Por uma economia política não-mercantil
Há dez anos, diante da ameaça aos serviços públicos, o movimento antiglobalização forjou a palavra de ordem “o mundo não é mercadoria”. Até hoje, porém, não existe uma teoria capaz de fazer frente ao discurso econômico liberal criticado por eles. É preciso forjar uma ferramenta conceitual alternativa
Durante essa crise financeira de gravidade excepcional, a ofensiva contra os serviços públicos, a proteção social e o direito trabalhista prossegue sem tréguas.
Espaços que até agora não haviam sido contaminados pela lei da rentabilidade e pela obsessão com o lucro1, como a esfera não-mercantil – aquela que produz serviços que não estão à venda no mercado, mas cuja remuneração é paga coletivamente, por meio de impostos e cotizações sociais – acaba de ser condenada ao desaparecimento. Ou, no mínimo, a entrar num estado crítico, esmagada pelo peso das privatizações, da diminuição do número de funcionários públicos e da redução dos impostos sobre as grandes fortunas.
Há dez anos, a primeira palavra de ordem do movimento contra a globalização liberal foi “o mundo não é uma mercadoria”.
A mensagem dizia, na verdade, que “ele não deve ser transformado numa mercadoria”. Ora, todos os serviços não-mercantis, até mesmo a educação pública e o acesso universal aos tratamentos médicos, estão ameaçados desde que o capitalismo começou a reduzir o raio de ação desses setores, ampliando o da acumulação privada.
Infelizmente, não existe hoje nenhuma teoria capaz de fazer frente a esse tipo de disfarce ideológico do discurso econômico liberal.
Até a teoria marxista tradicional, a priori pouco suspeita de complacência para com a sua rival, fracassa nisso porque insiste em permanecer agarrada ao dogma segundo o qual os serviços não-mercantis são financiados pela cobrança de tributos sobre a mais-valia produzida no setor capitalista. Em conseqüência disso, os trabalhadores desses serviços são declarados improdutivos2 e toda tentativa de teorizar o não-mercantilismo encontra uma barreira intransponível, uma vez que a “não-mercadoria” dependeria da existência da mercadoria.
Descontrução da visão habitual
O que está em jogo aqui é a necessidade de forjar uma ferramenta conceitual alternativa. Em primeiro lugar, será preciso passar por uma desconstrução sistemática da visão habitual, compartilhada tanto pelos liberais quanto pela ampla maioria dos pensadores que se dizem marxistas. Isso porque, mesmo se a análise da mercadoria que é empreendida por Karl Marx no começo de O capital fornece instrumentos para uma crítica da mercantilização do mundo, o marxismo tradicional deixou em estado de abandono aquilo que poderia constituir uma proteção contra ela.
Trata-se, portanto, de elaborar uma economia política crítica, cujo objetivo é teorizar sobre uma esfera não-mercantil que teria por vocação a ampliação, à medida que o trabalho fosse levando vantagem na correlação de forças com o capital.
A primeira etapa consiste em mostrar que, longe de enfraquecer a economia, uma produção não-mercantil tem como efeito valorizar a produção mercantil.
A teoria keynesiana já havia apontado que, numa situação de carência de emprego e redução do consumo, a intervenção do Estado desencadeia um efeito multiplicador, mais intenso quando a renda per capita é baixa3. Quanto mais a renda é reduzida, mais a proporção do que é gasto com o consumo adquire importância. Trygve Haavelmo4 havia acrescentado que essa intervenção é benéfica mesmo se a despesa pública suplementar for efetuada no quadro de um orçamento equilibrado5.
Mas, por enquanto, nós ainda não conseguimos derrubar a idéia segundo a qual o financiamento de uma atividade não-mercantil proviria da cobrança de impostos sobre o fruto da atividade mercantil.
Para alcançarmos esse objetivo, vamos lançar mão de uma hipótese hoje irreal, mas que vale pela lógica que ela confere a um raciocínio “no limite”, numa perspectiva dinâmica.
Suponhamos que a esfera não-mercantil se amplie progressivamente e que o pagamento dos bens e serviços nela produzidos seja socializado por meio do imposto. Se a participação dessa esfera na produção total tendesse a aproximar-se do máximo de 100%, seria impossível considerar que o seu financiamento pudesse ser garantido pelas contribuições tributárias de uma esfera mercantil que estaria em vias de desaparecer.
Com isso, a tese segundo a qual uma atividade em crescimento é financiada por outra atividade em fase de regressão relativa é logicamente refutada.
Dito isso, é preciso agora generalizar esse resultado e dele concluirmos que são vazias todas as teses que fazem da produção mercantil, em determinado momento e dentro da continuidade do tempo, a fonte da produção não-mercantil.
Da mesma maneira, isso permite compreender a notável fraqueza da concepção que prevaleceu na União Soviética, cujo sistema econômico incorporou na atividade produtiva apenas o produto material, por considerar que os serviços não faziam parte da produção.
