Política e economia, outra vez articuladas
No poder, Lula novamente identificou como crucial o planejamento das atividades econômicas e sociais. O PAC implementa o que os críticos ao neoliberalismo exigiam há muito tempo – investimento em infraestrutura produtiva e social – e algumas das empresas brasileiras se tornaram importantes global players
O pronunciamento de Lula no dia 7 de setembro, entrando na trilha de Getúlio Vargas, propõe nacionalizar o pré-sal e dá início a uma discussão sobre o novo marco regulatório para os setores de mineração e energia, o que coloca o Estado novamente no centro das reflexões sobre o futuro do Brasil.
Para entender a situação brasileira atual e os rumos neogetulistas do governo, me parece imprescindível levar em consideração tanto o longo amanhecer da modernização socioeconômica articulada pelo Estado, como lembrar o desencanto generalizado vigente na América Latina no fim da década passada, quando ninguém esperava mais nada da política e o continente parecia afundar na dependência externa.
Enquanto o neoliberalismo continua dominante nos países centrais, ele convive enfraquecido com um novo tipo de capitalismo de Estado na América Latina, já que as vitórias de Chávez, Kirchner e Lula, seguidas de outras, mudaram as correlações de força em diferentes escalas.
Desde a independência, em 1822, o Estado brasileiro cumpriu diferentes papéis. Até à crise mundial de 1929 exerceu uma regulação liberal orientada para o mercado externo, que coincidiu com a constituição da nação brasileira e do primeiro Estado desenvolvimentista em nível regional. Depois, exerceu uma regulação baseada no desenvolvimentismo nacional-estatal, e a hegemonia do capital industrial resultou em avanços sociais, econômicos e políticos substanciais. O Estado nacional articulou um processo de substituição de importações, que não se limitou à indústria pesada e à substituição de bens de consumo. Desde os anos 1970 surgiram complexos industriais – petroquímica, agroindústria, militar-industrial e de alta tecnologia – que ampliaram a estrutura produtiva nacional. Finalmente, com o golpe contra Allende em 1973, no Chile, surgiu a regulação neoliberal baseada na dominação do capital financeiro. A financeirização levou à desindustrialização, a privatizações, ajustes fiscais e a uma inserção liberal-periférica. Hoje, discute-se – em nível global – se 2008 representa outra ruptura, encerrando o domínio neoliberal, reintroduzindo políticas keynesianas e até protecionistas.
Está claro que em momentos de crise, como atualmente, as opções para o futuro se abrem e maiores mudanças são possíveis. Porém, tudo indica que o capitalismo continua bastante vivo mundialmente, ainda que cheio de contradições internas e minando as bases ecológicas. O que está em pleno curso é o declínio do neoliberalismo, porém este declínio será desigual e contraditório.
Os países centrais estão entrando num círculo vicioso como aquele que a América Latina viveu na década de 1990: ajuste fiscal, que cria recessão, que reduz as receitas tributárias, que faz necessário novos ajustes. Na Europa e nos EUA, o neoliberalismo continua dominante como ideologia. Mesmo que ele não seja capaz de atingir os próprios objetivos de estabilidade e crescimento, continua tendo – e é nisso que reside o núcleo da ideologia neoliberal como dominação de classe – horror a qualquer política redistributiva.
Estagnação e investimentos tímidos
Os detentores de riqueza travam uma luta eficaz, pois conseguiram, com poucos conflitos abertos, reduzir, nos últimos 30 anos, a participação dos salários na renda nacional, de 70% para 60% na maioria dos países ricos. Mas o resultado é paradoxal: por causa da estagnação dos mercados internos – resultado da crescente concentração de riqueza e poder –, os investimentos são tímidos, o que reduz, no longo prazo, a competitividade das empresas europeias. Certos países, como a Inglaterra, já quase não dispõem de uma indústria nacional, centrando-se no debilitado capital financeiro. Endividados e estagnados, Europa e EUA estão fragilizados para manter a geoeconomia tão hierarquizada como nos 500 anos passados. Enquanto nos países ricos, a mais recente previsão da OCDE prevê até 57 milhões de desempregados e uma taxa de desemprego duplicada até 2010, no Brasil espera-se o aumento de um milhão de empregados formais em 2009.
