Qual é a inspiração da política externa de Trump?
Há um ano a ascensão de Donald Trump ao poder modificava a posição dos Estados Unidos em variados assuntos: acordos comerciais, clima, confronto com a Coreia do Norte e com o Irã, alinhamento incondicional a Israel. Porém, a ruptura comporta diversos elementos de continuidade em relação às escolas históricas da diplomacia norte-americana
No dia 6 de novembro de 2017, em uma nota virulenta do New York Times intitulada “Aniversário do apocalipse”, a editorialista Michelle Goldberg evocou com intensidade o primeiro ano de administração de Donald Trump. Um “pesadelo”, ataca ela, durante o qual “o impensável se tornou cotidiano”.1 A julgar pela quantidade de reprovações expressas por especialistas e formadores de opinião do eixo BosNyWash (Boston, Nova York, Washington), Goldberg não parece ser a única a experimentar um sentimento de expropriação quanto à evolução pela qual passa os Estados Unidos depois das investidas do 45º presidente.
O descompasso entre a administração atual e as elites tradicionais norte-americanas explode. A cena política, eletrizada pelas declarações e caprichos de Trump, assim como pelas condenações de adversários cada vez mais exasperados, parece uma permanente rixa cultural, na qual conservadores, populistas e progressistas, alimentados pelo ódio, não poupam golpes baixos, sob o olhar dos parceiros internacionais de Washington, assim como de seus concorrentes. Esse pandemônio se deve inteiramente ao novo presidente? Talvez não. A deriva maniqueísta do debate norte-americano é na verdade anterior ao presidente Trump. Longe de ser a causa da extrema polarização atual, o inquilino da Casa Branca, contudo, encarna sua expressão mais visível.
Um aglutinador… contra si mesmo
Assim, não é na cena política interna que se deve procurar a verdadeira ruptura trazida por essa abordagem ao mesmo tempo ardilosa, hesitante, brutal, obstinada, confusa e narcisista do “trumpismo”: as consequências se dão, antes, no campo das relações internacionais. Até agora, a prática externa norte-americana estava marcada por um relativo consenso em termos de princípios, valores e grandes orientações estratégicas. Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro da administração de Jimmy Carter e um dos arquitetos do esquema de dominação do mundo “livre” antes e depois da Guerra Fria, explicava esse consenso e posicionava os Estados Unidos como autoridade soberana e interessada no mundo, porém benevolente: “Dotada de extraordinária onipresença mundial, a América tem o direito de se beneficiar de um nível de segurança superior a todos os outros países […]. Esse papel terá mais chance de ser bem-sucedido e aceito se o resto do mundo admitir que a grande estratégia da América visa instaurar uma comunidade mundial de interesses compartilhados”,2 defendia.
No entanto, Trump – para quem o mundo é um caos (a mess), e o homem, “o mais maldoso de todos os animais”3 – não parece longe de pensar que Brzezinski, falecido no último 26 de maio, era, no fundo, o oráculo supervalorizado de uma época datada. A “nova ordem mundial” não seria a “ordem do novo mundo”? O presidente dos Estados Unidos não lamentaria muito se assim fosse, desde que algumas promessas à sua base eleitoral fossem cumpridas, os Estados Unidos superassem seus concorrentes no plano militar e saísse vitorioso dos acordos bilaterais que viesse a firmar no futuro. Trump não acredita, portanto, que o interesse norte-americano repouse em parcerias mutuamente benéficas na Ásia-Pacífico, Europa e Oriente Médio. De fato, anulou o Acordo Transpacífico; desmantelou o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta); questionou o acordo de livre-comércio com a Coreia; e interrogou-se – retoricamente – sobre a utilidade da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), denunciando o comportamento de “passageiro clandestino” da maior parte de seus tributários europeus, em primeiro lugar a Alemanha.