Com efeito, o caráter produtivo do trabalho em si não existe. Este se define apenas em função das relações sociais existentes. Diante disso, é preciso recuperar conceitos antigos, mas ainda pertinentes, baseados numa dupla distinção. Em primeiro lugar, aquela estabelecida por Aristóteles entre o valor de uso – a capacidade de satisfazer a uma necessidade – e o valor de troca – a capacidade de permitir a acumulação –, em que o primeiro representa uma riqueza que não pode ser reduzida à produzida pelo segundo6. Em segundo lugar, temos a distinção feita por Marx entre o processo de trabalho em geral e o processo de trabalho capitalista, ou seja, entre o trabalho produtor de valores de uso e o trabalho produtor de valor mercantil e de mais-valia para o capital.
Engordar o capital
Em todas as sociedades capitalistas contemporâneas estão combinadas entre si três formas de implementação das capacidades produtivas. A primeira, dominante, diz respeito ao trabalho assalariado que resulta numa produção de valor mercantil destinada a engordar o capital. A segunda é a do trabalho assalariado nas administrações, uma atividade que produz valores de uso monetários, ainda que a sua finalidade não seja mercantil (educação e saúde públicas). Por fim, existe a terceira forma de atividade humana, situada na esfera doméstica ou no campo associativo, cujo produto é não-monetário. A idéia aqui defendida é de que as duas últimas formas não nasceram da riqueza gerada pela primeira7.
Vale, portanto, retornarmos a Marx, mas também a Keynes, generalizando seu conceito de antecipação.
As empresas privadas resolvem produzir quando elas antecipam as demandas de mercados com necessidades solváveis para suas mercadorias. Elas efetuam então investimentos e põem salários em circulação. A venda no mercado validaria essa antecipação, enquanto baixas vendas a sancionariam.
Quanto às administrações públicas, antecipando a existência de necessidades coletivas, elas efetuam investimentos públicos e também contratam. A validação é então efetuada em função de um benefício econômico esperado (ex ante), como resultado de uma decisão coletiva, e se confunde com a antecipação.
Nos dois casos, a injeção de moeda sob forma de salários e de investimentos privados e públicos põe a máquina econômica para funcionar e engendra a produção de bens privados mercantis e de bens públicos não-mercantis.
Da mesma forma que os salários pagos serão gastos depois, na compra dos bens mercantis, o pagamento do imposto expressa, após os serviços coletivos terem sido produzidos, o acordo da população para que sejam garantidas de maneira perene a educação, a segurança, a justiça e as tarefas de administração pública. A antecipação de serviços não-mercantis e a sua produção pelos trabalhadores das administrações públicas antecedem, portanto, logicamente seu “pagamento” de tipo coletivo pelos usuários.
A expressão “os impostos financiam as despesas públicas” é enganadora. A ambigüidade provém da confusão entre as noções de financiamento e de pagamento.
A produção capitalista é financiada pelos adiantamentos de capital em investimentos e salários, adiantamentos esses cujo crescimento no plano macroeconômico é permitido pela criação monetária; e são os consumidores que pagam.
Qual será o papel que o imposto desempenha em relação à produção não-mercantil? Ele constitui seu pagamento socializado. O contribuinte não “financia” nem a escola nem o hospital, da mesma forma que o comprador de um automóvel de maneira alguma “financia” as linhas de montagem de automóveis. Isso porque o financiamento é anterior à produção, quer esta seja mercantil ou não-mercantil. E o pagamento, por sua vez, é posterior.
Por fim, a atividade produtiva suplementar engendra uma renda suplementar e, portanto, uma poupança suplementar que irá alimentar o investimento suplementar, tanto privado como público, que desencadeia mais atividade.
Uma vez que a economia capitalista é uma economia monetária, seria mesmo possível extrair tributos de uma base que ainda não teria sido produzida e, pior ainda, que deveria resultar do produto desses tributos? Já que isso é logicamente impossível, torna-se necessário inverter o raciocínio: a produção não-mercantil e os dividendos monetários que a ela correspondem antecedem os tributos. E, no que vem a ser o ponto crucial que reduz o discurso liberal ao arcaico, isso nos leva à conclusão de que os trabalhadores dos serviços não-mercantis produzem a renda que os remunera.
É verdade que o pagamento do imposto – da mesma forma que as compras privadas dos consumidores – faz com que o ciclo produtivo possa se reproduzir de período em período. Contudo, existem dois pontos falhos na ideologia liberal. Em primeiro lugar, são os trabalhadores do setor capitalista – e não os consumidores – que criam o valor monetário, do qual os capitalistas embolsam uma parte, e são os trabalhadores do setor não-mercantil – e não os contribuintes – que criam o valor monetário dos serviços não-mercantis. Em segundo lugar, o financiamento designa a impulsão monetária necessária para a produção capitalista e para a produção não-mercantil. Em decorrência disso, a impulsão monetária deve ser diferenciada do pagamento.
