Exposição de violência é trampolim para candidaturas eleitorais
Cresce o número de agentes públicos da segurança, apresentadores e repórteres de programas policialescos que ganham fama nas mídias e enveredam para as campanhas eleitorais. Leia no novo artigo do especial “Algo de novo sob o sol? Direito à Comunicação no primeiro ano do atual governo Lula”
Em quatro anos, entre 2018 e 2022, houve um crescimento de quase 100% em candidaturas políticas de apresentadores ou repórteres de programas policialescos no Brasil: foram 27 candidatos a deputado estadual, 11 a deputado federal, 4 a governador e 1 ao senado espalhados por catorze estados (BA, PB, CE, PI, AM, RR, MT, MG, ES, RJ, SP e PR), além do Distrito Federal. Os dados foram revelados pela pesquisa Mídia sem violações de direitos, realizada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, em 2022. De acordo com a pesquisa, o perfil dos comunicadores-políticos é formado por homens brancos (50%), e quase todos com experiência em eleições. Apenas uma mulher foi identificada como candidata.
Os programas policialescos estão presentes na programação das principais emissoras de TV e de rádio brasileiras, sendo consumidos diariamente, em horário nobre, por uma parcela significativa da população – o que garante uma boa visibilidade e o reconhecimento popular, sobretudo quando solucionam um problema imediato, como atender a um pedido de uma cesta básica ou de um botijão de gás. Nos últimos anos, um novo ator surge nesse cenário: os agentes de segurança pública, que ganham destaque no momento das entrevistas dos policialescos, a exemplo de delegados/as, policiais militares e civis e peritos/as. Há programas, como o extinto Alerta Nacional, transmitido pela Rede TV!, em que esses personagens figuravam como as únicas fontes das matérias.
Esse novo ator percebeu também que poderia utilizar os canais de comunicação como um caminho para se candidatar a algum cargo público. Não satisfeitos com o espaço que ocupam nos meios de comunicação hegemônicos, os agentes da segurança pública criaram seus próprios canais e perfis nas plataformas digitais, como Instagram, YouTube e TikTok. Nessa nova vitrine midiática, mostram aos internautas o cotidiano das operações policiais de que participam – algumas em tempo real – e compartilham vídeos de entrevistas que concedem a podcasts voltados ao tema da segurança pública, para falar sobre as condições de trabalho da categoria ou comemorar quando conseguem “cancelar o CPF de bandidos” (expressão utilizada inadequadamente quando a polícia mata algum suspeito ou acusado de crime). Além de todas as violações que essas ações comportam, nem sempre as operações divulgadas pelos policiais nas plataformas digitais são verdadeiras.
Os novos influencers e políticos da segurança pública
O ex-policial militar Gabriel Monteiro, do Rio de Janeiro, passou a ser investigado pelo Ministério Público após denúncias de seus próprios assessores, confirmando que algumas operações gravadas pela equipe do policial youtuber eram falsas. Em um dos vídeos divulgados, o ex-policial, que era filiado ao Partido Liberal (PL), do ex-presidente Jair Bolsonaro, aparece conversando com uma menina de 10 anos, persuadindo a criança a agradecê-lo por tê-la ajudado. Gabriel foi expulso da corporação sob diversas denúncias, dentre elas, indisciplina e desrespeito aos superiores hierárquicos. No entanto, elegeu-se vereador no auge da onda bolsonarista, em 2020, sendo o terceiro mais votado no seu estado. Teve seu mandato cassado, em 2022, pelo Conselho de Ética da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro por causa das acusações de violência sexual contra adolescentes, gravação e exibição de vídeos das relações sexuais, sem consentimento. Por esses crimes, Gabriel está preso. O canal do ex-policial militar no YouTube continua ativo, e atualmente conta com 6 milhões de inscritos. Segundo reportagem do The Intercept Brasil, Gabriel lucrava mais de R$ 1,2 milhão com os vídeos que produzia.
Na mesma postura ideológica de Gabriel está o ex-delegado da Polícia Civil de São Paulo, Carlos Alberto da Cunha, conhecido como delegado Da Cunha, título que dá nome ao seu canal no YouTube, com mais de 3 milhões de inscritos. O ex-delegado foi investigado pelo Ministério Público de São Paulo por monetização de seu canal no YouTube, o que pode configurar enriquecimento ilícito, conforme prevê a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92). Agentes públicos, como policiais, não podem, de acordo com a lei, usar seus cargos nem empregar bens e materiais da Polícia Civil em benefício próprio.
