Por que desconfiar das estatísticas chinesas sobre o coronavírus
A assembleia geral da OMS realizada entre 18 e 19 de maio, sob uma chuva de críticas, propôs tratar toda futura vacina contra a Covid-19 como um “bem comum”. Nada que acalme os Estados Unidos, que acusam Pequim pelo desastre sanitário e destacam a fragilidade dos números de mortes declaradas. Mas o que esconde essa polêmica sobre os dados?
Enquanto os Estados Unidos se afundam na crise sanitária, Donald Trump e seu governo apontam o dedo para a China, acusando-a de ter minimizado a gravidade da epidemia. Os Estados Unidos, seguidos pela Austrália, querem agora promover uma pesquisa internacional. Denunciam a Organização Mundial da Saúde (OMS), cujo diretor é acusado de complacência, ou mesmo cumplicidade, com Pequim.
Para entender a polêmica, a cronologia dos fatos é crucial. Os primeiros casos comprovados remontam a novembro de 2019 e, desde o início de dezembro, vários médicos deram o alerta, ao preço de prisões e intimidações. No fim de dezembro, a China mencionou pela primeira vez um vírus novo surgido em Wuhan, em um mercado de animais teoricamente proibidos para consumo. Em 5 de janeiro de 2020, a OMS declarou que, segundo as informações chinesas, “nenhuma prova significativa de transmissão entre humanos e nenhuma infecção por agentes de saúde foram registradas”. Só em 15 de janeiro ela reconheceu a transmissibilidade do vírus para o homem – justamente no momento em que um laboratório chinês partilhava, com a comunidade científica, a sequência genética do Sars-CoV-2. Fato bastante curioso, o laboratório foi fechado no dia seguinte ao dessa publicação.
Em 22 de janeiro, tudo começou a se acelerar na China com o bloqueio autoritário da província de Hubei, cuja capital é Wuhan. O confinamento seria estendido ao país inteiro, mas os dirigentes se concentraram nessa província. As pessoas ficaram presas em casa a fim de desacelerar o ritmo de expansão da epidemia e depois detê-la. Nessa data, a OMS ainda não achava que aquele fosse um problema de saúde pública urgente, de alcance internacional: só havia então onze casos fora da China, o que talvez explique essa decisão. Em 24 de janeiro, ela recomendou a adoção de programas de testes em todos os países afetados. No mesmo dia, Xi Jinping reconheceu a gravidade da situação – em discurso acolhido por um tuíte de Trump, em que este exaltava “os esforços da China e sua transparência”.1 Em 31 de janeiro, quando o balanço chinês contava 10 mil pessoas contaminadas e 213 falecidas, a OMS admitiu a “urgência internacional”, fato raríssimo porque, desde sua criação, em 7 de abril de 1948, ela só havia feito isso cinco vezes: para a gripe H1N1 (em 2009), a poliomielite (em 2014), o vírus zika (em 2016) e o ebola (em 2016 e de novo em 2019). Seria preciso esperar até 10 de fevereiro para que ela enviasse ao local uma equipe composta de especialistas de diversas nacionalidades (Alemanha, Coreia do Sul, Estados Unidos, Japão, Nigéria, Rússia e Cingapura).2
A partir daí, os Estados Unidos não deixaram de fazer acusações cada vez mais graves à OMS. Após um período de relativo silêncio, esta contra-atacou, assegurando, no fim de abril, ter advertido “no momento certo” os países da urgência sanitária. Lançou um projeto de colaboração mundial (ACT-Accelerator) com o objetivo comum de “garantir que todos tenham acesso a todos os instrumentos destinados a vencer a Covid-19”.3 António Guterres, secretário-geral da ONU, apoia o projeto: “Não se concebe uma vacina ou tratamentos para um só país ou região, ou metade do mundo”.4 Essas declarações ecoam como resposta à vontade inabalável de Trump de reservar a exclusividade de vacinas promissoras.
A organização deveria ter reagido de outra forma ou mais rapidamente? Além de suas próprias regras, ela depende dos números chineses e sua eventual manipulação. Pelo que se viu no mundo em meados de maio (mais de 300 mil mortes), o número de óbitos chineses, de 4.633, será realista? Vários parâmetros entram aqui em jogo. De início, conhecer os dados verdadeiros é sempre problemático. Não importa o lugar nem a epidemia (gripe, por exemplo), os números “reais” só podem ser calculados retrospectivamente. Quando alguém morre num hospital, a atribuição de seu óbito a esta ou àquela causa parece por vezes complicada, em razão das comorbidades. Em se tratando de óbito fora da estrutura hospitalar, determinar a causa se torna ainda mais difícil, sem que haja aí, necessariamente, a vontade de enganar.
