Problemas e soluções no discurso do candidato Bolsonaro
O tempo da política que se materializa nos períodos eleitorais é um dos momentos-chave de disputa hegemônica de visões e projetos de um país numa democracia. Leia o primeiro texto da série Deus, pátria e família que busca analisar os discursos nesse momento pré-eleitoral.
O tempo da política que se materializa nos períodos eleitorais é um dos momentos-chave de disputa hegemônica de visões e projetos de um país numa democracia. Apesar de o início das campanhas eleitorais, com a permissão da propaganda eleitoral, inclusive na internet, ter começado formalmente em 16 de agosto, o tempo da política já havia começado antes, por meio da construção e difusão de práticas discursivas dos candidatos à Presidência da República – assim como dos candidatos a governadores e, em menor medida, dos cargos legislativos no âmbito federal e estadual. Estas práticas incluem tanto falas – inclusive os seus silêncios, textos e imagens como performances, comportamentos, manifestações institucionais e extraoficiais, mobilizações e ações de diferentes tipos – veiculadas nas mídias tradicionais e nas mídias sociais, no período anterior ao início formal das campanhas eleitorais – que têm em comum o fato de serem politicamente significativas e buscarem, por meio dos significados que produzem e transmitem, construir sujeitos que se identificam com os candidatos e com os elementos da visão de mundo e das propostas apresentadas. Através dos componentes racionais, mas também emocionais, que compõem as práticas discursivas, procura-se construir os eleitores, o “seu povo”. Nesse universo, analisamos a elaboração, expressão e eficácia do discurso de uma das principais candidaturas presidenciais: a do atual presidente Jair Bolsonaro.
A análise procura responder à questão inicial: o que existe no mundo, segundo o discurso do candidato Bolsonaro? Ou mais precisamente: qual é o diagnóstico dos problemas, das injustiças e o prognóstico das soluções no Brasil em que vivemos?
Num segundo momento, procuramos compreender a fronteira antagônica que o discurso estabelece entre o “eles”, aqueles responsáveis pelos problemas e injustiças que nos afligem, e o “nós”, os diferentes grupos, portadores dessas demandas, que vão constituir o seu eleitorado, o “povo bolsonarista”.

O Corpo Discursivo da candidatura
Neste primeiro ponto, procuramos caracterizar a candidatura de Jair Messias Bolsonaro, atual presidente do Brasil e segundo colocado na maioria das pesquisas de opinião realizadas até setembro deste ano, antes do início do período eleitoral, e analisar suas diferentes práticas e estratégias discursivas – selecionadas a partir de uma amostra de notícias, reportagens, entrevistas, publicações em vídeos, imagens e textos nas contas ou perfis oficiais do candidato e seus seguidores e em plataformas como Twitter, Facebook, Tik Tok, Instagram e Telegram.
Cabe destacar que, tendo como referência para nossa análise a Teoria do Discurso, consideramos como parte desse Corpo Discursivo não só os aspectos linguísticos escritos e falados – textos, conversações etc. – mas também as práticas, performances e ações físicas dos agentes, por exemplo, as motociatas, Marchas para Jesus, performances em igrejas e mobilizações para o dia 7 de setembro.
A análise das mídias sociais merece uma atenção especial, com vistas a identificar não apenas os sentidos das mensagens emitidas, mas também quem são os interlocutores e receptores prioritários, bem como a pluralidade das ações previstas e desencadeadas nestas práticas discursivas. As mídias tradicionais, como redes de televisão e rádio, no momento pré-eleitoral, tentaram realizar as tradicionais entrevistas e debates com Bolsonaro e os demais candidatos. Contudo, o candidato Bolsonaro tem estrategicamente dado preferência, com muitos bons resultados, a conceder entrevistas em podcasts e canais que possuem grande engajamento nas redes sociais. Por exemplo, segundo o portal de notícias UOL, a audiência de Bolsonaro na participação do programa Flow foi quase o dobro que a live do candidato Lula no podpah, ambos canais veiculados em plataformas como Youtube e Instagram.
