Protesto e repressão
Confira a seguir os artigos da segunda etapa da série especial “Em defesa de direitos conquistados”, idealizada pelo Le Monde Diplomatique Brasil em parceria com o coletivo de mesmo nome organizado por um grupo de professores e pesquisadores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.Angela Alonso
Em 21 de março, dois grupos de estudantes da PUC-SP se manifestaram. Um trouxe trio elétrico, bandeira e hino nacionais e os slogans: “Sergio Moro, estamos com você”, “O meu partido é o Brasil”. A outra turma reagiu: “Não vai ter golpe”. O conflito de ideias evoluiu para as vias de fato e a Polícia Militar entrou em campo, munida de pouca paciência, alguns cassetetes e as indefectíveis bombas de efeito moral.
Protestos desse tipo viraram o dia a dia de nossas grandes cidades, contra ou a favor do governo. Até aí, nada de mais. Manifestações são o arroz com feijão das democracias. E até termômetro delas: ditaduras não suportam dissidentes. Contudo, além de manifestantes e governantes, tais atos contam com um ostensivo terceiro elemento: a polícia.
Ela vem garantir a ordem e apaziguar confrontos, como os da PUC. Mas, na prática, princípios se interpretam. A margem para tanto é larga porque manifestantes trafegam no meio-fio: reconhecem as autoridades, às quais endereçam clamores, mas as deslegitimam, considerando-as ineptas para efetivar suas demandas. Quando se anda na segunda linha, sempre se pode aspirar gás pimenta.
É que o Estado, como os manifestantes, tem postura ambivalente em relação a protestos. Mobilizações acontecem nas ruas, espaço público sujeito a regras que manifestantes nunca acatam in totum, por exemplo, ao burlar o perímetro que a polícia demarca como lícito para os atos. Ante a desobediência, os governos, por meio de seu braço policial, decodificam a lei, ora classificando os manifestantes como “opinião pública” legítima, ora como “vândalos” perturbadores da ordem. A rotulagem remete às estratégias clássicas de autoridades diante de protestos: tolerância, barganha, repressão.
Qual delas os governos preferem? Depende. Repressão demais tem efeito paradoxal: faz crescer o que se visava sufocar – como em junho de 2013. Já leniência em excesso também infla protestos, ao atestá-los isentos de risco, uma “festa da democracia”. Por isso, autoridades calculam ao orientar a polícia. Na equação, entra o grau de afinidade do governo com os manifestantes. Há os do contra, como os revigoradores para o governante. Daí por que, em vez de reprimir, barganhar ou tolerar, a autoridade pode pender para uma inusitada quarta opção: o congraçamento.
Autoridades e manifestantes
Tais diferenças de reação estatal ficaram patentes nas últimas megamanifestações. Em junho de 2013, a polícia abusou das bombas de efeito moral. Já em março de 2015, tirou retratos com manifestantes. Esse passado soou como um aviso de futuro para eventos do miolo de março. Tomemos os dos dias 13 e 18 em São Paulo.
No domingo, 13, polícia, autoridades, mídia e setores organizados da sociedade pularam a tolerância, indo direto ao congraçamento. Camaradagem desde o planejamento, com liberação da Avenida Paulista e organização digna de megashow. Associações patronais e empresas – como o Habib’s – conclamaram e subsidiaram o protesto. Hotéis franquearam toaletes e a Fiesp serviu aos participantes não esfihas ou coxinhas, mas carne de primeira. O beneplácito da grande mídia se escancarou em capa do Estadão, que, num arroubo, falou num “Occupy São Paulo”. A complacência policial ultrapassou a selfie e se materializou em ato prenhe de simbolismo: a tropa bateu continência para os manifestantes.
Na sexta-feira, 18, dia da manifestação pró-governo, mudou tudo. Embora tenham pré-agendado, os organizadores penaram, só vendo liberada a Paulista – ocupada por remanescentes do 13 – na manhã do dia do evento. Até então o governador se esmerara em declarações equívocas. Talvez temeroso de confronto entre os pró e os contra o governo, afinal acedeu à retirada dos domingueiros e de suas barracas de grife, com gentilezas e sem cassetetes. Para os que chegaram na sexta, nada de banheiros químicos. O apoio logístico veio dos aliados tradicionais do PT: os sindicatos. Em contraponto ao pato da Fiesp, bandeiras da CUT. Em vez de filé mignon, pão com mortadela. A mídia escrita e televisiva minimizou o ato do dia 18 na mesma proporção que magnificou o do dia 13. E, em vez de batalhão amistoso, as franjas do ato foram delimitadas pela tropa de choque.
Dois padrões de resposta do Estado e das elites sociais aos protestos, portanto. Pode-se conjecturar que ação desigual corresponda a número dissonante, já que o Datafolha contou cinco vezes mais pessoas no domingo que na sexta. Ainda assim, 100 mil pessoas é gente demais para ser desconsiderada. Então, talvez a diferença resida no tipo de gente que protesta.