O acesso aos cuidados também desempenha seu papel. Se a primeira década após a epidemia da síndrome respiratória aguda severa (Sars, na sigla inglesa, 2003) assistiu à introdução de medidas públicas que cobriram quase a totalidade da população, o sistema permaneceu marcado por uma oferta de serviços comunitários de qualidade insuficiente e por omissões de graves consequências, ficando de fora boa parte da população. Todo tratamento além do protocolo predefinido devia ser pago pelo paciente.
Sistema piramidal
Em plena crise sanitária, uma parte dos chineses não pôde se tratar por razões financeiras. O reembolso dos testes pela autoridade central só contornou o obstáculo parcialmente. Podemos imaginar que inúmeras pessoas morreram de Covid-19 sem passar pelos grandes hospitais de Hubei (o epicentro da pandemia) ou das capitais de província. A diferença no tipo de tratamento acarreta forçosamente a diferença na contagem.
Além disso, a organização geográfica e hierárquica dos cuidados aumentou as dificuldades de acesso e contagem: o sistema é piramidal, com os meios concentrados nos grandes hospitais, mesmo em se tratando da formação do pessoal.5 Os diplomas dos médicos, como os dos enfermeiros, exigem anos de estudo, conforme as estruturas onde eles vão trabalhar. Ou seja, quem é formado para um hospital local não pode exercer a profissão em escala provincial e não dispõe dos mesmos protocolos de cuidados para com os pacientes. Resumindo, a oferta de cuidados diverge bastante de uma zona geográfica para outra. Identificar de maneira homogênea os casos de complicações e mortes ligadas à Covid-19 é, pois, impossível na China.
A estimativa do número de vítimas de uma epidemia está sempre num intervalo de erro, corrigido em seguida graças a comparações sazonais e longitudinais. Na China, a margem de erro é grande, por razões objetivas. Resta saber se correções serão feitas. Para além desses aspectos estatísticos, os números da crise sanitária respondem igualmente a arranjos ligados à política interna e à geopolítica chinesas.
No interior do país, as autoridades se encarregaram de conter a ansiedade da população. De que a província de Hubei tenha procurado deliberadamente minimizar a gravidade da situação, não resta dúvida. Chegando ao poder com a firme vontade de lutar contra a corrupção, Xi Jinping visou as baronias locais, que, por isso, tentam manter o poder central o mais longe possível de seus assuntos internos. É de crer que os dirigentes de Wuhan, a fim de evitar tumulto, tenham querido conservar as rédeas pelo maior tempo que pudessem (por tempo demais, sem dúvida) antes que Pequim as tomasse, ainda mais que a ascensão, no partido, dos dirigentes locais depende de seu desempenho, que implica critérios diversos (crescimento, luta contra a poluição, nível social…). Essa atitude reflete o regime autoritário do país, mas também a grande descentralização na aplicação de sua política – o que é frequentemente subestimado.
Já o poder central procurou conjugar dois objetivos aparentemente incompatíveis: enfatizar a gravidade da epidemia a fim de justificar as medidas de confinamento extremas e, ao mesmo tempo, dar a impressão de que controlava a situação para amenizar a angústia de 1,4 bilhão de habitantes. Do ponto de vista sanitário, vimos que os meios ficaram concentrados nos grandes hospitais da província, chamados de nível 3. Ora, a escala não é a da França: Hubei, por exemplo, tem mais de um terço da superfície do país europeu. Portanto, o confinamento significa, de fato, a inacessibilidade física aos equipamentos médicos avançados para grande parte da população.

Esforço de comunicação
Nos grandes estabelecimentos hospitalares chineses, a qualificação das equipes é comparável à dos países ocidentais. O mesmo não ocorre nas estruturas de porte mais modesto. Os primeiros estão nas grandes cidades, densamente povoadas, de renda mais alta; as outras, nas zonas periféricas ou rurais. Com um confinamento muito rigoroso, as carências dessas estruturas agravam ainda mais as desigualdades. Deve-se acrescentar também que muitas vezes elas são privadas e, portanto, mais caras.
Acrescente-se a isso a precariedade econômica: fora das metrópoles, os chineses trabalham geralmente em empresas médias ou pequenas, que não garantem direitos durante o confinamento nem volta ao emprego depois. Os camponeses e parte dos trabalhadores migrantes se encontram em situação de fragilidade ainda mais grave. Assim, as famílias com renda menor enfrentam um duplo sofrimento: poucos recursos e cuidados insuficientes. Apesar do policiamento das redes sociais, a “sociedade civil” nem por isso deixou de externar seu descontentamento e sua cólera, sobretudo após a morte do doutor Li Wenliang, um dos que deram o alerta.
