Política fiscal e desoneração tributária no Brasil
A política fiscal de desoneração tributária é um instrumento de política econômica utilizado para a transferência de renda do setor público para o privado sem qualquer tipo de contrapartida social do capital
Munidos de poder econômico e lobby político, os grupos de interesse recorrem à política estatal para garantir a realização dos negócios. Sabem que o Estado exerce influência considerável na economia por meio da demanda efetiva, seja adquirindo bens, comprando equipamentos, contratando serviços e reciclando títulos podres. Porém o Estado ao garantir a realização dos negócios não necessariamente está garantindo condições necessárias para uma política de redistribuição da renda monetária.
Dito isto, no Brasil, na medida em que o volume quantitativo de recurso desonerado foi crescendo (de 1,7% do PIB, em 2003, para 4,45%, em 2020) para garantir as condições gerais de produção capitalista, as desonerações tributárias de R$ 331,2 bilhões estimadas pela União, para 2020, tornaram-se, cada vez mais, um componente fundamental na redução de custo de produção e na formação da taxa de lucro, diga-se, à custa do agravamento do financiamento da seguridade social. Além disto, as desonerações também reduzem receita potencial para formulação de política pública e contribuem com a regressividade do sistema tributário nacional.
Com valores renunciados (últimos dez anos) que passam de R$ 2,5 trilhões, um dos equívocos do governo federal foi não ter exigido contrapartida do empresariado na criação de novos postos de trabalhos, ampliação de direitos sociais e garantias fundamentais, sob pena de retirada e devolução da desoneração usufruída. A expectativa do governo brasileiro na retomada do investimento privado pelo multiplicador dos mais variados programas de desonerações de impostos e contribuições sociais acabaram não se materializando.
Através da análise dos dados estatísticos, no livro deixei claro que a política fiscal de desoneração tributária é um instrumento de política econômica utilizado para a transferência de renda do setor público para o privado sem qualquer tipo de contrapartida social do capital. As desonerações de impostos e contribuições não têm resultado em desenvolvimento para o conjunto da coletividade. Portanto, é preciso entender as desonerações tributárias como um movimento contraditório da dinâmica da acumulação capitalista e não como um dispositivo automático de desenvolvimento econômico, social, ambiental e, muito menos, regional.

Frente à regressividade de nosso sistema tributário e da inanição do governo federal, a pandemia da Covid-19 está expondo com muito mais violência as entranhas da desigualdade brasileira em suas múltiplas escalas. São quase 80 milhões de pessoas que vivem com renda per capita domiciliar mensal de até R$ 530, quase duas vezes a população da Argentina. Portanto, o que o governo brasileiro está permitindo a coronavírus fazer com o Brasil é multiplicar aos milhares as Fantine de Vitor Hugo (Os miseráveis), os Oliver Twist de Charles Dickens (Oliver Twist), as Maheude de Emílio Zola (Germinal), os Fabiano de Graciliano Ramos (Vidas secas) e os Chico Bento de Rachel de Queiros (O quinze).
A estrutura do sistema tributário de um país registra e revela sobre qual fração de classe recai o maior ou menor ônus e as que mais ou menos se beneficiam. Assim, a tributação espelha os interesses das frações de classe dominantes que detêm o controle ideológico da política econômica. Todavia, no Brasil, o sistema tributário em vigência corrobora para concentração de renda, patrimônio e terra, agravando o ônus fiscal dos mais pobres e aliviando as camadas que habitam o andar de cima.
Chegou a hora de reformar o sistema tributário brasileiro de forma que ele possa ser progressivo. Por isto a importância da Emenda Substitutiva Global n° 178/2019 à Proposta de Emenda Constitucional n.45/2019, que não apenas simplifica e unifica os impostos, mas propõe a preservação da seguridade social e, sobretudo, a tributação justa e solidária. Agora, tão importante quando aprovar a reforma tributária desenvolvida no âmbito da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), é revogar a Emenda Constitucional n.95/2016 que congelou os gastos públicos.
Por fim, espero que o livro Política fiscal e desoneração tributária no Brasil possa servir de inspiração para novas pesquisas e, principalmente, para a luta política por justiça tributária e equidade social.
Juliano Giassi Goularti é doutor pelo instituto de Economia da Unicamp. Este artigo reproduz o prefácio à 2ª edição do seu livro Política fiscal e desoneração tributária no Brasil (Editora da Unesc e Editora Insular, 2020).