Política industrial para a saúde além da pandemia
A crise gerada pela pandemia mostrou que ter capacidade doméstica na produção de vacinas e medicamentos faz diferença em termos de segurança sanitária. A existência de capacidade produtiva em imunizantes no Brasil permitiu a assinatura de acordos para produção local das vacinas para Covid-19. Porém, este feito também joga luz sobre as deficiências não solucionadas e os problemas estruturais ainda presentes na indústria farmacêutica brasileira, e surge como uma oportunidade de reflexão sobre as vulnerabilidades e os caminhos para solucioná-las. Confira no novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea
O atraso na entrega de vacinas para a Covid-19, que ameaça a aplicação da segunda dose de milhões de brasileiros, evidencia a dependência tecnológica e produtiva na área da saúde. Com a pandemia ficou explícita a interdependência global do mercado farmacêutico e a dependência mundial da produção de insumos farmacêuticos ativos (IFA), necessários para a fabricação de medicamentos, da China e da Índia. A dependência brasileira nesse elo central da produção de medicamentos e vacinas vem se agravando desde a abertura comercial abrupta do início dos anos 1990. A importação de produtos farmoquímicos quadruplicou entre 2003 e 2019 no Brasil, atingindo mais US$ 2 bilhões segundo a Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia.
A pandemia de Covid-19 permite que a sociedade reconheça a necessidade de uma política industrial de longo prazo. Não é à toa que os países que lograram uma rápida resposta do setor produtivo durante a pandemia são aqueles que mantêm políticas industriais de longo prazo com medidas específicas para a indústria farmacêutica. Nesse grupo estão Reino Unido, Estados Unidos, China e Índia,[1] por exemplo.
Se analisarmos o histórico das políticas industriais no Brasil, o período de maior continuidade e atenção à indústria farmacêutica foi entre 2003 e 2016, quando foram colocadas em prática três políticas industriais e três políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Nesse período, o governo brasileiro adotou uma visão sistêmica das políticas voltadas para as atividades produtivas e inovativas no campo da saúde, unindo os atores de oferta e demanda do Complexo Industrial da Saúde (CIS) e entendendo que tais atividades estão interligadas no seu desenvolvimento. Para tanto, tentou um alinhamento entre as políticas industriais e de CT&I com as políticas de saúde com o propósito de fortalecer a produção local para reduzir a dependência externa e as vulnerabilidades do SUS.
Alguns programas e instrumentos de política pública que foram lançados no período merecem destaque. O primeiro foi o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde (Profarma), lançado em 2004 pelo BNDES, que ofertou crédito com subsídio à inovação, consubstanciado pelo diferencial das taxas de juros e condições facilitadas para pagamento. O segundo foi a Subvenção Econômica (recursos não reembolsáveis para empresas), gerida pela Finep a partir de 2006, e integrada ao Inova Saúde em 2013, que combinou recursos reembolsáveis e não reembolsáveis. E, por fim, as Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs), feitas a partir de 2008 pelo Ministério da Saúde por meio do uso do poder de compra do Estado. Assim, garantiu-se a aquisição de produtos estratégicos produzidos localmente por meio de projetos de parcerias público-privadas para a transferência de tecnologia de medicamentos e outros produtos (equipamentos médico-hospitalares e kits de diagnósticos).
Segundo levantamento do Grupo de Economia da Inovação do IE/UFRJ, a Subvenção Econômica e o Inova Saúde, da Finep, e o Profarma, do BNDES, financiaram, juntos, 142 empresas farmacêuticas e farmoquímicas em 298 projetos/operações, num total de R$ 8,3 bilhões entre 2004-2018. Dessas empresas, onze também participavam das PDPs, o que mostra uma articulação, ainda que indireta, dos instrumentos de política pública.
É possível perguntar, então, como o Brasil está hoje nessa situação de dependência externa? As políticas industriais e de CT&I adotadas entre 2003 e 2016 não tiveram efeito nenhum?
O resultado não foi nulo, mas foi limitado. Houve um forte crescimento das empresas farmacêuticas nacionais com ampliação das suas capacidades produtivas, particularmente focada em medicamentos genéricos, o estímulo à entrada das empresas nacionais na produção de medicamentos biológicos e a tentativa, ainda que incipiente, de articulação entre produção industrial e demandas da saúde. No entanto, treze anos é pouco tempo para notar efeitos significativos em termos de geração de inovação, e os resultados nesse campo são muito incipientes. Também é importante destacar que não se deu a atenção devida à indústria farmoquímica, responsável pela fabricação de IFAs, dado que esse segmento tem uma dinâmica concorrencial por preço forte e não se desenvolve a reboque da indústria farmacêutica.
Para agravar o cenário, esse conjunto de iniciativas vem sendo interrompido desde 2016. Os financiamentos do BNDES continuam disponíveis, mas sem considerar as particularidades da indústria farmacêutica. As PDPs ainda vigentes sofrem forte insegurança jurídica e vivem no limbo da política pública. A Finep luta para continuar existindo. Além disso, em 2019, foi extinto o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS), no âmbito do Ministério da Saúde, que teve papel central na articulação dos atores e na proposição do uso do poder de compra do Estado na promoção da produção local.