Nesse contexto de enormes disparidades sanitárias, as autoridades entraram num jogo muito complicado, em que a política e principalmente a divulgação do número de óbitos pretendiam realçar a capacidade do Estado central para justificar um confinamento que tornava quase insuportável a vida de parte da população. Essa mesma lógica vigora hoje nos Estados Unidos, onde Trump procura desobrigar o Estado federal da gestão da epidemia ao pôr toda a culpa na China. Nos dois casos, trata-se de desviar o olhar da opinião pública dos verdadeiros problemas socioeconômicos da crise sanitária.
Se os números oficiais devem ser considerados com reservas, é preciso reconhecer o esforço atual de comunicação em comparação com o adotado no episódio Sars em 2002-2003, graças principalmente à partilha dos dados científicos. Além disso, as autoridades comunicam por outros meios que não apenas o dos números. Assim, na semana de 21 de janeiro de 2020, a embaixada da China em Paris alertou a França sobre o caso de uma mulher que pegara um avião em Wuhan e garantiu, nas redes sociais, apresentar os sintomas da Covid-19. As autoridades francesas a examinaram, mas não houve isolamento nem quarentena porque, na ocasião, os sinais de alerta enviados por Pequim não pareciam suficientemente inquietantes.
Hoje, Xi quer dar à China a imagem de um país que domina totalmente a situação, do ponto de vista tanto interno quanto externo, a fim de incrementar o status de superpotência que ela procura adquirir. Ele não economiza símbolos. Em 28 de janeiro, o governo anunciou a construção de dois “hospitais” para acolher os pacientes infectados pela Covid-19. Edifícios da cidade poderiam ter sido requisitados, mas esse não foi o caminho midiático escolhido. As câmeras acompanharam ao vivo a construção, e as imagens pululavam na mídia chinesa e estrangeira. Na verdade, outras estruturas foram usadas, notadamente o Centro Internacional de Exposições, em Wuhan.
Como o epicentro da epidemia agora se deslocou para a Europa e os Estados Unidos, Pequim gostaria muito de fazer esquecer ao mesmo tempo as origens da pandemia e os números que difundiu, a fim de se apresentar como parceiro ou colaborador, conforme o país – complementando, e mesmo assumindo, o papel até então confiado a Washington. Primeiro país a sair lenta e prudentemente da crise, a China pretende promover seu modelo.
Suas soluções investem na aceitação, pela população, de medidas que implicam rastreá-la digitalmente. Toda pessoa que se desloca deve ser registrada e possuir um código QR de identificação. O telefone celular contém uma série de informações, inclusive sanitárias, sobre modo de vida, consumo, deslocamento, saídas e vida social de cada cidadão. Já rotineiramente utilizado como meio de pagamento, o celular se tornou uma ferramenta de informação sobre todos os aspectos da vida pessoal. O direito de viver foi adquirido ao preço de uma “transparência” total da vida privada.
Além disso, desenvolveram-se algumas tecnologias nas quais a China se destaca com vantagem. Em hospitais de Wuhan e de outros lugares, robôs davam apoio aos cuidadores. Desde antes da crise e no quadro das reformas da saúde iniciadas há alguns anos, os três gigantes da internet (Alibaba, Tencent e Baidu) oferecem serviços que incluem teleconsultas, consultas marcadas com antecedência nos hospitais para evitar longas listas de espera – que fazem o papel de triagem em função da patologia descrita, do prontuário do paciente e… do convênio privado. A China, precursora, poderia tirar partido de sua experiência nesse mercado em plena expansão.
Carine Milcent é pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), professora da École Économique de Paris e autora de Health Reform in China: From Violence to Digital Healthcare [Reforma da saúde na China: da violência à assistência médica digital], 2018.
1 Twitter, 24 jan. 2020.
2 “Report of the WHO-China joint mission on coronavirus disease 2019 (Covid-19)” [Relatório da missão conjunta OMS-China sobre a doença do coronavírus 2019 (Covid-19)], OMS, 16-24 fev. 2020.
3 France Info, 24 abr. 2020.
4 “L’OMS lance une initiative pour rendre les outils contre le Covid-19 acessibles à tous” [A OMS lança uma iniciativa para tornar acessíveis a todos as ferramentas contra a Covid-19], ONU Info, 24 abr. 2020.
5 Cf. “Évolution du système de santé – Inefficacité, violence, et santé numérique” [Evolução do sistema de saúde – Ineficiência, violência e saúde digital], Perspectives Chinoises, Hong-Kong, n. 4, 2016.