Por um lado, existem diversos canais que são prioritários e funcionam como bolhas midiáticas, propagando e promovendo conteúdos por seus influenciadores digitais, estando entre estes: o Brasil Paralelo, Os Pingos nos Is, pertencente ao grupo Jovem Pan, a Gazeta do Povo, o Conexão Política, a Revista Oeste. Por outro lado, as campanhas de Bolsonaro e Lula vêm traçando estratégias diferenciadas para cada plataforma utilizada, visto que em algumas conseguem alcançar públicos mais ideológicos que tornam difícil atingir potenciais novos eleitores, como o Twitter e Instagram, enquanto novas plataformas, como o Kwai, permitem alcançar os jovens eleitores, entre outras estratégias.
Qual o diagnóstico dos problemas e das injustiças segundo Bolsonaro?
A partir da análise, foi possível identificar os principais problemas e injustiças existentes no Brasil atualmente, e conforme o Marco do Diagnóstico do discurso bolsonarista, sintetizado em três eixos: (i) o Moral/Individual; (ii) o Político/Ideológico; e (iii) o de Governança/Gestão. Cada um desses deles é composto por uma série de elementos – ou significantes – que se articulam, formando uma cadeia de equivalência. A contiguidade dos elementos como elos dessa cadeia faz com que cada um assuma um significado particular pelos receptores do discurso.
Desta maneira, observou-se que os elementos que compõem os problemas identificados por Bolsonaro no Eixo Moral/Individual são: ideologia de gênero; legislação e práticas pró aborto; drogas; comportamento e cultura LGBT; bandidagem; ameaças de agressões sexuais às jovens de família; e violência.
Os elementos ou problemas do Eixo Político/Ideológico são: ameaça socialista; Venezuela, Cuba e crescimento da esquerda na América Latina; marxismo cultural; petismo; terrorismo; globalismo; ativismo judicial (STF / TSE); insegurança das urnas eletrônicas; muito Estado: impostos e ingerências na família e mercado; ambientalismo e demarcação de terras quilombolas e indígenas; indigenismo; ameaça à soberania nacional.
Por fim, no Eixo Governança/Gestão se articulam os seguintes problemas: inflação causada por aumento de preços de combustíveis, relacionado aos valores do ICMS cobrados nos postos e à diretoria da Petrobras; guerra entre Rússia e Ucrânia; corrupção de governos anteriores nas estatais; obras de infraestrutura inacabadas; má gestão de governadores e prefeitos no combate à Covid-19.
Ainda de acordo com o pensamento do candidato, tais problemas o levam a entender que existe uma pluralidade de Injustiças, indicadas na Tabela 1.
A construção das identidades antagônicas do “eles” e do “nós”
Num segundo momento, identificamos como o discurso da candidatura procura solucionar problemas e injustiças que existem no país, apontados anteriormente, e considerar o Marco do Prognóstico do candidato com a identificação das soluções propostas ou as Demandas do povo, conforme Tabela 2.
A elaboração destas Demandas permite estabelecer uma fronteira que diferencia de forma antagônica dois lados: no primeiro, encontram-se os inimigos do povo, “eles” – aqueles que causam essas injustiças no Brasil; no segundo, estão aqueles que são os portadores das demandas, os diferentes grupos e atores que vêm a conformar o “nós”, o “nosso povo” bolsonarista. Nesse sentido, é justamente o contraditório e o antagônico, na negação do ‘‘eles’’, que será formado o ‘nós’, conforme correspondências na Tabela 3.
Da mesma forma que as demandas, as “identidades antagônicas” constituídas pelas Práticas Discursivas de Bolsonaro se organizam a partir dos três principais Eixos que articulam os problemas e injustiças que atingem o país: o Moral/Individual; o Político/Ideológico; e o da Governança/Gestão. Abaixo, as demandas e as identidades antagônicas do “eles” e do “nós”, em cada Eixo:
1-No Eixo Moral/Individual, se constroem demandas como: Marchas para Jesus; Homeschooling; leis mais rígidas contra o aborto, como a fala de Bolsonaro: “Um bebê de SETE MESES de gestação, não se discute a forma como ele foi gerado, se está amparada ou não pela lei”; Repressão ao tráfico de drogas; excludente de ilicitude; liberação de armas; escola Cívico-Militar; proteção das famílias; luta do bem contra o mal; liberdade de expressão.