Abalados por esse incessante turbilhão de questionamentos sistemáticos, os pilares de apoio da “grande estratégia” gestada a partir das acomodações de forças pós-Segunda Guerra Mundial parecem – à primeira vista – vacilar. Os profissionais da diplomacia norte-americana assistem a essas perturbações sem poder reagir. Dois terços dos postos de trabalho do Departamento de Estado não foram preenchidos pela administração, pois o presidente os julga “totalmente inúteis”.4 A esse desdém, os especialistas em política internacional opõem seu cordial desprezo, declarando que o presidente não tem visão, projeto diretor ou estratégia. Desse ponto de vista, Trump dá mostras de suas subestimadas capacidades aglutinadoras… contra si mesmo: seus apoiadores estão sendo recrutados tanto – algo chocante – pelos institucionalistas liberais do Partido Democrata quanto pelos republicanos herdeiros do neoconservadorismo da era Bush. “O verdadeiro problema com os planos de política internacional de Trump? É que ele não tem nenhum”, preocupa-se o liberal David Ignatius no Washington Post.5 Será que Trump pretende levar os Estados Unidos para certo egoísmo diplomático, indigno da missão moral do país? Ou está apenas navegando sem compasso ou bússola, confiando nos instintos?
O primeiro problema dos comentaristas atuais da política externa norte-americana é supor uma estabilidade que estaria em risco com a atual administração de Trump, como no caso de Robert Zoellick, ex-presidente do Banco Mundial, secretário de Estado adjunto e diretor-geral da Goldman Sachs. “A política externa de Trump representa uma ruptura em relação à dos presidentes tanto democratas como republicanos, desde Harry Truman [presidente de 1945 a 1953]”, explica. Esses ex-presidentes sempre consideraram os interesses nacionais e internacionais como duas faces da mesma moeda.6
Há verdades e inverdades nesse julgamento, e também é preciso distinguir o plano da ideologia (a “visão”) do plano da prática (as “políticas”). Do ponto de vista instrumental da prática, o dogma de uma estabilidade bipartidária é um mito. Trump se inscreve (com inaptidão e brutalidade) em um dos ciclos curtos de oscilação tática entre “maximalismo” e “retração” que marca, há muito tempo, a diplomacia dos Estados Unidos.7 Ele não é o primeiro. Dwight Eisenhower (1953-1961) tinha acabado com o ativismo da primeira Guerra Fria. John F. Kennedy, com certa dose de irresponsabilidade, relançou esse ativismo em 1961. A partir de 1969, Richard Nixon encarnou uma retração reticente e cheia de paradoxos (distensionou a relação com a China, mas impulsionou a cruzada anticomunista na América Latina). Ronald Reagan é um maximalista declarado, que critica o período de retração pelo qual seria responsável a administração de Carter. Barack Obama, com seu conceito de “construir a nação em casa”, estabeleceu uma ruptura com o ativismo maximalista dos anos Clinton e Bush, mas foi menos oposto no plano externo do que se dizia. Trump se inscreve no ritmo desses ciclos políticos cambiantes.
Alinhamento nacionalista e militarista
A essas práticas conjunturais de natureza tática, é preciso sobrepor um segundo plano interpretativo, o da “grande estratégia”, ou, mais exatamente, o da “visão”. Nesse campo, se por um lado os Estados Unidos têm apenas uma bíblia, por outro dispõem de muitas liturgias: a dos “exemplaristas”, como Thomas Jefferson (presidente de 1801 a 1809) e depois Jimmy Carter (1977-1981), que desejavam que a “cidade sobre a colina” fosse um exemplo para o mundo; a dos isolacionistas, como Warren Harding (1921-1923) e seu precursor, John Quincy Adams (1797-1801), que se recusavam a “ir para o estrangeiro procurar monstros para destruir”;8 a liturgia dos adeptos do equilíbrio das grandes potências, como Nixon; a dos imperialistas, da qual Theodore Roosevelt (1901-1909) foi o melhor exemplo;9 ou a dos internacionalistas, sejam eles messiânicos, como Woodrow Wilson (1913-1921), ou pragmáticos, como Obama.10 À primeira vista, a divergência dessas perspectivas é tal que, para enxergá-las mais claramente, a teoria das relações internacionais reagrupa por “famílias” simplificadas as visões externas dos Estados Unidos.
