservado quando se trata de trabalhadores identificados como ‘pobres’. A própria longa – ainda que interrompida – existência do Bolsa Família decorre de seu formato eficiente de gestão econômica, com o acompanhamento dos beneficiários, garantindo que os recursos sejam direcionados de modo a provocar a minoração da pobreza. Em um país que se quer desenvolvido, é preciso fazer algo com os de nós que não podem ser empregados, como dizia Fernando Henrique Cardoso durante seu governo nos anos de 1990, em um contexto de aprofundamento do desemprego e das políticas neoliberais no país. O processo de reformas em torno dos mecanismos de acesso a direitos sociais, iniciado após a redemocratização, e dos quais resultam a maioria dos programas sociais atuais, nunca foi isento de intenso fiscalismo, em grande parte fincado em percepções morais.
Demonstrar padrões de comportamento e de consumo que contrariem a imagem da pobreza parece ser algo considerado uma espécie de desvio de caráter reservada aos “pobres”, esta é uma percepção que ocorre de maneira generalizada em nossa sociedade. Ser identificado como “pobre” gera um estigma, para lembrar as reflexões de Eduardo Suplicy, e apesar de ser possível assim identificar economicamente parte da população, a elaboração que os sujeitos fazem sobre sua condição, quando questionados, por exemplo, por pesquisadores, em geral, diz respeito ao trabalho, ao esforço, as tentativas de equilíbrio do orçamento familiar e assim por diante. A percepção de que a condição de empobrecimento está colada à sua condição de classe e se manifesta em baixas condições de vida, se torna bastante visível desta perspectiva.
O ponto é que a ideia de tecnicismo e neutralidade que mediam essa identificação a nível institucional de governo, para que a focalização de programas sociais possa ser realizada naqueles que são identificados como “pobres”, vestem bem essas elaborações e mediações de termos que caracterizam aspectos da sociedade e que só podem ser notados a nu. Com a repercussão das apostas realizadas por beneficiários centrada no volume de recursos transferido a empresas privadas e com atividades não regulamentadas, os dados sobre a idade dos possíveis apostadores parecem não ter encontrado espaço no debate público para serem vistos mais de perto. A nota técnica 513/2024-BCB/SECRE indicou que o perfil dos apostadores estava entre 20 e 30 anos, com o aumento do valor médio mensal em crescente com a idade. É possível que o perfil jovem indique avaliações e percepções sobre as possibilidades de futuro e de melhoria de vida, da qualidade da sociedade, no presente e no futuro, disponível a essa parcela populacional que, impulsionada pela propaganda dos jogos de azar virtuais, apostou na possibilidade, ou na sorte, de um enriquecimento rápido.
Até pelo menos meados de 2016, havia um horizonte de mobilidade social que orientava as possibilidades de acesso ao emprego, saúde, educação e, com sorte, aposentadoria. Esse horizonte foi nublado a partir de 2016 e apagado entre 2019 e 2022. Cabe, então, a pergunta sobre quais são as possibilidades e oportunidades disponíveis para essa faixa da população entre 20 e 30 anos. Por correlação de dados apresentados na nota técnica do BC, intui-se que tais sujeitos se localizam em franjas periféricas. A ‘nova periferia’ supõe-se que tem poucas possibilidades de vislumbrar, desde o presente, a melhoria futura de condições materiais.
O ato de apostar, pode então não parecer resposta individual tão deslocada em um contexto de desesperança futura. As respostas que têm sido ofertadas para os problemas dos sujeitos empobrecidos é que parecem, portanto, assim estar. Em um processo no qual os sentidos do coletivo dão espaço ao empreendedorismo individual e no qual os “pobres” são generalizados e identificados por meio de percepções morais, direcionar a ação política para parcelas específicas da população, sem recuperar a universalidade imbuída da solidariedade social que pode ser estruturante da sociedade e do acesso e garantia de direitos parece não funcionar mais tal como antes.
Há um esgotamento do termo em sua capacidade de vocalizar um projeto de sociedade antes capaz de azeitar a garantia de condições mínimas de sobrevivência e de justiça social. Recapturar o termo e encontrar o que temos em comum enquanto trabalhadores no interior de um projeto político de sociedade parece ser uma melhor aposta do que tatear em busca dos “pobres”.
Denise De Sordi é historiadora, Dra., em História Social e especializada em políticas e programas sociais e nas relações entre Estado e sociedade no Brasil contemporâneo. Pesquisadora do Programa de Pós-Doutorado em Sociologia da Fflch/USP.