Essas demandas são resposta aos problemas e injustiças gerados por “eles”: os que do outro lado da fronteira antagônica representam o ‘mal’. Na conformação do “eles”, com a Prática Articulatória, construída em torno do Ponto Nodal Bandidos e vagabundos, o presidente, seus seguidores e aliados: (i) relacionam e conceituam os elementos comunidade LGBT ≡ feministas ≡ ativistas de Direitos Humanos ≡ estupradores ≡ bandidos ≡ integrantes do crime organizado: comandos e quadrilhas ≡ traficantes de drogas ≡ promotores de violência e desordem ≡ petistas ≡ representantes do Poder Judiciário ≡ corruptos e incompetentes ; (ii) constroem, por analogia, a Cadeia de Equivalência (‘eles’); e ainda (iii) alertam a sociedade para os Problemas/Injustiças causados por uma conspiração que envolve membros de elevadas cortes do Poder Judiciário, em conluio com ex-presidiários e marginais, cujo objetivo é proteger estupradores e traficantes, desqualificar as Forças Armadas, as forças auxiliares e as medidas necessárias à segurança da população, na cidade e na área rural. A característica mais recente da Prática Articulatória fundamentada em ‘Bandidos e vagabundos’ é o assalto à liberdade de expressão, que acontece quando não se tem mais o direito de manifestar as opiniões e antecede a perda de outras liberdades, como a de propriedade.
A partir das Demandas, e como resposta aos Problemas e Injustiças causados por “‘eles’”, o discurso de Bolsonaro constitui a identidade do ‘nós’ em torno do Ponto Nodal Defensores da Família Cristã congregando tradicionalistas ≡ Deus/Jesus ≡ homens e mulheres ≡ cidadão de bem ≡ defensores da liberdade de expressão e de culto ≡ militares e policiais ≡ povo armado ≡ líderes religiosos conservadores.
2- No Eixo Político/Ideológico, o discurso de Bolsonaro constrói e articula demandas como: Nossas liberdades, quando conclama que: “vamos mostrar que o nosso povo, mais do que querer, tem direito e exige paz, democracia, transparência e liberdade”; mídia independente; garantia da propriedade privada; soberania, desenvolvimento e segurança da nação; patriotismo; projeto e coesão nacional.
A Prática Articulatória definida pelo bolsonarismo identifica como causantes dos Problemas e Injustiças sofridas no país um ‘eles’ que, tendo como Ponto Nodal ‘Esquerdistas’: (i) relaciona e conceitualiza os elementos globalistas ≡ ativistas de movimentos identitários ≡ jornalistas e comunicadores ≡ ativistas de movimentos sociais ≡ intelectuais e professores ≡ artistas ≡ conspiracionistas ≡ esquerdistas ≡ terroristas ≡ comunistas ≡ socialistas ≡ social–democratas ≡ petistas ≡ ambientalistas ≡ Paulo Freire ≡ Gramsci ≡ Laclau ≡ corruptos ≡ ‘Venezuela/Cuba’ ≡ membros do MST ≡ defensores das urnas eletrônicas[87]; e (ii) alerta a sociedade para os Problemas/Injustiças causados. Os Problemas/Injustiças são denunciados ao se perceber uma conspiração que associa elites financeiras e líderes políticos mundiais, academia, mídia, Judiciário e a esquerda, agora travestida de defensora de causas ambientais e de minorias, que pretende o Globalismo: “(…) um movimento internacionalista, cujo objetivo é massificar a humanidade, progressivamente, para dominá-la; determinar, dirigir e controlar tanto as relações internacionais quanto as dos cidadãos entre si, por meio de intervenções e decretos autoritários.”[1]
Como resposta aos Problemas e Injustiças causadas por ‘‘eles’’ o discurso bolsonarista constitui o ‘nós’: defensores da liberdade de expressão e da propriedade ≡ nacionalistas e patriotas conservadores ≡ agentes dos mercados financeiro e produtivo ≡ representantes do agronegócio ≡ militares e policiais ≡ defensores da Constituição e da democracia ≡ povo armado ≡ milícias ≡ referências internacionais (países, partidos etc.) ≡ direitistas ≡ olavistas ≡ defensores do voto impresso, urnas auditáveis e eleições transparentes, articulados pelo Ponto Nodal Defensores da liberdade de expressão e da propriedade.
