Precisamos falar sobre encarceramento feminino
Apesar do número de mulheres aprisionada ser menor em relação aos homens, cerca de 38 mil, entre 2000 e 2014 a quantidade de mulheres presas aumentou 503%, enquanto a população masculina aumentou 228%
Amélia tem um filho pequeno com câncer, que deixou aos cuidados da mãe e do pai para cumprir uma pena de mais de 10 anos. No seu processo não consta informação sobre maternidade. Recebe visitas do filho na prisão em condições precárias, e questiona a estrutura do cárcere que viola muitos outros direitos para além da liberdade. Está presa por trabalhar em uma farmácia que vendia medicamentos falsos.
Beatriz, jovem de 20 anos, jogava capoeira e trabalhava em um condomínio com seu padrasto. No dia em que foi presa, estava com um cigarro de maconha que ia fumar. Apesar disso, foi processada como se estivesse na posse de um tijolo de maconha, que não lhe pertencia, encontrado em uma região próxima a que estava. Primária, foi condenada a mais de 4 anos de prisão.
Amélias, Beatrizes e tantas outras histórias como estas compõem o universo de mulheres encarceradas e entrevistadas pelo ITTC – Instituto Terra Trabalho e Cidadania, em seu relatório MulhereSemPrisao: desafios e possibilidades para reduzir a prisão provisória de mulheres, lançado em março. Uma das principais conclusões do relatório foi a invisibilização das especificidades de gênero dessas mulheres pelos atores do sistema de justiça.
O Brasil ostenta a quarta maior população prisional do mundo: aproximadamente 600 mil pessoas presas, segundo dados do Infopen 2014 (Ministério da Justiça). Apesar do número de mulheres ser menor em relação aos homens, cerca de 38 mil, entre 2000 e 2014 a quantidade de mulheres presas aumentou 503%, enquanto a população masculina aumentou 228%
A pena de prisão para a mulher é, em regra, especialmente cruel e, não poucas vezes, extrapola a pessoa presa para alcançar seus filhos, filhas e familiares. Muitas mulheres presas têm filhos pequenos que dependem direta e unicamente delas, já que a maioria das mulheres entrevistadas pela pesquisa eram as únicas provedoras de seus lares.
Estas demandas e necessidades específicas foram contempladas, em boa parte, pelas Regras de Bangkok e Tóquio que são recomendações da ONU para a aplicação de penas não privativas de liberdade.
Estas regras, de cuja elaboração o Brasil participou ativamente, partem do reconhecimento da violência de gênero historicamente sofrida pelas mulheres e ressaltam que a regra para mulheres selecionadas pela justiça criminal deve ser a liberdade, bem como propõem um olhar atento às necessidades específicas das mulheres presas.
O Brasil assumiu internacionalmente o compromisso de cumpri-las, o que deve trazer reflexos nas três esferas de Poder; desde a criação de políticas públicas capazes de dar amplo conhecimento e aplicação a estas regras (Executivo), passando pela elaboração de leis para sua implementação (Legislativo), e desembocando na obrigação do Judiciário proferir decisões contemplativas dos seus dispositivos.
A implementação efetiva das Regras de Bangkok e Tóquio podem significar uma evolução importante na substituição do cárcere por medidas alternativas mais às mulheres.
Amélias e Beatrizes são exemplos entre milhares de mulheres que não precisam e não deveriam estar presas. Para combater a chamada “crise carcerária” é preciso que tenhamos a inteligência de colocar em prática medidas realmente efetivas, como as ratificadas nos documentos internacionais e que respeitam os direitos das mulheres.
Guilherme Madi Rezende é advogado e vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC.
Michael Mary Nolan é advogada e presidenta do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC.