Por um jornalismo histérico
Talvez não seja por acaso que Bolsonaro acuse a imprensa de histeria, essa que se encontra tão confundida com a feminilidade ao ponto que, ao exprimir a palavra de histeria já se configure como uma ofensa às mulheres, conforme ensina o dicionário, “hyster”, do grego, designa útero. Porém, há algo que Bolsonaro ignora para além dos riscos de seu discurso irresponsável, neoliberal e genocida: que há na histeria um potencial político e produtivo.
No dia 24/03/2020, em pronunciamento em rede nacional, o presidente da república proclamou que, sobre a pandemia mundial e os pronunciamentos das comunidades científicas, internacionais e da imprensa nacional – cujo objetivo principal tem sido informar a população sobre os reais perigos da Covid-19 e como evitar/retardar sua propagação e contágio -, não se trata de mais nada além de histeria.
Histeria essa que, para o senso comum, remete às mulheres histéricas de outrora, dissimulando dores, se contorcendo para os outros através de atuações teatrais e, porque não, gritando coisas absurdas e fora de proporção. Haveria então na fala do presidente alguns pressupostos tanto sobre a histeria quanto à imprensa. Esta última é objeto constante de seu descrédito e ataques através da criação de narrativas que operem sempre de modo a desarticular qualquer denúncia ou saber que a mesma possa proferir.
O embate travado entre o presidente e os jornalistas se torna ainda mais caricato por sua predileção por atacar não só, mas na maioria das vezes, as jornalistas mulheres. Suas ofensas se dirigem de modo a insinuar algo da sexualidade daqueles que o interpelam: os homens seriam homossexuais e as mulheres, putas. De todo modo, a difamação se faz presente, como colocara Lacan (1972), ao dizer a fêmea se diz-fama, as mulheres são difamadas pela cultura. Os comentários depreciativos dirigidos às jornalistas mulheres e suas tentativas de ofender um jornalista ao chamá-lo de homossexual, ou seja, propor que o seu desejo não corresponde ao ideal de masculinidade, são tentativas de feminizar o seu interlocutor, posto que para Bolsonaro, uma interlocutora não estaria autorizada a lhe interpelar.
Histeria
Talvez não seja por acaso que ele acuse a imprensa de histeria, essa que se encontra tão confundida com a feminilidade ao ponto que, ao exprimir a palavra de histeria já se configure como uma ofensa às mulheres, conforme ensina o dicionário, “hyster”, do grego, designa útero. Porém, há algo que Bolsonaro ignora para além dos riscos de seu discurso irresponsável, neoliberal e genocida: que há na histeria um potencial político e produtivo.
A histeria enquanto quadro clínico surge enquanto denúncia do mal-estar social da época, desafiando o saber então instituído como verdade sobre o sexual, sobre a feminilidade e sobre a prática médica (Kehl, 2007). A psicanálise é grande devedora das mulheres que ousaram, em tempos de moral vitoriana, falar – aquilo que ninguém queria saber.
Não é por acaso que autores como Van Haute e Geyskens situam a psicanálise e o feminismo como contemporâneos, afinal, para o mal-estar da época havia dois destinos não excludentes: a clínica e a política. Por detrás dos queixumes e reivindicações histéricas há a possibilidade de emergência de um sujeito que, à partir de um furo se movimenta de modo a conduzir suas investigações, produzir saberes e se opor aos discursos que intencionam subjugar os corpos.
Se há algo que a histeria é capaz, é justamente de denunciar a impostura de mestres castrados (Fuentes, 2012). Bolsonaro não está à altura de sua época e muito menos de ser aquele ao qual cabe o impossível de governar (Freud, 1937), uma vez que ele não se porta como mestre, mas como um tirano que diante as reivindicações, queixas e furos, não admite e nem suporta a sua própria castração. As tentativas de desmoralizar o saber do outro são tentativas falhas de recobrir o próprio furo.
Inabilidade
Para além da inabilidade política, há algo que se inscreve em seu imaginário: é ele quem profere, no absurdo, verdades. Não há saber em um sujeito que des-supõe o saber em todos que os contrariam. Antidemocrático e preguiçoso, o presidente é tal qual uma criança frustrada que opta antes pela inibição intelectual do que por suas primeiras investigações sobre a origem dos bebês.
Bolsonaro não suporta nem “o furo jornalístico”, nem o furo no seu saber (sobre o feminino?). Não suporta ser interpelado à partir do que não sabe e só pode responder, pela precariedade de seu repertório, de modo difamatório, feminizando o seu interlocutor, naquilo que um homem que não suporta se ver castrado, ou seja, faltante, tem como recurso: localizar projetivamente no outro a falta e se ancorar em uma lei caprichosa à qual espera que se submetam voluntariamente.