A mais célebre é a de Walter Russell Mead, que divide a política externa norte-americana em quatro tendências arquetípicas, cada uma delas relacionada ao pensamento de figuras políticas marcantes: a de Alexander Hamilton, primeiro secretário do Tesouro (1789-1795), “realista” e determinada pelos desafios comerciais;11 a do presidente Thomas Jefferson (1801-1809), permeada pelos ideais democráticos; a de Woodrow Wilson, defensor dos princípios morais; e a de Andrew Jackson (1829-1837), nacionalista e militarista.12
Hoje é comum relacionar a visão de Trump à de Jackson, que dá pistas sobre sua prática interna e externa. Ao tomar posse da Casa Branca, Trump rapidamente pendurou o retrato de Jackson na sala oval e, menos de dois meses depois do discurso de posse, fez uma peregrinação na propriedade histórica do sétimo presidente, em Nashville. Alguns se incomodam com essa filiação intempestiva, denunciando o fato de Jackson ter sido proprietário de escravos, além de responsável pela “Trilha de Lágrimas”, que custou a vida de milhares de índios choctaws, forçados a deixar suas terras por expulsões brutais em 1831. Trump, populista no interior e nacionalista no exterior, prefere ver em seu predecessor um herói popular da luta contra a elite política corrompida da Costa Leste e líder dos trabalhadores da classe média que tornaram a América “grande”, para quem prometeu que retornaria.
Essa filiação jacksoniana é suficiente para esclarecer a originalidade do trumpismo? Sem dúvida não, pois o jacksonismo, mais político que filosófico, prioriza a prática, e não a visão. Em outros termos, apesar de seu estilo abrasivo e grosseiro dissimular esse aspecto, o atual presidente, jacksonista ou não, continua na prática a respeitar a linha de conduta habitual de uma América que não tem amigos, e sim partners, acionistas minoritários de estruturas de apoio político e militar offshore, e de quem Washington é o acionista majoritário, sempre atento ao retorno de seus investimentos e participações.
Se existe uma ruptura de Trump no campo das relações internacionais, ela não se situa no plano do estilo ou da prática política (escolha de alianças, designação de adversários, influência nos tribunais internacionais), e sim no plano da visão. Trump não quer mais exportar democracia. No Washington Post, Anna Applebaum denuncia “a sombria promessa de Trump de um retorno a um passado mítico”;13 em outras palavras, a traição herética da ordem liberal ocidental. Trata-se de uma opinião compartilhada por inúmeros comentaristas, de David Frum, ex-redator de discursos de George W. Bush, a Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, que vê em Trump uma “ameaça existencial” para a Europa atlantista. Sintetizando as críticas, o comentarista neoconservador Charles Krauthammer pronuncia a sentença: “Um mundo livre marcado pela abertura do comércio e da defesa mútua era a visão do presidente Truman, compartilhada por cada um de nossos presidentes desde então. Até hoje”.14 Antítese do excepcionalismo norte-americano, o proprietário de Mar-a-Lago seria o coágulo inesperado que ameaça de embolia um projeto moral estabelecido há mais de cem anos sob a forma de uma “nação universal, que persegue objetivos de valor universal”, para retomar a definição de Jefferson, um de seus pais fundadores.
No que tange à “visão”, é igualmente necessário relativizar. O atual locatário da Casa Branca trai os ideais norte-americanos. Mas quais? Sob a forma liberal intervencionista, esses ideais foram apenas um momento do paradigma externo dos Estados Unidos, da forma como a história permite que seja visto. Da presidência de George Washington à de William McKinley, ou seja, de 1789 a 1901, de fato existiu um primeiro consenso diplomático norte-americano, muito diferente daquele descrito por Applebaum ou Krauthammer. Essencialmente isolacionista, a política externa de Washington se limitava então a dominar o continente norte-americano, fazendo frutificar seu comércio e evitando se envolver em alianças restritivas. Foi apenas com a conquista do posto de primeira economia mundial, no início do século XX, que os Estados Unidos, convertendo sua prosperidade em poder, projetaram-se politicamente em escala global, fenômeno cuja virada espetacular, em detrimento da Espanha, teve como marco a “esplêndida guerrinha” de 1898 no Caribe.