3- No Eixo Governança/Gestão, o discurso do candidato considerado alinha as seguintes Demandas para solucionar os problemas e injustiças: privatização das estatais; diminuição de impostos; soberania nacional, como ao falar que “nós defendemos o armamento para o cidadão de bem, (…) é a segurança para nossa soberania nacional”; liberdade de escolha para a população trabalhar (pandemia); autorização para governar; auxílio emergencial; Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família); transparência do processo eleitoral; Auxílio caminhoneiros (diesel); redução do ICMS; tratamento precoce/Cloroquina.
Os problemas e injustiças, segundo esse discurso, foram criados por um “eles” que, articulado em torno do Ponto Nodal, Governadores, prefeitos e Judiciário: (i) relaciona e conceitualiza os elementos cientistas e defensores da ciência ≡ apoiadores dos lockdowns ≡ oposicionistas da CPI da Covid-19 ≡ guerra Rússia / Ucrânia ≡ sindicalistas e defensores das mamatas e das estatais ≡ ativistas ambientalistas ≡ membros do Supremo Tribunal e de órgãos federais de controle ≡ governadores e demais contrários à diminuição da alíquota de ICMS sobre os preços dos combustíveis; e (ii) alerta a sociedade para os Problemas/Injustiças causados.
A partir das Demandas, que surgem como resposta aos Problemas e Injustiças causados por ‘‘eles’’, o discurso articula na identidade do ‘nós’ e em torno do Ponto Nodal Militares e parlamentares patriotas, grupos como: admiradores de Bolsonaro como mito, messias e mártir ≡ defensores da Constituição (‘jogam dentro das 4 linhas’) ≡ defensores e beneficiários das medidas emergenciais (Auxílio Brasil, auxílio diesel, gratuidade de idosos transporte) ≡, conservadores de direita e defensores da soberania nacional ≡ portadores de armas e frequentadores de clubes de tiro ≡ participantes de motociatas ≡ empreendedores ≡ “povo sem mimimi” ≡ médicos de “verdade” ≡ criacionistas ≡ terraplanistas ≡ antivacinas ≡ apoiadores da diminuição da alíquota de ICMS sobre os preços dos combustíveis’.
Como o leitor percebeu, até aqui foram observadas as conceituações do discurso do candidato Bolsonaro sobre o que há no mundo, sobre os problemas e suas valorações como injustiças que afligem o Brasil, a partir da análise do Marco do Diagnóstico. E também o Marco de Prognóstico do conjunto de soluções – ou Demandas – para superar esses Problemas, com a construção da fronteira antagônica que separa e identifica, por um lado, o “eles”, os responsáveis por essas mazelas, e, pelo outro, o “nós”, o povo portador dessas Demandas que visam solucionar os Problemas.
*Bruna Figueiredo Gonçalves e Henrique Duarte são doutorandos em Ciências Sociais pela UFFRJ, Alex Luiz Barros Vargas é doutor em Políticas Públicas Comparadas pela UFRRJ, Renan Alfenas de Mattos é doutorando em Sociologia pela UFF e Mariana Fernandes é advogada e mestranda em Ciências Sociais pela UFRRJ.
Essa matéria faz parte da série “Deus, pátria e família”. A continuidade desse texto acontece no artigo ‘Estratégias Discursivas do candidato Bolsonaro’.
[1] Sagres, Instituto. Projeto Nação – Cenários Prospectivos Brasil 2035 – Cenário Foco, Objetivos, Diretrizes e Óbices, Brasília, 2022.