Por uma agricultura da vida no campo e na cidade
Após décadas de industrialização da agricultura, a maior parte das áreas agrícolas do Brasil está ocupada com grandes extensões de monoculturas transgênicas envenenadas, e o agronegócio segue devastando a terra, a natureza, comunidades e modos de vida
“Belo Horizonte
Que os prédio esconde
Hoje há de ser
Bem mió do que onti”
(do poeta e jardineiro Kenny Mendes)
Dois mil e vinte e um, século XXI, tempo de pandemias, enchentes, queimadas e fome. O capitalismo cresce como um vírus que deixa rastros de destruição e escassez, transformando florestas, montanhas e rios em dinheiro – concentrado nas mãos de poucos. Mãos estas que comandam empresas de vários setores e na agricultura atuam transformando e reduzindo os alimentos a produtos e a agricultura a negócio.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, foi criado um modelo agroindustrial a partir das tecnologias desenvolvidas nas guerras e do argumento da necessidade de se aumentar a produtividade agrícola em função de uma população mundial crescente.
Durante a chamada Revolução Verde, foi imposto aos países periféricos um pacote tecnológico propagado como solução para o risco da fome, mas que só fez aumentar as desigualdades nos territórios por causa da concentração de terras e de capital com as grandes empresas transnacionais e as elites latifundiárias.
Após décadas de industrialização da agricultura, a maior parte das áreas agrícolas do Brasil está ocupada com grandes extensões de monoculturas transgênicas envenenadas, e o agronegócio segue devastando a terra, a natureza, comunidades e modos de vida. O sistema alimentar hegemônico é insustentável, altamente dispendioso de energia, orientado pelo alto gasto com água, sementes, fertilizantes e defensivos químicos, maquinário, mão de obra e logística para comercialização dos alimentos.
Além dos impactos ambientais, esse sistema explora pessoas e gera desigualdades sociais e fome. O problema da fome que, importante dizer, nunca teve como causa a capacidade de produção de alimentos, mas sim a lógica do modelo econômico vigente, que prioriza a obtenção de lucro em detrimento da manutenção da vida e ignora a premissa da garantia do direito humano à alimentação, considerando o alimento apenas como mercadoria.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, mais de um terço dos alimentos produzidos para consumo humano anualmente é perdido ou desperdiçado. No Brasil, o desperdício decorrente da cadeia de comercialização seria suficiente para alimentar 11 milhões de pessoas e trazer a fome para níveis inferiores a 5%.
Em contrapartida, dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, publicados em 2021 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), mostram que mais da metade da população brasileira está sofrendo de insegurança alimentar e 9% convivem diariamente com a fome.
A agroecologia, diante desse cenário, tem sido apontada como estratégia fundamental para reverter essa lógica, no campo e na cidade, por meio da possibilidade de se produzir alimentos de forma ecológica e comprometida com a construção de uma sociedade pautada em justiça social e bem viver.
Compreendida como um conjunto de princípios, conceitos e práticas, a agroecologia parte da valorização, do reconhecimento e da salvaguarda do modo de vida e dos conhecimentos tradicionais dos povos originários, povos e comunidades tradicionais e populações camponesas que cultivam alimentos e preservam a natureza.
Portanto, a agroecologia é uma retomada, pois parte de conhecimentos ancestrais milenares sobre a agricultura, e também uma inovação, uma vez que é continuamente transformada a partir das melhorias tecnológicas, das experiências desenvolvidas pelas agricultoras e agricultores, junto às organizações da sociedade civil e movimentos sociais, bem como às pesquisas desenvolvidas por institutos e universidades.
Lutas e conquistas do movimento agroecológico
O movimento agroecológico, em nível nacional, vem há décadas atuando na busca de políticas públicas de apoio à causa. Desde 2012, obteve-se reconhecimento público e institucionalização do apoio governamental, via Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO).
Posteriormente, em 2013, foi instituído o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), construído com uma ampla discussão e participação da sociedade civil por meio da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) e da Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (CIAPO).
Desde 2016, tiveram início as tentativas de desmonte das políticas públicas federais voltadas à garantia da soberania e segurança alimentar e nutricional, para o fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia. Nesse contexto, também houve ações do governo para o esvaziamento e inviabilização de espaços de participação social no monitoramento e construção de políticas públicas. Em 2019, foram extintos o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a CNAPO e a CIAPO e, consequentemente, a PNAPO e o Planapo foram desconsiderados pelo presidente Jair Bolsonaro.
A agricultura urbana também é abordada na Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, sendo pauta na construção de ações, programas e políticas públicas, sobretudo no âmbito municipal. Em alguns municípios, diferentes secretarias se empenham na realização de ações e na instituição de políticas de apoio, tais como processos de mapeamento e caracterização dessas práticas e agricultoras/es envolvidas/os, assistência técnica, fornecimentos de insumos e materiais, programas de feira da agricultura urbana, recuperação de áreas degradadas a partir do plantio de espécies produtivas e com o envolvimento comunitário, dentre outras.
Agriculturas urbanas: sentir, produzir e transformar cidades
Com a mecanização e a especialização da agricultura, dentre outros efeitos advindos da Revolução Verde, entre as décadas de 1960 e 1980 houve uma intensificação do êxodo rural no Brasil. A população que saiu do campo em busca de melhores condições de vida se deparou com dificuldades em encontrar trabalho e moradia, e passou, com isso, a ocupar as periferias das grandes cidades, conformando o processo de favelização.