Gente diferenciada
No dia 18, o batalhão de choque se posicionou a distância, mas preparado para o enfrentamento com os manifestantes. No dia 13, a Polícia Militar esbanjou simpatia, com a tropa de cerca viva do ato. Num caso, proteção; no outro, prontidão para o ataque.
A polícia distinguiu porque sempre distingue. Distingue por raça, prende e mata mais negros que brancos. Distingue por classe, prende e mata mais pobres que ricos. E reprime mais atos populares que de classe média. Para entender a variação de solicitude, cabe pôr a lupa nos manifestantes.
À primeira vista, no domingo e na sexta protestou o mesmo povo. Ou melhor, a mesma elite: varões de classe média. O Datafolha dá, para os dois dias, números idênticos para sexo (57% homens, 43% mulheres) e escolaridade (18% com ensino médio, 77% e 78% com superior), mais alta que a média da população. Não espanta: há mais mulheres na política das ruas que na das instituições, e a escolaridade é um corte, porque protestar requer acesso a conhecimentos e recursos. Esse perfil social talvez esclareça por que o choque não bateu. Mas a polícia aturou uns e se irmanou com outros. Deve então haver diferenças entre os manifestantes que abrem distâncias sociais.
Escolaridade elevada indica classe média. A renda confirma: o estrato que ganha entre cinco e dez salários mínimos compareceu em pé de igualdade nos eventos (26% e 28%). A discrepância está nas pontas da pirâmide social. Os mais pobres (até 5 s.m.) foram um terço dos presentes no dia 13 (31%) e perto da metade no dia 18 (44%). No ápice, a diferença se inverte: 37% dos domingueiros ganhavam mais de 10 s.m., com destaque para empresários; já na sexta, a faixa caiu para um quarto dos manifestantes (24%) – funcionários públicos e profissionais liberais. De outro modo, a residência diz o mesmo: os de sexta moram em proporções parecidas das zonas leste, oeste e centro, ao passo que um terço dos de domingo veio da zona sul – e suas roupas atestam que dos condomínios, não das favelas.
Patente é a silhueta mais jovem (48% tinham até 35 anos, no dia 18; já 40% passavam dos 51, no dia 13) e mais negra da sexta-feira. No domingo, 15% se disseram pardos e apenas 4% pretos. Já na sexta, o número de pretos triplicou e, somados aos pardos, responderam por quase um terço dos presentes (31%) – o que se via a olho nu. Para não perder a escala: na Pnad de 2014, 40,3% dos paulistanos se autodeclararam pretos ou pardos. O pessoal de sexta, portanto, representa mais fidedignamente os paulistanos que o de domingo.
O governador, os policiais e a elite econômica local se deram conta da gente diferenciada. E agiram de acordo.
Pró e anti
A diferenciação reassomou nas pautas: antiPT/pró-Moro, no domingo, anti-impeachment/pró-Lula, na sexta.
No 18, embora organizadores e muitos participantes tenham tentado a desvinculação, o vermelho dominou. A presença de Lula sacramentou o ato como de em apoio ao governo. Os slogans recuperaram a antiga agenda petista: defesa do Estado de direito (“não vai ter golpe”) e de direitos sociais e individuais (redistributivismo, igualdade de gênero, vide os adesivos roxinhos de Frida Kahlo), ataque a Eduardo Cunha em particular e a adversários de Lula em geral e ao oligopólio dos meios de comunicação (“o povo não é bobo, abaixo a rede globo”). E um clamor por tolerância: “Eu não te odeio”.
Já no domingo, o oposto: o Judas malhado foi Lula, sob forma de Pixuleco, com Sérgio Moro ungido a cristo salvador. Reprovação ao PT e ao governo, mas também a “políticos em geral”, que vitimou Alckmin e Aécio, corridos da manifestação. A tônica foi a exigência de moralidade pública, sem advogar alternativas. Como na Espanha, “que se vayan todos”, uma antipolítica. Um dos poucos a discursar foi um militar: Jair Bolsonaro. Não por acaso, pois opiniões consonantes como as suas bordaram o evento, em demonstrações contundentes de ira santa, com referências a Deus e à família, e impropérios a adversários. Um destes, muito jovem, berrou um “não vai ter golpe”. Quase o lincharam. A polícia, impassível, escoltou-o lentamente em meio à turba raivosa, que externou todos os preconceitos conhecidos, culminados num “viadinho”.
Jogo é jogo
Enquanto no domingo na Paulista policiais testaram sua fotogenia, no protesto na PUC, mencionado ao início, um grupo gritava: “Não acabou, tem que acabar. Eu quero o fim da Polícia Militar”. Os policiais tratam diferentemente os manifestantes, que retribuem. Durante, “o mesmo que para um jogo de futebol.” Resumiu bem: a polícia está disponível para o a manifestação, perguntei a um dos soldados que treinamento ele recebera para atuar na Paulista. “O padrão”, respondeu congraçamento, quando o time joga a seu favor, e pronta para descer o cacete, em caso contrário.
Angela Alonso é professora livre-docente da Universidade de São Paulo e presidente do Cebrap.