Para o enfrentamento da pandemia da Covid-19, essas instituições de financiamento criaram instrumentos para mitigar as debilidades nacionais. O BNDES lançou o Programa de Apoio Emergencial ao Combate da Pandemia do Coronavírus para ofertar financiamento às empresas com orçamento de até R$ 2 bilhões, que visa a ampliação imediata da oferta de leitos emergenciais, materiais e equipamentos médicos e hospitalares. A Finep abriu três editais de Subvenção Econômica à Inovação para soluções inovadoras no combate à Covid-19, uma chamada pública com apoio financeiro à execução de projetos de infraestrutura de laboratórios, além do programa de Ações Emergenciais Covid-19 com recursos reembolsáveis, somando no total R$ 331 milhões. Esses instrumentos estão sendo utilizados de forma pontual e específica, com o objetivo único de resolver o problema momentâneo. Não são, entretanto, parte de uma estratégia de longo prazo do governo federal para fortalecimento da indústria farmacêutica brasileira.
Esta conseguiu, em alguma medida, responder aos estímulos das políticas públicas adotadas entre 2003 e 2016. Sendo possível até considerá-la uma exceção no panorama desolador da indústria brasileira dos últimos anos. O faturamento das empresas no mercado brasileiro alcançou R$ 70 bilhões e as companhias nacionais ampliaram sua participação nesse total. O número de grandes empresas nacionais e os seus portifólios de produtos cresceram, sete empresas farmacêuticas nacionais figuravam entre as vinte maiores do mercado brasileiro, segundo dados do Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico 2017. No início dos anos 2000, era somente uma.

No entanto, as empresas farmacêuticas nacionais ainda estão muito longe do dinamismo dessa indústria em nível global. É preciso que haja continuidade nas políticas para que resultados mais significativos apareçam. A indústria farmacêutica global é composta por grandes empresas que atuam nos diferentes mercados no mundo, que realizam pesados investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e em marketing, e que possuem fortes estrutura de produção e distribuição. O desenvolvimento de um novo medicamento pode levar de 10 a 12 anos. Dessa forma, o fortalecimento de uma indústria local requer ações contínuas e de longo prazo, como feito por Índia e China, países em desenvolvimento como o Brasil.
Por esse motivo, faz-se aqui uma chamada à necessidade de se retomar as discussões, articulações e proposições de políticas industriais e de CT&I para o fortalecimento da indústria farmacêutica e farmoquímica brasileiras. É importante lembrar que as políticas industrial e de CT&I abrem a possibilidade de transformar as estruturas produtivas, escolher a trajetória futura de acumulação de capacidades e os padrões de produtividade e de comércio de um país.
Essas ações devem ser orientadas pelas demandas e necessidades de saúde da população brasileira para que o recurso público utilizado traga retornos econômicos e sociais. Para isso, é fundamental uma articulação efetiva com o Ministério da Saúde e que este defina, de forma clara, quais prioridades devem ser atendidas.
Também é preciso pensar em políticas públicas que promovam a capacidade inovativa das empresas nacionais, com foco em projetos de inovação mais complexos e robustos. Sendo fundamental, então, a retomada da Subvenção Econômica, pois recursos não reembolsáveis são o instrumento mais adequado para financiamento de atividades inovativas de alto risco e incerteza.
Vale lembrar, por fim, da importância de se prever o monitoramento e avaliação no momento de concepção e elaboração das políticas industriais. Isso é particularmente importante no caso daquelas com efeito sobre as demandas de saúde, pois os mecanismos de avaliação devem abarcar aspectos econômicos e sociais. A avaliação permite que haja aprimoramento dos instrumentos, medidas e objetivos das políticas de modo que mais acertos sejam obtidos.
A crise gerada pela pandemia mostrou que ter capacidade doméstica na produção de vacinas e medicamentos faz diferença em termos de segurança sanitária. A existência de capacidade produtiva em imunizantes no Brasil permitiu a assinatura de acordos para produção local das vacinas para Covid-19. Porém, este feito também joga luz sobre as deficiências não solucionadas e os problemas estruturais ainda presentes na indústria farmacêutica brasileira, e surge como uma oportunidade de reflexão sobre as vulnerabilidades e os caminhos para solucioná-las. A recuperação da crise passará pela revisão do modelo de crescimento adotado nos anos recentes, de modo a incluir o desenvolvimento industrial de segmentos essenciais e estratégicos para a sociedade. As políticas industriais recentes foram essenciais para a criação de capacidades produtivas das empresas farmacêuticas nacionais. No entanto, são necessárias políticas explícitas, contínuas e de longo prazo, que atenuem o risco das atividades inovativas e que foquem nos elos mais frágeis e nas necessidades de saúde não atendidas da população brasileira.
Julia Paranhos é doutora em Economia, professora associada Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora do Grupo de Economia da Inovação do IE/UFRJ ([email protected]).
Fernanda Steiner Perin é doutora em Economia e pesquisadora associada do Grupo de Economia da Inovação do IE/UFRJ ([email protected]).
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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia Bacelar e William Nozaki.
[1] Não obstante à má condução da pandemia pelo governo indiano durante a segunda onda da Covid-19 no país, a Índia é o quarto país que mais produz doses da vacina no mundo, atrás apenas da China, Estados Unidos e Alemanha/Bélgica.