Em um dos vídeos, disponibilizado em seu canal, em 2021, Da Cunha aparece vestido com o fardamento da Polícia Civil de São Paulo, portando armas e distintivo. Ao fundo, um carro da PC com o nome no vidro traseiro “CERCO”. O vídeo tem 10 milhões de visualizações. Diversos pedidos de demissão de Da Cunha da Polícia Civil de São Paulo foram protocolados. Em 2022, o Conselho da Polícia Civil de São Paulo aprovou a segunda proposta de demissão do delegado. Fontes da polícia afirmam que a razão do novo pedido são declarações contra integrantes da cúpula da instituição, entre eles, o ex-delegado-geral Ruy Ferraz Fontes.
Com a visibilidade alcançada nas plataformas digitais, Da Cunha concorreu, em 2022, ao cargo de deputado federal por São Paulo, filiando-se ao Partido Progressista (PP), sendo eleito com 181.568 votos. Em novembro de 2023, uma nova denúncia contra o youtuber e deputado foi feita pelo Ministério Público de São Paulo. Dessa vez, Da Cunha foi acusado de violência doméstica contra a sua esposa, Betina Grusiecki. A violência aconteceu na residência onde o ex-delegado morava com a esposa, foi gravada e divulgada pelo programa dominical Fantástico, da TV Globo. Mesmo após a divulgação do vídeo, o deputado continuou no cargo.
Outra plataforma de vídeo que é bastante utilizada pelos agentes de segurança pública é o TikTok. Um exemplo de quem a utiliza é o policial militar Diego Santana Correia Oliveira, de Salvador. Só nessa plataforma, o policial possui 206 mil seguidores e acumula mais de 700 mil curtidas em seus vídeos, que divulgam o seu dia a dia, trechos de entrevistas dele a podcasts, como o FalaGlauber, e comentários sobre as ações da Polícia Militar no que o soldado denomina como de “combate ao crime”.
Diego Correia foi alvo de um processo administrativo disciplinar após comentários com acusações, sem provas, contra o ex-ministro da Justiça, Flávio Dino. O policial insinuou que Dino teria ligação com grupos criminosos do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, pois entrou na comunidade sem escolta policial. Até o momento, não consta nas redes sociais do policial informações se ele pretende se candidatar a algum cargo político nas eleições deste ano.
Além disso, Diego divulga desinformação em seu perfil no Tik Tok. Em um dos vídeos postados nessa plataforma, ele se pronuncia contra países como Cuba, China e Laos, a quem chama de maneira pejorativa de “comunistas”. “Atenção, você, comunista, a pobreza aumentou nesses países (…). Países onde líderes se perpetuam no poder”, diz Diego no seu perfil na rede. No entanto, ao se referir a esses países, Diego esquece de dizer aos seus seguidores que Cuba, por exemplo, fez eleições para um novo presidente em 2018 (promovendo a renovação no poder) e que as dificuldades financeiras enfrentadas pela Ilha estão relacionadas aos embargos comerciais realizados por países como os Estados Unidos.
Na Paraíba, a perita criminal Amanda Melo, conhecida como Amada CSI, ganhou visibilidade por meio de suas entrevistas na TV, em programas policialescos, nos quais comentava as cenas do crime que periciava. Em uma dessas entrevistas, em 2021, veiculada pelo policialesco Correio Verdade, da TV Correio, afiliada à RecordTV, Amanda disse que encontrou no apartamento do acusado de matar a jovem Patrícia Roberta, “livros de magia negra” (sic). Por se tratar de uma fonte oficial da Polícia Civil, a informação foi amplamente divulgada pela imprensa local.
No entanto, durante a entrevista coletiva à imprensa sobre o feminicídio da jovem pelos delegados da Polícia Civil, que investigavam o crime, os livros foram apresentados e não havia nenhum tipo de “magia”, mas as publicações da escritora J. K. Rowling, da série Harry Potter, e outras revistas em quadrinhos lidas por adolescentes. Amanda possui um canal no YouTube, com 164 mil inscritos, onde comenta crimes, dá dicas sobre séries e para concursos públicos na área policial e oferece cursos pagos para seus seguidores. Por causa de sua visibilidade na mídia, ela foi candidata a deputada federal pelo MDB, em 2022, mas não foi eleita. Amanda foi uma das policiais influencers catalogada na pesquisa do Intervozes, em 2022.
Outro delegado que se elegeu deputado federal em 2022, após visibilidade nas plataformas digitais, foi Paulo Bilinsky. Ele sempre aparecia nas redes portando armas de grosso calibre, como metralhadoras, e em treinamentos de tiros. O hoje ex-delegado é apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro, e em 2020, envolveu-se em um caso de violência que resultou na morte de sua namorada, a modelo Priscila Barrios, de apenas 27 anos. Segundo as investigações, a modelo teria atirado no delegado e se suicidado em seguida. A família da moça questionou o desfecho do inquérito, mas o Ministério Público de São Paulo recomendou o arquivamento do caso, em 2021.
