Projetos, visões, cenários: reflexão à luz das propostas dos candidatos
Não adianta tomar emprestado soluções de outros países, ou ainda, copiar planos de outras cidades, pois para cada cidade é necessário estudar metodologias de leitura e de avaliação que resultem em resoluções particularizadas
Se alguém ainda cultiva a ideia de que o urbanismo é uma técnica árida, distante do cotidiano das pessoas, deveria estar atento ao horário eleitoral e às publicações nas redes sociais dos candidatos. Sem entrar no mérito das propostas, o que se vê é uma antecipação, às vezes simbólica, de alguma coisa que se consolidará no futuro. Mesmo sendo sumária, essa visão objetiva ilustrar ideias de cidade que responderiam à realidade e que, em certa medida, prospectariam intervenções futuras.
Pode-se objetar sobre o embasamento técnico das propostas, mas não se pode negar que não traduzam o anseio da materialização imediata de um pensamento visando seduzir os eleitores. Na sua maioria, colocam-se como hipóteses sobre os possíveis “remédios” para dada situação que deriva de uma posição político-cultural precisa, mas também, e sobretudo, da escuta daqueles sinais epifânicos, ainda que débeis e fragmentados, do que já acontece hoje aqui e ali na região, em cidades do território nacional ou mesmo no mundo.
Esse elenco de proposições que, no limiar, representaria o plano para modificações da cidade, é algo que ganha relevância não só para os urbanistas, mas para toda a população. E exige análise criteriosa com o objetivo claro de buscar uma possível racionalidade que possa viabilizar tal plano como obra para o “bem comum”, transformando-o em agente fundamental de ação em médio e longo prazo. Em linha de máxima, tais imagens podem refletir os rumos da cidade proposta pelo candidato ou pelo seu partido.
Há uma principal condição para que uma política de renovação urbana adquira sentido e coerência: é que as mesmas ações sejam, sem forçar, inseridas dentro de uma visão compartilhada e de longo prazo, porque no conjunto de ações, pelas quais essa renovação se materializaria, não estão representados apenas os interesses dos atores que se mobilizam, mas, sim, todo um mapa estratégico coerente cuja utilidade social pode ser demonstrada.
Ora, uma visão não é um plano: é algo muito menos detalhado e muito menos complexo. Uma visão não tende a definir direitos e deveres específicos, a construir procedimentos executivos, mas apenas a traçar uma linha de fuga, um horizonte de sentido para toda uma comunidade, especificando as estratégias destinadas para da visão se aproximar. Uma visão é aberta e flexível, mas tem poder discriminatório, já que nem todas as ações podem ser nela incluídas. Aceita, modifica ou rejeita uma ação, não numa base legal, mas numa base lógica de coerência substancial e formal. Quanto mais forte esse poder, porque absoluto ou partilhado, mais ele existe no fundo do “não dito”. Sisto V tinha uma visão clara do futuro de Roma, assim como Napoleão III e Haussmann tiveram de suas cidades. E, mais recentemente, também o arquiteto Oriol Bohigas, quando construiu a nova política urbana de Barcelona e o conjunto de projetos, através dos quais a cidade se tornou referência obrigatória no final do século XX.
Numa sociedade democrática e aberta, a construção de uma visão, dentro da qual diferentes ações específicas adquirem significado, não pode permanecer implícita, nem pode ser produzida por um poder que não é levado a prestar contas dela. Seria ilusório, porém, pensar que pode surgir diretamente de uma conversa mediada com os cidadãos, das exigências de participação. Aqueles que tentaram este caminho, fora de qualquer falsa retórica, apenas chegaram a propostas banais e redutivas dentro de horizontes espaciais, temporais e sociais muito limitados.
A estrada é outra e envolve, direta e principalmente, quem lida com o projeto da cidade e do território de forma muito mais ampla e civilmente responsável. Nem a construção de uma visão pode hoje permitir-se preceder ações específicas, reconstruindo um procedimento que vai do geral ao particular e que já demonstrou amplamente a sua ineficácia. Hoje, precisamos aceitar o desafio de um caminho mais difícil, que se desdobra simultaneamente em muitas direções e em diferentes níveis, que atravessa as escalas do tempo e dos espaços físico e social, das instituições e do poder.
Portanto, não adianta tomar emprestado soluções de outros países, ou ainda, copiar planos de outras cidades – prática frequente e explicitada no texto de vários planos diretores revisados –, pois para cada cidade ou nação é necessário estudar metodologias de leitura e de avaliação que resultem em resoluções particularizadas, com modalidades e instrumentos científicos adequados, levando-nos a prestar peculiar atenção aos detalhes, para justamente compreender a real escala da cidade e suas problemáticas, a sua exata medida. Porém, sem se furtar a discutir as práticas exitosas que povoam o imaginário de cada político e sua equipe, e sempre no sentido de inseri-las no contexto nas quais estão sendo geridas e, claro, o porquê de atingirem fortuna crítica.
A principal parece ser a ideia de uma construção contínua e paciente de cenários: “O que aconteceria se…”. Isso é um cenário. Numa sociedade democrática e aberta, todos são livres para apresentar propostas e justificá-las, utilizando os argumentos que considerem mais adequados. Devemos também aceitar a dimensão retórica das sociedades contemporâneas, o fluxo de imagens verbais e visuais, sedutoras ou aterrorizantes, que tentam nos induzir a aceitar ou rejeitar alguns aspectos possíveis do futuro, bem como do passado. Mas a tarefa de todo intelectual que reivindica legitimidade, incluindo arquitetos e urbanistas, é submeter cada uma dessas imagens a um severo escrutínio crítico, transformando-as, simultaneamente à construção de visões e projetos, em cenários. Esta não é uma mudança metodológica, mas uma revolução epistemológica radical.
Adalberto da Silva Retto Junior é doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza – Itália (2003), e professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi professor-pesquisador visitante na Universidade Panthéon Sorbonne Paris I – França (2011-2013); representante da Unesp no Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de SP (Condephaat) (2015 e 2016); e coordenador do curso de especialização lato sensu em Planejamento Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território – PlanUPP.