Mais uma vez a supremacia de um capitalismo de Estado sobre o capitalismo liberal está forçando mudanças profundas na hierarquia geoeconômica. Aconteceu com as economias retardatárias dos EUA, do Japão e da Alemanha, no século XIX. Hoje, de novo, o mundo está começando a ficar multipolar e as baleias da China, Índia, Rússia e Brasil começam a jogar um papel mais importante, o que se percebe com a entrada desses países como credores do FMI, o surgimento dos encontros do G20 como novo palco da geopolítica e a insistente crítica ao dólar como moeda de reserva. Essas mudanças, em muitos aspetos ainda incipientes, têm suas raízes num movimento dialético entre fatores externos e internos às respectivas nações e blocos regionais.
Todas as baleias, de forma diferente, dão um papel mais central ao Estado que o previsto no ideário liberal. E têm consciência que seu poder não reside no capital financeiro, mas na industrialização, tanto das riquezas primárias quanto de alta tecnologia. Desenvolvimento industrial requer a formação de território via um Estado interventor, já que o desenvolvimento industrial em um mercado local é pré-requisito fundamental à viabilidade das empresas nos mercados externos.
O Estado desenvolvimentista brasileiro tem sua origem no Rio Grande do Sul, onde a ditadura de facto de Castilhos e Borges impôs, entre 1893 e 1930, um projeto desenvolvimentista na tradição do positivismo de ordem e progresso. Sobre o ethos do bem-estar geral e impondo limites à oligarquia rural, o governo modernizou o Estado regional segundo os interesses do desenvolvimento capitalista: foi introduzido o imposto territorial e o ensino primário público e subsidiou-se a infraestrutura e a industrialização.
No plano nacional, o Estado desenvolvimentista origina-se sob Getúlio Vargas, outro gaúcho que usou as técnicas de planejamento econômico e social para modernizar a economia e incorporar novas camadas à sociedade de consumo. Vargas, governando tanto como ditador quanto como presidente democraticamente eleito, entendia democratização como um processo abrangente que deve partir de uma igualdade mínima dos cidadãos e uma democratização socioeconômica. Foi um projeto republicano e em prol de uma cidadania plena, tanto política como social. Criou-se a estrutura do Estado desenvolvimentista que, mediante “fuga para a frente”, preservou a estrutura socioeconômica desigual, mas conseguiu incorporar parte da classe trabalhadora.
Na presidência de Collor e FHC esse Estado “varguista” foi desmantelado, até que Lula reiniciou um novo ciclo de fortalecimento das estruturas estatais, reduzindo ao mesmo tempo o endividamento do setor público em relação ao PIB, de 51,3% (12/02) para 37,7% (11/08). Por causa da crise, subiu a 44,1%, patamar muito abaixo do endividamento na Europa. Ao mesmo tempo, os bancos públicos BNDES, CEF e BB, maior banco brasileiro, possibilitam o apoio sistemático às empresas nacionais, ampliam a infraestrutura além das fronteiras nacionais, para viabilizar o Mercosul como mercado comum, e permitem a integração ao sistema bancário das camadas sociais mais pobres.
Como bem analisa Celso Furtado, o Brasil tentou avançar de uma economia reflexa, que somente produz o que o centro precisa, a uma economia orientada para o próprio território e as necessidades da sua população, via uma internalização dos centros de decisão. Depois de oito anos na contramão desse projeto furtadiano, Lula novamente identificou como crucial o planejamento das atividades econômicas e sociais. O PAC implementa o que os críticos ao neoliberalismo exigiam há muito tempo – investimento em infraestrutura produtiva e social. Algumas das empresas brasileiras, como a Petrobras, a Vale, a Embraer e a JBS Friboi, se tornaram importantes global players. No ramo das telecomunicações, a nacional OI luta para assumir a liderança do mercado nacional. Mas já que ela foi montada com grandes subsídios estatais, não se descarta uma nova estatização. Para não falar do projeto de fortalecer a Telebrás para gerenciar a banda larga. A produção industrial estava, em agosto de 2008, 37,7% acima da produção de 2002, e a produção de máquinas e equipamentos, 80%. A crise mundial também afetou o Brasil, mas menos, e a recuperação centrada no mercado interno está em curso. Mesmo com a crise, a produção industrial ficou, em julho, ainda 22,1%, e a de máquinas e equipamentos, 28% acima dos valores de 2002, com potencial de recuperar a dinâmica, fortemente apoiada pelos investimentos para o pré-sal.
