Verdade ou versão? Como campanhas políticas moldam narrativas
Incentivar a leitura crítica das mídias é essencial para separar fatos de meias-verdades
Você abre a sua rede social pela manhã e, de um lado, o atual prefeito afirma que vai “mostrar a verdade”; do outro, a oposição se compromete a “trazer a verdade ao povo”. Afinal, que verdade é essa? É possível que um mesmo assunto tenha verdades distintas ou que diferentes candidatos apresentem versões conflitantes sobre os mesmos fatos?
Hannah Arendt¹ faz uma distinção importante entre duas formas de verdade: a de fato (ou factual) e a racional. A primeira é baseada em evidências, verificável por meio de documentos, dados e investigações. Por exemplo, a quantidade de escolas construídas ou os índices de segurança pública são verdades que se sustentam em dados e provas incontestáveis. Em contraste, a verdade racional, que entra no campo da interpretação e especulação, pode ser moldada à experiência pessoal de cada um, adaptando-se a interesses particulares e agendas específicas.
Durante o período de campanha eleitoral, a linha entre essas duas verdades facilmente se desfaz, uma vez que a verdade factual pode se perder em meio a um emaranhado de opiniões e emoções. Um candidato pode apresentar dados e propostas e, simultaneamente, atacar o adversário ao fazer um discurso inflamatório; portanto, a verdade factual se dilui nesse contexto. Em uma guerra contra os fatos, Matthew D’Ancona² diz que não lidamos apenas com mentiras descaradas, mas sim com meias-verdades e fatos alternativos.

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Na era da pós-verdade, onde a crença pessoal se torna mais valiosa do que os fatos, Ralph Keyes³ aponta que surge uma terceira categoria de afirmações, que não são verdadeiras nem mentirosas e pode ser chamada de “verdade melhorada”, “neoverdade”, “verdade suave”, “verdade artificial” ou “verdade light”. Neste cenário, é necessário defender a verdade factual, tanto que Arendt endossa que a verificação dos fatos não deve ser conduzida por interesses partidários e de agentes políticos.
Em um ambiente propício para a desinformação, é fundamental que possamos desenvolver uma capacidade crítica para analisar a informação que consumimos nas mídias digitais. Nesse contexto, a educomunicação, que promove uma leitura crítica da mídia, é uma ferramenta para combater essa maré de desinformação. No espaço digital, onde os algoritmos criam bolhas de filtro e apresentam aos usuários conteúdos com os quais já estão familiarizados, essa habilidade se torna ainda mais vital para identificar o que é um fato.
Restabelecer a confiança na verdade factual requer um esforço coletivo, partindo da aceitação que vivemos em uma sociedade plural, onde a verdade muitas vezes desafia nossos preconceitos e paixões, exigindo mais tolerância para com o que nos parece estranho ou diferente. Disso, podemos tirar uma lição: é preciso respeitar a pluralidade de opiniões e rejeitar firmemente qualquer tentativa do poder de impor uma verdade única e absoluta.
Elisama Reis é Jornalista, Especialista em Mídia, Informação e Cultura pela USP.
¹ ARENDT, Hannah. “Verdade e Política”, in Entre o Passado e o Futuro. 8a ed. São Paulo, Perspectiva, 2019.
² D’ANCONA, Matthew. Pós-verdade: A nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. Tradução: Carlos Szlakj. 1ed. – Barueri: Faro Editorial, 2018.
³ KEYES, Ralph. A era da pós-verdade: desonestidade e enganação na vida contemporânea. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis, RJ: Vozes 2018.