Precisamos de uma nova Constituição?
A Constituição sofreu influências de todos os atores sociais da época, inclusive de pessoas que se beneficiaram com o regime ditatorial, contudo, o pacto político culminou em uma carta democrática e com grande proteção dos direitos humanos
O Brasil não precisa de uma nova Constituição e os argumentos são inúmeros, contudo, diante do panorama atual em que os assuntos – sejam eles quais forem – parecem todos extremamente subjetivos, meros pontos de vista, é necessário relembrar a todos que em um Estado democrático de Direito só há uma figura mítica e esse mito é a Constituição Federal.
Qualquer agente político, ainda que tentando dar um ar de “legalidade” à sua fala, afirmar que a solução para qualquer problema do país passa por descumprir a Constituição Federal, este sujeito, está manifestamente e, sem nenhuma sombra de dúvidas, totalmente equivocado.
Veja-se que, ainda que exista diversos problemas institucionais, todos eles podem ter uma solução encontrada dentro da Constituição Federal, sendo assim, a ruptura que é causada por uma nova assembleia Constituinte, além de todas as incertezas que ocasionaria, traria um forte abalo na democracia, o que provocaria mais problemas do que soluções.
De fato, no momento autoritário em que passamos, com a ascensão da extrema-direita, essa opção seria a pior entre todas. Pelo contrário, o antídoto mais forte que temos para a proteção do Estado democrático de Direito é a própria Constituição Federal de 1988.
Infelizmente, a Constituição Federal não é efetivamente valorizada pelos brasileiros, pois, mesmo dentro do mundo jurídico, é possível escutar falas como: “A constituição previu direitos demais” ou “os problemas que passamos deriva da Constituição”. Tratam-se de meras falácias e, sendo assim, tentarei demonstrar a seguir o porquê nós não precisamos de uma nova Constituição e o porquê ela deve ser efetivamente valorizada e intransigentemente defendida.
“A chegada de uma Constituição à sua terceira década, na América Latina, é um evento digno de comemoração efusiva. Sobretudo se ela, apesar de muitos percalços, tiver conseguido ser uma Carta verdadeiramente normativa, derrotando o passado de textos puramente semânticos ou nominais”, escreveu o professor Luis Roberto Barroso.
A Constituição Federal de 1988 foi uma resposta ao regime ditatorial que vigorou por mais de duas décadas no Brasil, sendo, de forma surpreendente até uma Carta Magna analítica que contemplou diversos direitos sociais, assegurou direitos das mulheres, proteção ao meio ambiente, valorização a cultura e a disseminação científica, amparou os trabalhadores, criou uma extensa lista de direitos fundamentais e, ainda que tenhamos diversos problemas, trouxe estabilidade institucional para o país.
Ocorre que a Carta Magna de 1988 sofreu influências de todos os atores sociais da época, inclusive de pessoas que se beneficiaram com o regime ditatorial, contudo, ainda que de forma surpreendente, o pacto político culminou em uma carta democrática, extensa e com grande proteção dos direitos humanos.
Como dito pelos professores Oscar Vilhena Vieira e Ana Laura Pereira Barbosa, a Constituição tem a função de: “Contribuir para que a sociedade coordene democraticamente seus conflitos”. E em outro trecho, no texto: compromisso maximizador e resiliência Constitucional, os autores afirmam:
A atual Constituição brasileira resultou do mais amplo e democrático pacto firmado na história do país entre os múltiplos atores políticos e institucionais, setores e classes sociais. A reconstitucionalização brasileira não decorreu de uma ruptura com o antigo regime, mas foi parte essencial do processo de transição a que deu forma jurídica.
Participaram do momento constituinte tanto as diversas forcas democratizantes como aquelas que apoiaram e se beneficiaram do regime autoritário. Isso explica sua natureza compromissaria.
A elaboração da Carta Magna deu-se num contexto de forte desconfiança, fragmentação política e ausência de uma visão hegemônica sobre o pais. Esse ambiente explica por que, de modo geral, os diversos atores buscaram maximizar interesses, prerrogativas e aspirações próprios, entrincheirando-os no corpo constitucional.

O resultado dessa estratégia foi uma Constituição ampla, detalhista, ambiciosa e, em muitos aspectos, contraditória. Daí a ideia de um compromisso maximizador.
Essa miríade de posições, junto com todo esse sincretismo de ideias, elaborou o documento mais importante da República Brasileira que está, mesmo diante dos diversos ataques sofridos, resiliente no comando do Estado Democrático de Direito.
Conforme o texto de Barroso, falando sobre as crises dos últimos anos no Brasil, “todas essas crises foram enfrentadas dentro do quadro da legalidade constitucional. É impossível exagerar a importância desse fato, que significa a superação de muitos ciclos de atraso. O Brasil sempre fora o país do golpe de Estado, da quartelada, das mudanças autoritárias das regras do jogo”.
Há e houve sempre no Brasil, nas palavras do ministro Barroso: “as forças do atraso”, que sempre encontram uma solução inconstitucional ou ilegal para todo e qualquer problema da República.
A Constituição, portanto, é isto, possui força normativa e vincula. Nas palavras de Canotilho, Mendes, Sarlet e Streck[1]: “Por tudo isso, a Constituição (ainda) constitui. A constituição é norma. Tem força normativa. Vincula. Os princípios valem. São deontológicos. Eis um passo à frente das fases do constitucionalismo liberal e social. E a democracia passa a ser algo que depende não somente da política, mas também do direito. Dizendo de outro modo: no novo paradigma, as Constituições passam a ser o estofo que liga a política e o direito. E para a assegurar a aplicação desse novo paradigma, foi “inventada” a jurisdição Constitucional.”
Diante de todo este panorama, não há outra solução aos problemas políticos brasileiros do que cumprir a Constituição Federal, sendo inadmissível qualquer ofensa aos preceitos Constitucionais por meio de interpretações que subvertem a ordem Constitucional ou a proliferação de ideias contrárias ao Estado democrático de Direito.
Por outro lado, é preciso valorizar os poderes constituídos que estão enfrentando, ainda que com problemas institucionais, os ataques constantes ao estado democrático de direito e à Constituição Federal.
O Poder Legislativo se omite na defesa da ordem democrática e da Constituição Federal, pois, conforme afirmado pelo professor Ron Hirschl[2], a transferência de responsabilidade política para os tribunais é um meio eficaz para um “redirecionamento de culpa”. ” No mínimo, a transferência de “abacaxis” políticos para os tribunais oferece uma saída conveniente para políticos incapazes ou desinteressados em resolver disputas na esfera política. Essa transferência também pode representar um refúgio para políticos que buscam evitar dilemas difíceis, nas quais não há vitória possível, e/ou evitar o colapso de coalizões de governo em estado de fragilidade ou de impasse”.
A importância da Constituição Federal é inconteste, todavia, estamos muito longe ainda do estado de bem-estar social adequado e determinado pela Constituição, que deve ser efetivamente perseguido. Sendo assim, para finalizar, quedo-me com Kakay que, escrevendo acerca dos problemas institucionais brasileiros, fala sobre a busca pela utopia com Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
Vinicius Marinho Minhoto é procurador jurídico. Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de São Paulo e em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestrando em Direito Constitucional pela PUC/SP.
[1] CANOTILHO, J.J. Gomes. MENDES, Gilmar Ferreira. SARLET, Ingo Wolfgang. STRECK, Lenio Luis. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª edição. 2018. Saraiva jur.
[2] HIRSCHL, Ron. O novo Constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. Fordham Law review, v. 75, n° 2, 2006. Traduzido por Diego Werneck Arguelhes e Pedro Jimenez Cantisano.