Pura especulação
Da mesma forma que a academia no século XVIII, hoje quem consagra o artista é o colecionador. Os candidatos à fama precisam ter agentes poderosos e manter-se cobiçados pelos fundos especulativos, que já atingiram o mercado de arte. Quanto mais mídia conseguirem, mais alto é o preço de venda de suas obras
Em 21 de junho de 2007, uma das obras do britânico Damien Hirst recebeu um lance inédito para um artista vivo: € 13 milhões. Quando Lullaby Spring, um armário de metal repleto de comprimidos pintado à mão, foi arrematado na sede da Sotheby’s, em Londres, Hirst tinha 42 anos.
Pouco tempo depois, esse mesmo artista ultrapassou seu próprio recorde: For the Love of God, um crânio do século XIX moldado em platina e cravejado de 8.601 diamantes, foi vendido por € 73 milhões pela galeria londrina White Cube a um grupo de investidores anônimos. O valor cobriu o gasto de € 19 milhões que Hirst teve com os 1.106 quilates que ornamentam a caveira.
Desde os ready-made de Marcel Duchamp – peças industriais assinadas pelo artista sem terem sido criadas por ele –, tínhamos aprendido que qualquer objeto poderia se transformar em obra de arte. “Não é mais possível avaliar uma obra em função de suas características materiais e, particularmente, de sua adequação a um determinado parâmetro de beleza, como acontecia no tempo da academia. Outros critérios, como o savoir-faire, o trabalho, a inovação, a técnica, o perfeito domínio do ofício, a originalidade e a autenticidade, tampouco estão em voga hoje. Nenhum deles conta na hora de fixar o preço das obras contemporâneas”, afirma Nathalie Moureau, economista especializada em cultura. Tanto que uma primeira vitrine farmacêutica, Lullaby Winter, com características muito semelhantes a Lullaby Spring, alcançou € 5 milhões no leilão da Christie’s em Nova York um mês antes da venda de sua consorte por mais que o dobro desse valor. Qual será o motivo para a diferença de € 8 milhões entre uma e outra? Será que é apenas porque a Sotheby’s consegue mobilizar mais a mídia? Ou porque o dinamismo do mercado de arte londrino está sempre pronto a apoiar os artistas britânicos? A explicação estaria, talvez, na própria personalidade de Hirst e na sua poderosa rede de marchands, galeristas e colecionadores, particularmente ativa naquela noite. Quem sabe?
No final da década de 1980, Damien Hirst conheceu Charles Saatchi, homem de negócios britânico e proprietário de uma das mais importantes agências de publicidade do mundo. Artista e colecionador rapidamente se entenderam: as extravagâncias provocativas de um entusiasmaram o senso midiático do outro. Em 1995, Hirst recebeu o cobiçadíssimo Turner Prize, concedido anualmente pela Tate Britain desde 1984 a artistas da cena britânica. Como o prêmio é criação do Patrons of New Art, grupo de mecenas londrino fundado pelo próprio Saatchi, em associação com a Tate, certamente houve algum tipo de influência sobre o júri na escolha de Mother and Child – um bezerro cortado em duas partes imersas numa solução de formoldeido. A premiação de Hirst tinha muitas vantagens: além de eleger uma obra de grande valor midiático – para a felicidade de seu novo patrocinador, a cadeia televisiva Channel Four –, também consagrava o olhar acurado de Saatchi, agregando valor às peças que ele já tinha adquirido. Para os especuladores, os sinais eram patentes: instituição e mercado caminhavam de mãos dadas. Só restava acompanhar a tendência. Três anos depois, a cifra dos negócios de Hirst havia aumentado 1.039%.
Saatchi desempenhou, portanto, um papel fundamental nessa história. “Hoje, quem certifica a obra é o comprador, da mesma forma que a academia fazia no século XVIII”, avalia o sociólogo Alain Quemin. Mais e melhor que qualquer instituição, o grande colecionador consagra o artista, que acumula poder financeiro e capital social. “O conjunto de recursos aplicados nas obras advém de redes de influências e é fruto da capacidade de seus membros de legitimar a arte. Se analisarmos a lista dos 200 maiores colecionadores mundiais, descobriremos que a maioria deles pertence ao conselho de administração de um museu”, diz Nathalie Moureau.
E muitos são também donos de museus. François Pinault, o papa do luxo francês, inaugurou o Palazzo Grassi de Veneza e entregou sua direção ao ex-ministro da Cultura da França, Jean-Jacques Aillagon. O corretor imobiliário e bilionário americano Eli Broad lançou seu próprio museu de arte contemporânea – o Los Angeles Country Museum of Art – sob a batuta do arquiteto Renzo Piano, conhecido por ter participado da idealização do Centro Georges Pompidou, em Paris. Já o barão belga Guy Ullens, um dos primeiros compradores da arte contemporânea chinesa, criou seu museu-fundação The Ullens Center for Contemporary Art, o primeiro do gênero na China.
