Poder e desenvolvimento: os ponteiros do mundo
Nestas duas primeiras décadas do século XXI, as economias nacionais das grandes potências voltaram a apelar para o Estado e a assumir a defesa explícita da proteção de suas economias e da promoção de grandes investimentos em infraestrutura e inovação tecnológica. Acompanhe no novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea
“Em última análise os processos de desenvolvimento econômico são lutas de dominação; e os interesses da nação constituem-se nos últimos e decisivos interesses que devem orientar sua política econômica.”
Max Weber, Escritos Políticos I, Folios Ediciones, México, 1982, p, 18[1]
A história do desenvolvimento econômico e da origem da teoria econômica clássica possui três dimensões que costumam ser convenientemente esquecidas pela “narrativa liberal”.
A primeira é que o Estado ocupa um papel estratégico no desenvolvimento econômico das nações. Sem o poder estatal não haveria as rotas comerciais das cidades-estados italianas, a expansão colonial ibérica, a revolução comercial holandesa, assim como as revoluções industriais inglesa, francesa e mais tarde a norte-americana. Mais ainda, sem o poder estatal não haveria o desenvolvimento tardio da Alemanha, Rússia e Itália, ou o desenvolvimento a convite de Japão e Coreia do Sul, para não mencionar os casos recentes de planejamento estatal exitoso na China e no Vietnã neste início do século XXI.
A segunda dimensão histórica oculta pelo liberalismo econômico é a do nascimento da economia política clássica, que está ligada diretamente à necessidade dos reinos e primeiros Estados em aumentar o excedente econômico para atender necessidades fiscais, territoriais e navais, além de obrigações com a garantia de alimentação e saúde para os cidadãos, como fica explícito nas recomendações do pioneiro William Petty ao Estado inglês.
A terceira dimensão esquecida pelos liberais é que a própria teoria econômica do livre-cambismo e do livre-comércio, de Adam Smith e David Ricardo, só surgiu e se impôs como uma “teoria hegemônica” e como uma “política econômica vitoriosa” depois que a Grã-Bretanha já havia conquistado Irlanda, Escócia, vencido a “Guerra dos 7 Anos” e lançado o seu controle colonial sobre os Estados Unidos, o Canadá e a parte mais rica da Índia, mantendo uma rigorosa proteção sobre a sua indústria naval e têxtil.
Desde sua origem, a teoria econômica liberal foi sempre a teoria adequada às necessidades e às possibilidades das grandes “potências dominantes”, dentro do sistema mundial. E, mesmo depois de alcançar o topo da hierarquia econômica mundial, foi o Estado dessas grandes potências que seguiu definindo – em última instância – a “grande estratégia” de suas economias nacionais, através de seus projetos de expansão colonial, de avanço industrial, além de pacotes de investimentos em infraestrutura, ciência e tecnologia.
Apesar disso, foram sempre essas mesmas grandes potências, em particular Grã-Bretanha e Estados Unidos, que pautaram o debate sobre a política econômica durante o século XX, com a defesa da teoria e das políticas liberais necessárias para a manutenção da inserção primário-exportadora da periferia. A despeito de que estas mesmas economias centrais adotem políticas econômicas de corte mais liberal-ortodoxo ou mais keynesiano-heterodoxo, dependendo dos seus próprios ciclos e crises econômicas, e em função de suas guerras, catástrofes, ou desafios à segurança nacional.
Como é o caso dessa conjuntura atual em que os próprios Estados Unidos, a potência líder do mundo liberal, voltaram a lançar mão de políticas intervencionistas e a adotar – de forma explícita e declarada – o nacionalismo econômico da Alemanha do século XIX, da Rússia do século XX e da China do século XXI.
Tudo isso no momento em que o Brasil entrou em um processo de autodestruição, análogo ao da Rússia dos anos 1990, conduzido por um grupo de militares e financistas fanatizados pelas ideias econômicas ultraliberais e ultrapassadas da Escola de Chicago.
Desde a crise financeira de 2008, culminando na pandemia de Covid-19 a partir de 2020, passando pelo acirramento da guerra comercial e tecnológica entre Estados Unidos e China, pelo aprofundamento das desigualdades de renda e riqueza, pela agudização das emergências climáticas e ambientais e pela possibilidade de uma nova guerra na Europa Central, não são poucos os eventos desse início de século XXI que têm demonstrado um novo papel do Estado na economia.
A grande crise de 2008 foi enfrentada com estratégias de big government e de big bank que envolveram intensa ação estatal por meio de flexibilização dos fundamentos da política macroeconômica neoliberal, com redução dos juros, ampliação de oferta de moeda, suporte financeiro, estímulos fiscais, desonerações, investimentos públicos, gastos sociais, além de controle cambial e de capitais em alguns países.
Passada uma década, em 2018, o acirramento da guerra comercial entre Estados Unidos e China fez com que o Estado norte-americano impusesse tarifas sobre cerca de US$ 250 bilhões em produtos chineses, enquanto o Estado chinês reagiu impondo taxas sobre cerca de US$ 110 bilhões em mercadorias norte-americanas. As ameaças tarifárias impactaram, principalmente, os mercados de telecomunicações, processadores, circuitos e peças de computadores. Por trás dessas tensões, se revelava também uma disputa tecnológica e empresarial em torno das inovações e infraestruturas relacionadas à internet 5G, cujo desenvolvimento também só foi possível graças à atuação do Estado nas áreas industrial e de CT&I.
