Propostas para agora
A história ensina que as grandes crises nos países dominantes causam danos enormes na periferia do sistema. Mas elas também geram brechas que permitem avanços. Para escapar do colapso internacional é preciso aproveitar este momento com coragem de agir e de fixar objetivos realistas
Os economistas – oficiais e oficiosos – procuram, com boas ou más intenções, vender ilusões a respeito do impacto da crise financeira mundial em nosso país. Mas a idéia de que estamos “blindados” – ou, pelo menos, razoavelmente defendidos dessa reviravolta global – está sendo desmentida cada vez que os jornais estampam fotografias dos automóveis estacionados nos pátios das montadoras ou anunciam férias coletivas nas grandes fábricas.
Falemos, pois, seriamente: a crise já chegou ao Brasil. Não se sabe ao certo qual a sua dimensão, mas já há indicações suficientes para perceber que é grave e que atingirá a economia real. E que medidas o governo poderá tomar para evitar seus efeitos mais perversos?
Responder a esta pergunta sem se permitir ilusões e sem cair no desespero é o desafio posto aos brasileiros. A dificuldade, contudo, não diz respeito às condições objetivas de defesa da economia nacional. Um país do tamanho do nosso, com os recursos naturais de que dispõe e o grau de desenvolvimento das suas forças produtivas, obviamente tem condições para se defender dos efeitos mais perversos da crise.
O problema surge pelo lado da vontade política: não há hoje força política disposta e em condições de pôr em prática as medidas que a situação econômica requer. O governo não tem coragem de ferir os interesses mínimos do capital estrangeiro e das grandes empresas transnacionais, e as medidas que vem tomando até agora só se dirigiram à proteção dos bancos, das grandes indústrias e do agronegócio. Mas é claro que não há como defender a economia brasileira sem afetar esses poderosos interesses.
Dos grandes partidos que comandam o Congresso Nacional e os governos estaduais, também não há o que esperar. Apesar da retórica oposicionista dos tucanos e dos demos, todos eles estão alinhados disciplinadamente com a política do governo. Pior: nenhum deles se atreve a propor algo que discrepe das receitas fixadas pelos organismos financeiros internacionais – todas elas prejudiciais ao nosso país.
Os partidos de esquerda e os movimentos populares autênticos – as únicas forças que poderiam articular uma resistência eficaz – encontram-se, não apenas profundamente abalados pelas sucessivas derrotas políticas e eleitorais que vêm sofrendo há duas décadas, como estão divididos em relação à estratégia a adotar para fazer frente à hegemonia burguesa. Neste contexto, o primeiro passo para escapar do desespero consiste em considerar que, como a história ensina, as grandes crises nos países dominantes causam danos enormes na periferia do sistema, porém, geram brechas que, se aproveitadas, permitem avanços. A postura correta, portanto, não é a do desespero nem a da fuga para o ilusionismo, mas o empenho e a coragem de agir e de fixar objetivos realistas para a ação.
Não temos condições de aproveitar a crise para alavancar um novo processo de substituição de importações, como se fez na década de 1930, mas, se conseguíssemos formar uma sólida opinião pública em favor de algumas medidas drásticas no plano econômico, seria possível evitar o avanço ainda mais acelerado de um processo de neo-colonização do país. Tais medidas não evitariam perdas, carências e dificuldades, mas permitiriam não desperdiçar um empenho de mais de 80 anos na construção de um Estado-nação dotado de independência e autonomia.
O primeiro conjunto de medidas nessa direção consiste na recuperação do controle estatal sobre a política monetária, por meio da centralização do câmbio. Somente através da instituição do monopólio do Estado na compra e venda de moedas estrangeiras será possível prevenir a fuga de capitais e fazer uma seleção racional do uso dessas moedas com vistas à defesa do patrimônio nacional e da economia dos setores sociais mais vulneráveis aos impactos da crise.