Da mesma forma, com a ajuda do leiloei-ro suíço Simon de Pury, Saatchi vai inaugurar, em 9 de outubro, seu novo museu de arte contemporânea em Chelsea, no coração da capital inglesa. Muito bem equipada, a galeria contará até com salas de aula para que professores e estudantes possam se familiarizar com as obras expostas, a partir da ajuda de especialistas.
Para Aude de Kerros, ensaísta e pintor, os grandes colecionadores são hoje uma bússola para o mundo da arte contemporânea. “Os critérios tradicionais que estabeleciam o valor de uma obra no mercado de arte antiga, impressionista e moderna não se aplicam mais às peculiaridades da arte contemporânea. O que determina seu preço não é a obra em si, mas a rede de influências que a cerca. Assim, para o comprador, o que conta é o poder do marchand e a solidez de sua carteira de colecionadores”, explica. Georges Armaos, historiador da arte encarregado de parte da clientela da Gagosian Gallery, uma das mais poderosas galerias americanas, confirma: “De fato, os colecionadores compram suas obras em galerias reconhecidas porque sabem que o galerista ou o marchand garantirá sua perenidade no mercado”. Porém, para ele, “além de qualquer consideração mercantil, a maioria, principalmente os europeus, adquirem as obras com as quais desejam conviver”.
Pode ser. Mas, como qualquer mercado econômico, esse também precisa hierarquizar seus critérios de qualidade para funcionar. Não é surpreendente, portanto, que tais critérios estejam menos afeitos às obras e mais próximos dos círculos de poder daqueles que as negociam. É por isso que o “Power 100”, ranking das cem personalidades mais influentes no mundo da arte contemporânea, editado pela revista anglo-saxã Art Review, é tão esperado a cada ano. Poucos artistas estão incluídos em suas classificações, são apenas 19% do total, mas os colecionadores passaram de 19% em 2002 a 31% em 2007, seguidos pelos galeristas e intermediários, que agora chegam a 22% das pessoas listadas. E como os colecionadores estão onde o dinheiro está, 74% deles são americanos ou britânicos.
“A galeria Gagosian [instalada em Beverly Hills, Nova York, Londres e Roma], por exemplo, det&eacut
e;m anualmente um volume de negócios ao menos 15 vezes superior ao nosso, que é de € 15 milhões. Com freqüência, o comprador escolhe artistas de seu próprio país, às vezes pela simples razão da proximidade geográfica. Por isso, as obras dos anglo-saxões estão entre as mais cotadas”, observa Jean Frémon, diretor associado da galeria Lelong, uma das mais célebres na França.
“Qualquer um pode se tornar um artista plástico, ou pelo menos tentar. Nem todos, porém, terão êxito. É preciso saber vender-se”, sublinhou o filósofo Christian Delacampagne. Assim, quanto mais invisível a obra é diante dos cânones artísticos tradicionais, mais o artista deve dar visibilidade aos seus registros subversivos. E o que não falta é estratégia de marketing. Para atrair a clientela mais afortunada, alguns trabalham a transgressão com uma lógica empresarial. Uma cabeça de vaca em decomposição de Damien Hirst ou uma virgem coberta de fezes de Chris Ofili podem responder às expectativas de um determinado segmento do mercado. Ao mesmo tempo, a natureza corrosiva da subversão acaba prejudicada quando os artistas aceitam que essas mesmas obras sejam subvencionadas por instituições e “patronos”.
Alguns usam as celebridades como modelos, esperando que elas se tornem suas clientes e promovam gratuitamente suas obras na mídia. Assim, o britânico Marc Quinn esculpiu a modelo Kate Moss, e o americano Jeff Koons, Michael Jackson e seu chipanzé Bubbles – arrematado, aliás,- por US$ 5,6 milhões por um armador norueguês na Sotheby’s. Para Caroline Bourgois, diretora do Fundo Regional de Arte Contemporânea da Île-de-France, “as novas fortunas cultuam o imediatismo. As formas devem ser compreensíveis para serem sedutoras. Observar um Jeff Koons exige menos esforço que outros artistas”. Mas se Koons é tão popular é também porque soube “fazer-se apreciar” pelas celebridades da moda. Seu casamento com a atriz-pornô Cicciolina certamente contribuiu em algo. Material farto para a imprensa sensacionalista, o artista dotou suas peças de uma aura midiática indispensável ao ego dos compradores. O paradoxo é que são os próprios compradores que acabam emprestando às obras o estatuto de ícones – por preços muitos altos, é claro.