De lá para cá, as metrópoles cresceram, a população urbana aumentou e com isso os desafios de se pensar o planejamento urbano a partir da perspectiva do direito à cidade, da agroecologia e do bem viver ficaram maiores. De modo geral, as cidades são construídas e percebidas de forma negativa no que se refere ao cuidado e relação com a natureza e a produção alimentar, sendo vistas como espaços improdutivos, degradados e exclusivamente de consumo alimentar.
Em contraponto, a atividade agrícola é uma realidade nas metrópoles. A agricultura urbana, alinhada aos princípios da agroecologia, aponta caminhos para redesenhar a relação cidade-natureza, afirmando que esses territórios necessitam e podem ser cuidados, regenerados e produzir alimentos.
Ao transitarmos nas cidades encontramos diversos espaços produtivos, como quintais e jardins domésticos; hortas comunitárias desenvolvidas em espaços e equipamentos públicos, como praças, canteiros centrais, escolas, postos de saúde, dentre outros; hortas e pomares em lotes vagos públicos e privados; intervenções urbanas e artísticas em hortas verticais e outros recipientes. Nesses espaços é produzida uma grande diversidade de hortaliças, legumes, plantas medicinais, plantas ornamentais, frutas, sistemas agroflorestais e animais, principalmente de pequeno porte.
A agricultura urbana proporciona o encontro de muitas histórias e é tecida por motivações e trajetórias, pessoais e coletivas, que articulam necessidade e inovação, ancestralidade e contemporaneidade. As iniciativas são conduzidas de forma individual, familiar, coletiva e institucional, e acontecem em regiões centrais e periféricas das cidades, em vilas, favelas, ocupações urbanas e em outros espaços. As agricultoras e os agricultores urbanos têm perfil diverso. Destaca-se a expressiva presença de mulheres adultas e idosas e a crescente atuação de coletivos e grupos autogestionados de jovens.[1]
No entanto, existe um conjunto de desafios para a sustentabilidade das iniciativas. Embora as cidades estejam cheias de espaços com potencial produtivo, o acesso à terra é um desafio. O acesso a materiais, insumos, ferramentas e assistência técnica também figura como limite para o aprimoramento das atividades. Outro fator limitante é o acesso à água. A maior parte das iniciativas usa água tratada, e o custo disso é bastante significativo.
Na busca de caminhos comuns para a superação dos desafios e para o fortalecimento de suas práticas, algumas experiências se articulam no nível comunitário e participam de redes territoriais municipais ou metropolitanas. As redes são espaços de diálogo, troca e construção coletiva, que agregam um conjunto de iniciativas, realizam ações conjuntas e formulam propostas a serem dialogadas com a cidade e com o poder público.
Mirando horizontes agroecológicos
Belo Horizonte figura nacionalmente como um município de referência nas temáticas da segurança alimentar e nutricional e da agricultura urbana. Essa construção se ancora no sentir, no pensar e no fazer coletivo. As práticas acontecem em rede desde os locais de produção, familiares ou coletivos, com fios que se conectam a experiências comunitárias, municipais e territoriais.
Há décadas, um conjunto de ações, programas e políticas vêm sendo desenvolvidas por organizações e movimentos da sociedade civil e iniciativas populares, em articulação e diálogo com o poder público no município e na região metropolitana. Nesse cenário se insere a Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (REDE), uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que atua desde 1986 na construção da agroecologia no campo e na cidade, nas dimensões da produção, da construção social de mercados e da organização popular.
Programas e projetos de expressiva importância foram desenvolvidos nesse período, como a criação dos Centros de Vivências Agroecológicos (CEVAEs), na década de 1990, o Cidades Cultivando para o Futuro (CCF), em 2008, e o Centro de Agricultura Urbana e Periurbana (CAUP), de 2009 a 2011, que articulou diversas experiências da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Nesse período também foi desenvolvido um conjunto de processos coletivos e foram criadas redes e articulações como a Articulação Metropolitana de Agricultura Urbana (AMAU) e a Articulação Embaúba de parteiras, raizeiras e benzedeiras da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
Mais recentemente, desde 2018, está sendo construído um Sistema Participativo de Garantia (SPG) da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), que permite o uso do selo de certificação orgânica a partir do controle social entre agricultoras/es e consumidoras/es, sem a dependência de auditoria externa. Para tanto, em 2019 foi criada a Associação Horizontes Agroecológicos.
Seguimos, buscando nesse cenário um tanto complexo desvelar horizontes agroecológicos, com olhar sensível, persistente e orientado pela coletividade. E que, assim como as iniciativas trazidas aqui e que nos inspiram, este texto seja também uma semente.
Laura Barroso Gomes, bióloga, Lorena Anahi F. da Paixão, ecóloga, e Marcos Luiz da C. Jota, agrônomo, são colaboradores da Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas. Para mais informações, acesse: https://redemg.org.br/, https://www.instagram.com/rededeintercambio/ e https://www.facebook.com/rededeintercambio/.
[1] Fundo Casa Socioambiental. Filantropia Socioambiental nas Cidades: desafios e experiências para a construção de cidades social e ambientalmente juntas no século 21. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2021.