Produzir bens e serviçoes mercantis
Portanto, diferentemente do que reza a opinião dominante, os serviços públicos não são fornecidos a partir do recolhimento de algum tributo sobre algo preexistente. O seu valor monetário e não-mercantil não é nem drenado nem desviado. Ele é produzido.
Conseqüentemente, dizer que o investimento público desbanca o investimento privado não faz sentido. Da mesma forma, afirmar que os salários dos funcionários públicos são pagos por meio da retenção de tributos apenas sobre a renda gerada pela atividade privada é tão irrelevante quanto afirmar que os salários do setor privado são pagos por meio da retenção de um imposto sobre os ganhos dos consumidores. Isso equivaleria a ignorar que a economia capitalista é um circuito cujos dois atos fundadores são a decisão privada de investir para produzir bens e serviços mercantis e a decisão pública de investir para produzir serviços não-mercantis. Em outras palavras, as “retenções de tributo obrigatórias” são efetuadas sobre um PIB (Produto Interno Bruto) que já foi acrescido do fruto da atividade não-mercantil.
Uma vez que o imposto não subtrai dinheiro da riqueza preexistente, mas sim cobra o preço socializado de uma riqueza suplementar, não há mais como satisfazer-se com a consideração trivial da “retenção” sobre o produto mercantil (conforme reza a linguagem liberal), ou sobre a mais-valia capitalista (segundo a linguagem marxista). O trabalho e os recursos materiais empenhados numa determinada atividade deixam de estar disponíveis para outra. Mas não há razão alguma para supor que o trabalho empenhado na primeira mantenha a segunda.
As necessidades humanas são satisfeitas por valores de uso materiais ou imateriais produzidos na esfera do capital ou no âmbito da coletividade. O fato de que certos valores de uso não possam ser obtidos senão por meio da mediação do capital, de modo algum implica que o mercantil engendre o não-mercantil. Nem que o valor monetário não-mercantil seja quantitativamente incluso no valor monetário mercantil, o que é obrigatório na visão tradicional.
A esse respeito, o fato de alguns contadores entenderem as despesas públicas como atos de consumo não deve iludir ninguém. De um lado, estamos analisando a despesa pública livre de infra-estruturas, de equipamentos e de despesas de consumo intermediárias, ou seja, a despesa medida em função dos salários pagos, e que constitui, portanto, a contrapartida de uma nova produção de valores de uso. De outro lado, não há razão alguma para considerar de maneira diferente o adiantamento de salários pelas empresas privadas e o efetuado pelas administrações públicas, porque, nos dois casos, trata-se de uma “despesa” do empregador. Toda produção implica despesas – é uma trivialidade dizer isso –, e todo discurso que se esquecesse disso seria inconseqüente. O que importa é distinguir as formas de produção que permitem um trabalho produtor de mais-valia para o capital, validado pelo mercado, daquelas que permitem um trabalho produtor de valores de uso cuja validação se deve a uma escolha coletiva democrática.
A riqueza não-mercantil, portanto, não é fruto de uma retenção financeira sobre a atividade mercantil, mas sim um “valor adicional” proveniente de uma decisão pública de utilizar forças de trabalho e equipamentos disponíveis ou subtraídos ao lucro. Ela é socializada a dois títulos: pela decisão de utilizar coletivamente capacidades produtivas e de repartir socialmente o encargo do pagamento. Ou seja, um mecanismo insuportável para o modo de ver burguês, e mais particularmente para o senso comum neoliberal.
A elucidação do enigma da produção não-mercantil participa da redefinição da riqueza e do valor, o que é indispensável para deter o processo de mercantilização da sociedade.
A teoria liberal confunde riqueza com valor. E as teorias hostis ao capitalismo não devem permanecer obcecadas pelo fato de que esse sistema tende a reduzir todo valor àquele destinado ao capital. Nesse plano específico, um reexame crítico das categorias utilizadas tradicionalmente pela economia política e pelo marxismo é indispensável para a elaboração de uma economia política da desmercantilização.
Em resumo, trata-se de se livrar do liberalismo econômico e de certas interpretações do marxismo para retornar aos fundamentos de Marx, que definia o “valor” como “o caráter social do trabalho, na medida em que o trabalho existe como emprego de força de trabalho ‘social’”8. O reconhecimento que o trabalho efetuado para atender a necessidades sociais fora da esfera da mercadoria participa do controle que a sociedade exerce sobre aquilo que vem a ser o seu bem-estar, ou seja, a “verdadeira” riqueza9. E, por gerar tão valiosa contribuição, a riqueza socializada não é menos riqueza do que a riqueza privada, pelo contrário.
*Jean-Marie Harribey é mestre e conferências de economia da Universidade Montesquieu-Bordeaux 4 e autor, com Eric Berr) do livro Le développement en question(s), Bordeaux, Presses universitaires, 2006.