No campo, percebe-se o caráter ambíguo das correlações de força dentro do aparato do Estado. Lula optou por continuar a aliança histórica entre o Estado e os grandes proprietários, ao mesmo tempo dando mais espaço para seus velhos aliados dos movimentos e buscando fortalecer a agricultura familiar.
As cifras do agronegócio
Isso cria impasses e resulta em uma guerra de posições contínua, como mostra a mais recente luta dentro do aparato do Estado: enquanto o presidente quer, junto com o Ministério de Desenvolvimento Agrário, aumentar os índices de produtividade, o ministro da agricultura exerce resistência. Dentro da lógica econômica, cabe ao agronegócio a mesma tarefa do antigo latifúndio: criar um superávit comercial para reduzir a dependência de divisas. Isso contribuiu para que as transações correntes ficassem durante cinco anos superavitárias, tornando-se deficitárias em 2008, principalmente por causa de transferências de lucros e dividendos de US$ 33,9 bilhões, o que mostra o alto nível de internacionalização da propriedade e o poder das corporações no Brasil. Em contrapartida, as reservas subiram, de 2002 a julho de 2009, de US$ 38 para 212 bilhões, a dívida externa reduziu-se nesse período, de US$ 196 para 170 bilhões, com uma caída histórica da divida externa pública, de US$ de 110 para 67 bilhões. Do ponto de vista estrutural, o Brasil está saindo de um perfil meramente primário de exportações. Basta olhar o surto na exportação de bens de capital que, em setembro de 2008, chegaram ao montante recorde de quase R$ 3 bilhões.
Com olhos de um europeu, Lula é um social-democrata no sentido histórico de lutar para que todos possam fazer parte do mundo das mercadorias. A contribuição histórica da social-democracia europeia residia em, abdicando de uma perspectiva além do capitalismo, lutar com a classe oprimida para a justa e digna participação de todos. Em boa parte do século XX estas forças travaram uma luta de classes pacífica e institucionalizada, com resultados bastante favoráveis aos trabalhadores.
Hoje, morta na Europa, essa agenda está retomada na América Latina e representa uma ruptura profunda com o neoliberalismo no aspeto mais decisivo dessa ideologia: as políticas públicas visam a redistribuição e a integração das massas marginais na sociedade dominante.
Inclusão social
Os dados mostram uma forte dinâmica de inclusão: o coeficiente de Gini estagnou entre 1982 e 2002 em 0,59, para cair, até 2007, a 0,55. A percentagem de pobres caiu, de 2002 a 2007, de 32,6 para 22,7, e a participação dos 10% mais ricos na renda domiciliar total caiu, de 2002 a 2007, de 47,3 para 43,8. Nas palavras de Ricardo Paes de Barros, especialista reconhecido do Ipea: “Desde 2001, a desigualdade vem caindo no Brasil. A renda dos mais pobres cresce sete vezes mais rápido que a renda dos mais ricos. Todos estão ganhando. É o crescimento com equidade. Mesmo com expansão baixa da economia, a desigualdade não deixou de cair todos esses anos”. Deu-se uma mudança qualitativa nas políticas sociais focadas, criadas em pleno reino neoliberal. Na área da educação, não somente com mais verbas para escolas e universidades, mas também com quotas e bolsas. Na área social, dos 16,4 milhões de famílias identificadas como “necessitadas”, 11,5 são beneficiadas pelo Bolsa Família, o que está indo em direção à universalização de uma renda monetária básica. Algo semelhante vale para o conjunto de medidas atreladas à baixa renda. O aumento contínuo do salário mínimo e das aposentadorias seguram o poder de compra de massa. Além disso, há experimentos sociais, como a criação de uma secretaria para economia solidária ou o fomento a escolas do MST.
A democratização socioeconômica atual pode permitir um avanço civilizatório parecido ao obtido pela social-democracia europeia no século passado: extinguir o analfabetismo, a fome e a indigência. Seria um avanço mínimo, mas secular e impensável até há pouco tempo. Visto desse ângulo, podemos verificar que a formação de um Estado que apoia não somente o capital, mas promove o bem-estar dos excluídos, visa além do neoliberalismo, mas não além do capitalismo.