É dessa conquista de poder que data o “segundo consenso”. Duas linhas estruturam essa nova fase em que o excepcionalismo moral norte-americano passou da introversão à extroversão: o fator nacional, de um lado, e o fator moral, de outro. O primeiro é simbolizado pela presidência de Theodore Roosevelt; o segundo, pela de Woodrow Wilson. Geralmente convém opor esses dois símbolos. Progressista na política interior, Roosevelt era um intervencionista aguerrido em assuntos externos: a política externa desse war lover revelou-se bélica e imperialista.15
Woodrow Wilson, por outro lado, é considerado o próprio protótipo de idealista no plano diplomático: em 1917, se entrou em guerra contra a Alemanha, foi em nome do direito e de uma forte concepção de superioridade moral norte-americana. Contudo, opor a realpolitik de Roosevelt, o “guerreador”, ao viés idealista de Wilson, “o padre”, não parece pertinente.16 Um exemplo que demonstra essa ponderação, entre outros, é a forma como Albert Beveridge, senador e conselheiro próximo de Roosevelt, definia a missão dos Estados Unidos, segundo seu discurso no Senado, em 9 de janeiro de 1900, intitulado “Em defesa do imperialismo norte-americano”: “Deus nos fez mestres organizadores para estabelecer um sistema em um mundo onde reina o caos. A nós foi conferido o espírito do progresso para vencer as forças reativas sobre toda a Terra. Deus nos fez adeptos do governo com o qual devemos administrar os povos selvagens e senis. Sem essa força, o mundo recairá na escuridão e na barbárie”.17 Esse discurso reforça antes o idealismo universalista que a realpolitik. Da mesma forma, mas no sentido inverso, o cientista político Stanley Hoffmann ressaltou a ambivalência do idealismo wilsoniano: “Wilson é uma figura exemplar porque seu nobre ideal de uma moral não maquiavélica para o chefe de Estado termina em tragédia e porque, como defensor dos interesses da nação, ele muitas vezes incorria em maquiavelismos”.18
A unanimidade do segundo consenso
Tudo isso sugere que falar de um “wilsonismo agressivo” para qualificar o neoconservadorismo norte-americano não parece justo: o homem dos catorze pontos, para acabar com a Primeira Guerra Mundial, jamais parou de defender ferrenhamente os interesses de sua nação. O wilsonismo sempre foi agressivo, como mostram as intervenções no México (1914, 1916), na República Dominicana (1916-1924) e no Panamá (1918-1921). Nesse sentido, a dupla Roosevelt-Wilson é, portanto, uma alegoria, não de dualidade, mas da unicidade da política externa norte-americana; o fato representativo de que cada um pode atravessar o outro (o reflexo nacional é prioritário para Roosevelt, e o reflexo moral domina em Wilson), mas os dois não se separam jamais. Não há nenhuma oposição entre essas duas perspectivas, e sim uma convergência ao mesmo tempo “excepcionalista”, intervencionista e, mais ou menos discreta, imperialista.
Essa convergência, interiorizada pela elite norte-americana, forma a base do segundo consenso, compartilhado tanto pelos republicanos quanto pelos democratas, e que pouco a pouco substituiu o primeiro “consenso isolacionista” (Stephen Krasner). Do início do século XX até nossos dias, a célula fundadora dessa visão de conjunto não foi colocada em questão pelas agitações políticas conjunturais das diferentes administrações entre maximalismo e retração. Essa coerência de visão se deve ao fato de que a matriz filosófica e espiritual da República norte-americana continha em seu princípio, desde 1776, tanto o imperialismo rooseveltiano, o moralismo wilsoniano e o realismo de segurança nacional de Truman quanto a diplomacia dos direitos humanos de Bill Clinton. Essa plasticidade fundadora permitiu que a partição do segundo consenso – síntese entre prosperidade comercial, missão moral e potência global – fosse harmoniosamente executada, para além das oposições intelectuais que os “realistas” e os “idealistas” norte-americanos às vezes sobrevalorizam no plano teórico.