As crescentes instabilidades financeiras e monetárias acompanhadas das assimetrias produtivas e comerciais intensificaram a desigualdade de renda e riqueza. Atualmente, cerca de 520 mil bilionários, o grupo do 0,01% mais rico do planeta, detêm mais de 10% da riqueza global, enquanto o grupo dos 50% mais pobres fica com apenas 2% do montante. Preocupados com como essa desigualdade pode bloquear a mobilidade social, interditar a ideologia da ascensão pelo mérito individual e desaguar em apatia ou caos social, milionários de diversos países defendem taxações sobre as próprias fortunas e dividendos, de modo a defender o fortalecimento do Estado.
As emergências climáticas e suas causas antrópicas tornaram o aquecimento global e os eventos ambientais extremos parte da rotina da população mundial. Estiagens prolongadas, enchentes recordes e estações desordenadas são apenas algumas das manifestações de como o padrão de produção, circulação e consumo de mercadorias pode colapsar os sistemas físicos e biológicos que dão suporte à vida humana no planeta. A natureza sistêmica desses problemas impõe que eles sejam tratados por meio de uma governança interestatal e internacional mais integrada e cooperativa, além de exigir metas nacionais de redução, por exemplo, da emissão de gases do efeito estufa (GEE) que só podem lograr êxito com coordenação e planejamento estatais.
A pandemia de Covid-19, mais recentemente, também explicitou a necessidade de intensa atuação estatal, tanto com o fortalecimento dos sistemas de saúde e seguridade e de programas de proteção social do emprego, do trabalho e da renda quanto por pacotes de apoio a empresas, de reconversão industrial ou medidas estruturais de reindustrialização.
Nos Estados Unidos, o Plano Biden aposta em um pacote de medidas emergenciais, de geração de emprego e de reconstrução da infraestrutura com investimentos que podem ultrapassar até mesmo o antigo New Deal. Na China, o projeto da Nova Rota da Seda e sua etapa “Made in China 2025” buscam consolidar o protagonismo da estrutura produtiva chinesa na indústria 4.0. A aliança industrial franco-germânica, por seu turno, procura acelerar a trajetória do desenvolvimento industrial em parte da Europa. Não é diferente com a Rússia e sua aposta estatal, por exemplo, na expansão da infraestrutura de gás e logística.
Além disso, organismos internacionais como o FMI têm recomendado regras fiscais mais afeitas às políticas públicas. O próprio Banco Mundial sugere maior atenção sobre os programas de proteção social, de geração de trabalho e emprego e de garantia de renda que só podem ser assegurados por meio de políticas públicas promovidas pelo Estado. A Unctad reconhece que o sistema global de produção internacional está passando por uma nova revolução industrial, com crescente nacionalismo econômico e o imperativo da sustentabilidade ambiental. Essas mudanças terão como principal resultado o maior fortalecimento das políticas industriais e de inovação, considerando setores estratégicos também articulados pelo Estado.
Em uma publicação especial recente, até mesmo a revista The Economist reconhece que a economia internacional está entrando em um novo período de mais intervencionismo estatal. Entre 2000 e 2022 é crescente em países desenvolvidos e emergentes a participação de investimentos governamentais, fundos nacionais soberanos, fundos públicos de pensão e empresas estatais. Segundo a publicação: políticas industriais, proteções trabalhistas, legislações ambientais, tributações sobre empresas e fortunas e regulamentações antitruste devem estar cada vez mais presentes no arco de atuação estatal dos países.
Depois da virada liberal-conservadora dos anos 1970-1980, a utopia da globalização se transformou na ideia-força da expansão imperial dos Estados Unidos, país vitorioso na Guerra Fria. Mas o que de novo foi ocultado pelos ideólogos liberais, é que esta nova hegemonia do pensamento econômico liberal veio junto e é indissociável de um processo acelerado de acumulação de poder entre as grandes potências e de polarização de riqueza entre nações.
Nestas duas primeiras décadas do século XXI, as economias nacionais das grandes potências voltaram a apelar para o Estado e a assumir a defesa explícita da proteção de suas economias e da promoção de grandes investimentos em infraestrutura e inovação tecnológica, com o objetivo de enfrentar os grandes desafios, guerras e catástrofes desse início de século, e com a intenção vencer ou ultrapassar os seus grandes concorrentes nacionais.
Tudo isto para escândalo dos economistas liberais, da elite financeira e dos generais brasileiros, que faz algum tempo passaram a andar para trás, com algumas décadas de atraso, com relação aos ponteiros do mundo.
José Luis Fiori é professor permanente do programa de pós-graduação em Economia Política Internacional (PEPI/IE/UFRJ), coordenador do Laboratório de Ética e Poder Global (UFRJ) e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
William Nozaki é professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e coordenador técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia Bacelar e William Nozaki.
[1] Tradução livre dos autores.