“Minha casa, minha vida” que retoma o incentivo à construção de casas populares, é executado em parceria com o capital imobiliário, que está sendo o principal beneficiado – além da população de baixa renda. Não existe uma visão urbanista de ir além do caos da cidade privatista e centrada no carro. Falta uma ampla reforma urbana, mas satisfaz-se uma demanda que nos EUA foi satisfeita via créditos subprime. A acomodação dos interesses de capital e trabalho, uma proposta que já se realizou na Europa pré-neoliberal como uma aliança por tempo e território limitado.
Dependia da força popular organizada e, assim que ela erodiu, o capital voltou a políticas de arrocho salarial e de corte de direitos sociais. Esse é o destino trágico da social-democracia europeia, que já não aglutina o poder do Estado e a força dos movimentos.
Na América Latina, os movimentos emancipatórios inclinaram-se sempre contra a dependência externa e o domínio de classe interno. Por isso, a construção da nação foi uma questão-chave. Com a campanha brasileira “O petróleo é nosso”, nos anos 1950, impediu-se o assalto de empresas estrangeiras aos recursos nacionais; o mesmo discurso é utilizado hoje na Bolívia, Equador, Venezuela – e mais recentemente no Brasil. Soberania e interesse nacional são palavras-chave, tanto frente aos países centrais como às multinacionais e seus porta-vozes, como Dilma mostrou em recente entrevista no Financial Times (7/9/09).
Mas esse novo projeto nacional está muito mais permeável à integração continental que o velho Estado desenvolvimentista: o Brasil negociou novos contratos energéticos com Bolívia e Paraguai, financia via BNDES projetos de infraestrutura nos países vizinhos e inclui as montadoras argentinas na redução de impostos no combate à crise. Aí reside o cerne do momento atual – enterrar a velha hierarquia geopolítica com o novo poder dos Estados-Nações da América Latina, que visam a integração das suas vastas populações marginalizadas.
Talvez apareça um resultado paradoxal: o capitalismo brasileiro completa sua estrutura produtiva e deixa sua posição periférica para trás, no exato momento em que admite um mínimo de participação aos trabalhadores e pequenos agricultores.
Mais uma vez as lutas sociais e a mobilização política têm o efeito de alavancar as contradições capitalistas a um plano mais elevado. Porque o que é bom para as massas brasileiras, agrava as contradições do estilo de vida europeu e norte-americano, e mostra a impossibilidade da sua generalização.
Dentro do enfoque da inclusão social, o governo implementa uma estratégia muito efetiva. Mas, os que enfatizam que o crescimento econômico em si está, em tempos de mudanças climáticas, cada vez mais em conflito com interesses planetários, podem sentir-se fora do lugar nessa euforia de progresso material. Aí, o desencanto, especialmente daqueles envolvidos em lutas ecológicas e aspirando um mundo além do consumo alienado.
Para ir além da mera extensão do mundo das mercadorias, precisa-se um amplo movimento pressionando contra a repetição do modelo insustentável do American way of life.
Neste momento, Marina Silva pode assumir um papel progressista, se tiver a coragem de romper o pacto do PV com as forças neoliberais do país – o que parece improvável. Mas a desilusão nas bases dos movimentos acerca da social-democratização do governo é um perigo à atual aliança entre a Realpolitik e a busca de um modelo civilizatório solidário e sustentável além do capitalismo. Seu fracasso seria trágico, pois pela primeira vez há no Brasil um Estado a serviço da universalização dos direitos sociais, e que oferece uma oportunidade real de superar 500 anos de dependência, junto com a fome e a indigência. Pode parecer pouco para nós que sonhamos com outro mundo – mas é muito, em comparação com o que parecia viável dez anos atrás.
*Andreas Novy é professor do Instituto de Economia Regional e Economia do Meio Ambiente da Universidade de Economia e Administração, Viena (Institut für Regional-und Umweltwirtschaft, Wirtschaftsuniversität Wien); diretor científico do Centro Paulo Freire em Viena e autor de A desordem da periferia, 2001, Editora Vozes, e O retorno do Estado desenvolvimentista, 2009, Indicadores Econômicos, FEE, vol. 36 – nº4.