O que há de mais subversivo na histeria é justamente apontar a verdade que o mestre esconde: sua própria castração. Diferentemente dos líderes políticos de outrora, a postura de Bolsonaro nos coloca frente a frente com novas formas de populismo – líderes que, aos moldes do presidente americano Donald Trump, exibem constantemente sua mediocridade e que pretendem, através disso, se aproximar de seus eleitores através de uma equivalência imaginária: eu sou como vocês. O rei está verdadeiramente nu. A diferença é que, desta vez, o rei nunca afirmou estar vestido.
Ele não
O apelo contido no título aponta para um jornalismo atuante frente aos constantes ataques e difamações proferidas pelas novas roupagens dos mestres contemporâneos. Se o mestre está sabidamente nu, o lugar do jornalismo histérico não deve ser o de constantemente apontar a nudez do referido mestre, mas sim de direcionar o olhar para sua castração, não somente imaginária como também simbólica. Pois, na equivalência imaginária que Bolsonaro pretende fazer com seus eleitores, algo é deixado de fora em um cálculo preciso: o corpo do presidente não faz coro com o corpo dos demais cidadãos brasileiros que se deparam com as seguintes opções – o adoecimento físico ou a escassez financeira. Ele, não.
Se o presidente até então escondia suas pretensões violentas por trás de um discurso paspalhão, a escalada do coronavírus vem para redirecionar o olhar da mídia e, consequentemente, de toda a população para o que realmente importa: sua profunda incompetência e suas práticas políticas genocidas.
Fake news
Bolsonaro interpela a mídia ora descredibilizando-a ora através de um jogo cínico que a coloca diante de um labirinto de fake news e possíveis cortinas de fumaça. Faz-se necessário agora, mais do que nunca, construir estratégias para saber-fazer com as novas formas de inscrição do discurso político. Pois, se a função mister do discurso histérico é depor o mestre através do movimento de escancarar sua falta, o que sucede à denúncia é a possibilidade de criação e invenção de novas saídas.
Nessa mesma terça-feira, 24/03, foram divulgados dados levantados pelo Instituto Datafolha que revelam que, no que tange o coronavírus, 56% da população brasileira afirma confiar nos dados veiculados em jornais impressos e 61% nos programas jornalísticos de televisão, números consideravelmente maiores que a taxa de confiabilidade de veículos como o Facebook e o WhatsApp, que, durante o processo eleitoral, desempenharam papel fundamental para a eleição do atual governo. Os dados divulgados pela pesquisa indicam que o jornalismo e a mídia tradicional ainda são capazes de informar e mobilizar a sociedade civil.
Se essa mesma mídia encontrava-se encurralada pelo constante descrédito do atual presidente, o cenário pandêmico vem para lhe dar uma sobrevida na medida em que restaura sua credibilidade para a maioria dos brasileiros. Sabe-se que a mídia convencional sempre estará mais atenta à manutenção do status quo e aos interesses da burguesia do que ao seu potencial subversivo, como pôde-se facilmente verificar no passado político de nosso país; a título de exemplo recente, o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, orquestrado com o apoio dos grandes conglomerados de mídia do país, e as eleições de 2018.
A imprensa histérica denuncia a impostura de Bolsonaro enquanto presidente e a sua face tirânica ao produzir um saber sobre o próprio presidente: que ele é falho e se vê confundido com o slogan de sua campanha “Deus acima de todos”. Bolsonaro se coloca acima de todos os saberes, de todas as críticas e propõe, para toda a sociedade, uma via mortífera em que todos, exceto ele, o ex atleta, devem sucumbir. Essa denúncia possibilita, para além dos processos de conscientização, a reflexividade coletiva sobre os abusos de poder e o surgimento de insurgências populares – essas sim, exercendo a plenos pulmões seu potencial político revolucionário.
Referências
Fuentes, M. J. S. (2012). As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino. Belo Horizonte: Scriptum.
Kehl, Maria Rita (2007). Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1998)
Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 20: mais, ainda (M.D. Magno, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original proferido em 1972-1973)
Van Haute, P., Geyskens, T. (2016). Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan (Pimentel, M. trad.). São Paulo: Autêntica.
TVs e jornais lideram confiança do público sobre coronavírus, diz Datafolha (2020, 24 março). Jornal Nacional, Globo.
Maíra Marcondes Moreira é psicanalista. Doutoranda em Processos Psicossociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Autora do livro “O feminismo é feminino? A inexistência da Mulher e a subversão da identidade” (Annablume, 2019). Clara Ratton é psicanalista. Mestranda em Processos Psicossociais pela Pontifícia Universidades Católica de Minas Gerais.