Bilisnky possui um canal no YouTube com 14 mil inscritos. Os vídeos atacam o atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e propagam desinformação sobre governos de esquerda e o comunismo. Ele foi expulso da Polícia Civil de São Paulo após publicação de um vídeo com conteúdo racista, apologia ao estupro e constrangimento à mulher, no canal da Estratégia Concursos. O deputado fez um discurso na Câmara, em 2023, exaltando a participação do seu avô na polícia nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.
A coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), Edna Jatobá, vê com preocupação a ascensão desses agentes como influencers nas plataformas digitais. “Esses conteúdos são, na grande maioria das vezes, cerceadores e violadores de direitos. São conteúdos que reforçam o ódio e a violência, que disseminam a concordância com práticas de tortura e abusos. É preocupante também na medida em que esses profissionais se apropriam de ferramentas disponibilizadas pelo Estado para o combate à violência, para muitas vezes, além de usarem de maneira equivocada, ainda as usarem em benefício próprio, seja para ganhar seguidores e aumentar a monetização, seja para utilizar a exposição nessas plataformas como trampolim para cargos políticos.”, enfatiza.
Para Edna, as consequências que podem ser sentidas pela sociedade em relação aos policiais influencers são várias, dentre elas, uma maior adesão da sociedade às práticas arbitrárias da polícia, “ao que conhecemos como ‘justiçamento’, à violência e à tortura, uma maior militarização na política – já que parte desses personagens são eleitos para cargos no Legislativo e Executivo –, e ampliação de uma visão que coaduna com o recrudescimento penal, racismo institucional e morte”.
A necessidade urgente de regulação das plataformas digitais
“O uso de redes sociais por agentes públicos para a produção de conteúdos desse gênero tem gerado discussão. Isso porque legisladores, membros do Poder Executivo, especialistas em regulação de redes sociais e as próprias corporações policiais têm se questionado dos limites da prática que, comumente, envolve monetização”, comenta Iara Moura, da coordenação executiva do Intervozes. Segundo a jornalista, além de propagar desinformação e violação de direitos, os conteúdos postados por esses atores extrapolam os limites da liberdade de expressão preconizada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Convenção Americana de Direitos Humanos, pela Constituição Federal Brasileira e pelo Marco Civil da Internet (12.965/2014).
De acordo com Iara Moura, “segundo os parâmetros universais em matérias de direitos humanos, atualizados por relatorias especializadas para o contexto da internet, a liberdade de expressão não deve sobrepor-se aos demais direitos humanos, resguardando-se sempre a dignidade da pessoa humana”. Por isso, a especialista acredita que deve haver a regulação das plataformas digitais, como defende o documento “Padrões para uma regulação democrática das grandes plataformas que garanta a liberdade de expressão online e uma internet livre e aberta”.
Edna Jatobá sustenta que, além da regulação, é necessário responsabilizar esses agentes que usam as plataformas de maneira criminosa. “Os exemplos desse tipo de uso são fartos. Tem delegado até ‘simulando’, ‘atuando’ (no sentido de interpretar um personagem mesmo), em situações para dar mais contornos dramáticos aos seus conteúdos, e as responsabilizações não são tão fartas assim. E isso pode em alguma medida incentivar as novas ‘celebridades’ da segurança pública”, observa.
As corporações militares e civis não veem com bons olhos essa exposição dos policiais, peritos e outros agentes nas plataformas. Por isso, alguns estados criaram leis, instruções normativas e editaram portarias e recomendações para barrar ou disciplinar a participação deles nas redes e canais digitais. Na Câmara Federal e no Senado também existem alguns projetos de lei em tramitação sobre o tema. O PL 1674/2022, de autoria do deputado Áureo Ribeiro (Solidariedade/RJ), por exemplo, visa proibir que agentes públicos recebam vantagens econômicas com publicidade de conteúdo na internet. O texto prevê modificação da Lei de Improbidade Administrativa para enquadrar a conduta de monetização dos agentes públicos pelas plataformas, uma vez que o agente público estará obtendo vantagens pessoais por meio da condição do cargo que exerce.
Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado em 2022, nas 27 unidades federativas da União, mostra que, especificamente sobre o uso de redes sociais por agentes públicos do campo da segurança, as corporações acrescentaram dispositivos em seus regulamentos disciplinares, seja diretamente – citando expressamente o uso de redes sociais – ou indiretamente – remetendo a publicações em qualquer meio de comunicação e manifestações públicas. Entre os estados que estabeleceram regulamentos para o uso das plataformas digitais estão o Acre (portaria PMAC Nº 1151/2021), Alagoas (lei nº 9.028/2023), Bahia (portarias nº 020/16 e portaria nº 015/22 ) e Distrito Federal (portaria 1313/2023).
*Mabel Dias é jornalista, mestra em Comunicação pela UFPB, associada ao Coletivo Intervozes, observadora credenciada do Observatório Paraibano de Jornalismo e doutoranda em Comunicação pela UFPE.