É a essa unanimidade do segundo consenso que se deve confrontar o fenômeno Trump para tentar medir a capacidade real de ruptura que ele poderia eventualmente representar. Apegado tanto à ideia de prosperidade comercial como à de potência global de seu país, Trump de fato é o primeiro a se recusar a queimar o incenso diante da terceira vertente do tríptico, a da missão moral. Ao renunciar a esse aspecto, ele retorna não exatamente ao isolacionismo singular do período entreguerras, durante o qual o slogan “America first” [América em primeiro lugar] poderia aparentemente se encaixar, e sim ao distanciamento diplomático que, de Washington a McKinley, e sob a égide da Doutrina Monroe de 1823, precedeu o surgimento da potência rooseveltiana-wilsoniana dos anos 1890 a 1920, que constituiu o segundo consenso.
Alguns elementos fazem pensar que Trump é consciente desse status herético. “A partir de hoje, a política desse país jamais será a mesma”, escreve no prefácio de seu discurso de posse. Palavras de refundação que talvez seja imprudente reduzir a simples falatório do personagem contumaz. Conselheiro de segurança nacional de Trump, o general McMaster emprestou sua pluma a uma explicação textual no Wall Street Journal de 1º de junho de 2017, prevenindo que o presidente a quem servia tinha “a visão clara de que o mundo não é uma ‘comunidade global’, e sim uma arena na qual as nações, os atores não governamentais e os atores econômicos se engajam e lutam por vantagens e benefícios. Nós trazemos a essa arena uma força militar, política, econômica, cultural e moral sem concorrência. Em vez de negar essa natureza elementar das relações internacionais, nós a assumimos”.19
Esse texto caiu como uma bomba no establishment diplomático norte-americano. A força militar é evocada em primeiro lugar, e a força moral, por último, o que era algo moderadamente inesperado para a pluma de um leitor assíduo de Tucídides, assim como H. R. McMaster.20 Suspeitar que Trump não tenha lido A Guerra do Peloponeso não ajuda, pois ele age como se conhecesse na íntegra o célebre diálogo em que os talassocratas atenienses dão uma dura lição nos habitantes de Melos que tentam evitar o pagamento de tributos: “Do nosso lado, não usaremos belas frases; não argumentaremos que nossa dominação é justa […]. Chega desses longos discursos que despertam apenas desconfiança! […] Nós sabemos, e vocês também sabem: a justiça não é levada em consideração na argumentação dos homens, exceto se as forças forem iguais por parte de um e outro; caso contrário, os fortes exercem seu poder e os fracos devem obedecer a eles”.21 Em 2018, o orçamento do Pentágono, de US$ 692 bilhões, será acrescido de 100 bilhões em relação ao de 2016 (mandato de Barack Obama). Lembremos que, nessa ocasião, o requerimento presidencial inicial foi consideravelmente reforçado pelos parlamentares, tanto republicanos como democratas: nesse campo, o “jacksonismo” (ou pelo menos seu aspecto militarista) vai muito além da pessoa e apoios diretos do anfitrião da Casa Branca.
Outros dirigentes norte-americanos, antes e depois do atual presidente, expressaram sua recusa em fazer da política externa uma ideologia messiânica e sua vontade de confiá-la a um conjunto de correlação de forças interessadas, com investimentos focados e participação resiliente. “The chief business of the American people is business” [O negócio principal do povo norte-americano são os negócios]: assim como de Jackson, Trump procede, no plano da práxis diplomática, segundo essa palavra de ordem proclamada em 1925 por Calvin Coolidge, trigésimo presidente dos Estados Unidos. Desse ponto de vista, não são as revistas de política internacional que se devem percorrer para aproximar-se do enigma Trump, mas – talvez – as revistas como a Forbes. Esse periódico, que representa a quintessência dessa obsessão pelo “sucesso”, força e dinheiro que marca uma parte da cultura norte-americana, entrevistou Trump longamente em novembro de 2017. Nada de desprezo, hostilidade ou elogio no tratamento do artigo, apenas a simples curiosidade técnica de fazedores de dinheiro intrigados pelo percurso de um deles, que se diferencia de seus iguais apenas por uma dose mais marcada de vulgaridade, brutalidade e falta de cultura – e, nesse sentido, por uma forma paradoxal de honestidade.