Um segundo conjunto de medidas deveria desvincular o financiamento público e privado da produção econômica dos atuais padrões estabelecidos pelo mercado internacional. A mobilização da poupança interna é essencial para manter um ritmo de produção (industrial e agrícola) que possa impedir o crescimento calamitoso do desemprego e o desabastecimento de alguns setores estratégicos.
Finalmente, será indispensável manter o gasto público em educação, saúde, habitação e assistência social, a fim de não agravar ainda mais as carências das camadas de baixa renda. Não é preciso dizer que uma estratégia desse tipo provocará represálias dos setores atingidos.
O Brasil, isoladamente, não terá condições de resistir a esses ataques. Alianças externas serão necessárias e o primeiro passo nessa direção parece ser a busca de parceiros na América do Sul. Um grupo de economistas e cientistas sociais de 18 países, reunidos em Caracas no mês de outubro passado, deu o primeiro passo na exploração dessa possível brecha na muralha da crise.
O documento final do encontro enfatiza a necessidade de coordenar as políticas monetárias dos países do continente, a fim de evitar uma guerra de “desvalorizações competitivas”, cujo único efeito será o de agravar a crise e desatar rivalidades entre os países.
Assegurar soberania alimentar
Uma articulação maior dos bancos centrais possibilitará avanços na constituição de um Fundo do Sul, para atender a emergências fiscais das balanças de pagamentos dos países da região. Será possível ainda mobilizar recursos para colocar imediatamente em funcionamento o Banco do Sul e criar um Fundo Regional de Emergência Social, a fim de assegurar a soberania alimentar dos países e atenuar as dificuldades decorrentes da redução das remessas que os emigrantes sul-americanos nos países do hemisfério norte destinam aos seus parentes necessitados.
A rápida concretização desses projetos – todos eles já aprovados em reuniões de chefes de estado sul-americanos – livraria os países do jugo das condicionalidades que organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM) e Banco Internacional de Desenvolvimento (BID) lhes impõem atualmente e que serão agravadas agora, a fim de que os grandes capitais internacionais possam tirar proveito da fragilização dessas já tão frágeis economias.
A coordenação das políticas econômicas dos países da América do Sul possibilitará ainda que estes denunciem, com vigor, um sistema econômico internacional que descarr
ega nas costas dos trabalhadores e dos povos do mundo os custos da irresponsabilidade de suas instituições de controle financeiro.
A distância que separa o programa aqui resumido em suas grandes linhas e o nível de consciência da população a respeito da crise e de suas conseqüências pode dar ao leitor a impressão de que se trata de um exercício perfeitamente ocioso.
Não é. As grandes crises tornam o capitalismo mais perigoso do que usualmente. A competição intercapitalista acirra-se e junto com ela, o nível de barbárie, porque, para concentrar capital e socializar prejuízos, é preciso impor disciplina draconiana à classe trabalhadora e ao povo pobre.
Os constitucionalistas estão assustados com as alterações que o “Patriot Act” e leis semelhantes causaram na estrutura da democracia americana. Até mesmo em uma democracia capenga como a nossa, cujas normas constitucionais de proteção aos cidadãos não se aplicam, na prática, a mais de metade da população, a crise pode piorar as coisas. Já surgiram movimentos para criminalizar as organizações populares e inviabilizar o exercício do direito de greve.
Mas as grandes crises geram igualmente fatos nem sequer imagináveis em anos anteriores. Quem, há quatro anos, seria capaz de prever que a Lehman Brothers iria à falência?
O que restou de setores progressistas na sociedade brasileira precisa mobilizar-se com urgência para ajudar o povo a enfrentar os dois caminhos possíveis da crise, pois perderá o bonde da história o país que não for capaz de deixar a rotina de lado e abrir-se para a possibilidade do inédito que sempre surge nas encruzilhadas do capitalismo.
*Plínio Arruda Sampaio foi coordenador do plano de ação do governo de São Paulo (1958-62); secretário de negócios jurídicos da prefeitura de São Paulo; deputado federal; deputado constituinte; candidato a governador de São Paulo (1990 e 2006). Dirige atualmente o jornal eletrônico Correio da Cidadania (www.correiocidadania.com.br) e integra o Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.