Ou alguém por acaso falaria de Hanging Heart, um coração gigante, cromado em cor-de-rosa e enlaçado por uma fita dourada, se a peça não tivesse atingido um preço estrambótico nas salas de vendas dos leilões? Para comercializar a mercadoria, a Sotheby’s ressaltou as milhares de horas de trabalho que Koons (ou, mais precisamente, os operários de sua oficina) consagrou à obra. E foi baseada nesse critério um tanto distante do mundo da arte que a casa de leilões vendeu o coração por € 16 milhões em 14 de novembro de 2007. Um preço, aliás, que ultrapassou o recorde anterior do armário farmacêutico de Hirst. “Se não valesse mesmo nada, um colecionador bem informado não chegaria a um preço desses”, justificava um marchand. Mas é indiscutível que quanto mais aumenta o valor de uma obra, mais diminui a capacidade de crítica. Do vendedor ao leiloeiro, todos empurram o preço para cima. “De fato”, concluiu ironicamente um observador do mercado, “o que o comprador levou para casa não foi bem uma peça, mas um preço. Por vezes, a obra é tão débil que cabe perguntar se o dinheiro ainda possui algum valor nesse meio em que é tão abundante.”
Pouco importa. A arte contemporânea anda de vento em popa e assenta as fortunas adquiridas rapidamente. “Ela é o ingresso a ser pago para entrar em um circuito de relações em que a pessoa é julgada pelos critérios de solvabilidade. Isso é particularmente importante para os novos empresários dos países emergentes”, comenta Aude de Kerros. China, Índia e Brasil são algumas das nações que começam a experimentar esse fenômeno: “Os compradores sabem que os preços da arte contemporânea indiana logo seguirão o desenvolvimento do país. O ponto positivo desse súbito interesse é finalmente o reconhecimento, do ponto de vista financeiro, daqueles grandes artistas que a cena internacional ainda trata com indiferença”, observa Hervé Perdriolle, especialista em arte indiana. Com a multiplicação das feiras de arte pelos quatro cantos do mundo, as casas de leilão reforçam seu poder de atração com influentes instrumentos de marketing.
Desmaterializado, o mercado de arte contemporânea globaliza-se com facilidade. Galerias, casas de leilão e bases de dados especializadas fornecem, on line, todo tipo de informação ao comprador. Documentação, análises e estudos relativos aos potenciais das peças cobiçadas seduzem particularmente os fundos especulativos. A Artprice.com, líder mundial em dados de cotação da arte contemporânea e detentora de vários índices e resultados de vendas de 405 mil artistas, fornece estudos, análises e estatísticas. Os mais recentes, de janeiro deste ano, calculam em tempo real a confiança dos atores desse mercado para acompanhar suas reações a temas de estrita atualidade, tais como variação das bolsas, acontecimentos geopolíticos e resultados de uma venda espetacular.
Alguns artistas se recusam a fazer parte dessa engrenagem. Um deles é Emmanuel Barcilon. “Quanto mais eventos, mais você deve produzir. E quanto mais você produz, menos está suscetível a se regenerar e a criar”, afirma. Embora tenha compradores imediatos para suas obras, ele não pretende ultrapassar 15 peças por ano. “No sistema atual, isso pode ser um problema”, alerta seu galerista, Marc Hourdequin, da Dukan & Hourdequin de Marselha. Afinal, o mercado, tão preso à mídia, contamina os apaixonados por arte e os conduz a reflexos especulativos. “Eles escutam, mais do que olham”, lastima um galerista. “Mas como criticá-los quando o que se promove é menos a cultura e mais seu resultado? Estamos perto de desejar uma crise financeira para purgar certas cotações indecentes. Reencontrar os valores artísticos ocultos sob valores financeiros. Não esqueçamos que o mercado de arte vive ao ritmo dos ciclos econômicos.” Por enquanto, alguns grandes compradores ainda puxam o mercado para o alto.
Claro, a crise dos créditos imobiliários americanos está por toda parte, mas ela era esperada pelos mais precavidos. É por isso que, entre aqueles investidores que pediram anonimato ao adquirirem For the Love of God, estava o próprio Damien Hirst, seu autor. Para melhor dominar a comercialização de suas obras, Hirst já havia comprado algumas peças de seu antigo colecionador, Saatchi, em 2003. Recentemente, Hirst organizou quatro instalações na Tate. Sem dúvida, a intenção era oferecer uma vitrine prestigiosa para as suas obras, consolidar sua posição no
mercado e tranqüilizar sua rede de galeristas, colecionadores e casas de vendas. Algumas destas, cotadas na Bolsa, estão adstritas a satisfazer seus acionistas-colecionadores. Tudo para se precaver da crise. Oficialmente, porém, tratava-se de uma espécie de agradecimento à Tate, que antes o consagrara.
No fim das contas, tudo se resume ao questionamento de Hans Belting: por que uma cabeça de vaca em decomposição não poderia fazer parte da arte contemporânea quando esta, livre de suas “pretensões tradicionais de autonomia estética, é compreendida apenas como mais um sistema de reprodução simbólica do mundo?”.
*Philippe Pataud Célérier é jornalista.