Esse propósito comunitário permite à Forbes uma leitura distanciada e amoral mais profunda que a do New York Times: “Herdar as chaves do governo norte-americano é comparável ao fato de chegar à direção de uma corporação como a General Electric ou a Microsoft”, constatam placidamente os autores. “É preciso assumir uma parte de continuidade – honrar os compromissos precedentes e gerir a empresa/país da melhor forma possível, voltando-se para novas prioridades ou políticas. O espírito transacional de Trump, contudo, não considera as coisas dessa forma (da mesma maneira que muitos de seus apoiadores, que esperam antes de tudo mudanças radicais). Se ele considera que os políticos precedentes chegaram a acordos ruins (bad deals), ele simplesmente não vê nenhuma razão para honrá-los, seja à custa da reputação da América ou da percepção de uma estabilidade da política norte-americana.”22
Enquanto a história se encarrega de julgar essa presidência barroca e difícil de decifrar, o problema fundamental é que Trump reduz a política externa de seu país a uma série de deals (acordos). Todos os seus predecessores agiram dessa forma, porém com uma roupagem mais polida e educada. Não se trata também da característica do atual presidente de anunciar uma coisa (a revisão pragmática das relações com a Rússia) e fazer outra (prolongar a tensão russo-norte-americana), ou ainda de sua decisão de fazer da imprevisibilidade um fim diplomático em si, como teoriza Nikki Haley, a representante norte-americana na ONU.23 Quanto à sua obsessão por Andrew Jackson, de fato ela é singular, mas, sem dúvida, fornece um ponto de vista explicativo para parte do enigma.
O verdadeiro problema de Trump parece a limitação territorial de seu talento pessoal, excessivamente valorizado por ele mesmo. Talvez seu espírito transacional permita de fato julgar com acuidade o conteúdo dos acordos que ele desfaz ou renegocia, mas a ausência de fineza na interação parece impedi-lo de julgar simultaneamente o contexto mais geral desses mesmos acordos e suas consequências a longo prazo. Esse estupor, que poderia ser considerado mera hipótese nesses últimos meses, hoje ganha contornos de probabilidade. Anunciada em 6 de dezembro de 2017, a transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém constitui um exemplo de inquietação. Não se trata de um simples erro, mas de uma falha colossal, que alinha Washington às posições do Likud e acaba com qualquer legitimidade dos Estados Unidos como garantidor de um processo de paz equitativo. Nesse caso, não houve nenhuma sabedoria relacional nem mesmo conhecimento transacional. Trump não negociou nada: deixou tudo nas mãos de seu protegido, sem contrapartida aparente.
Se esse tipo de deriva se torna sistemática, o fato – essencial – de saber se Trump pensou ou não conscientemente em retornar ao primeiro consenso norte-americano corre o risco de se tornar acessório. Que uma nova visão o inspira, isso é outra coisa. Que talvez ele tenha uma aptidão a encarnar, é outra. O urgente é medir a capacidade real do presidente norte-americano de estabelecer acordos equilibrados que não acarretem reações em cadeia inesperadas no campo das relações internacionais. Em La Pesanteur et la grâce [A gravidade e a graça], Simone Weil observa que “o equilíbrio sozinho destrói, anula a força” e conclui que “a ordem social só pode ser um equilíbrio de forças”. Assim são as relações internacionais. Ao recusar essa lógica do equilíbrio, o 45º presidente dos Estados Unidos trai menos o idealismo norte-americano – carregado de excepcionalismos moralizantes que muitas vezes desviam a diplomacia desse país – que o realismo político, que não separa a defesa de interesses nacionais da faculdade de levar em conta os interesses dos outros em momentos de negociação. O peso dessa decisão terá um custo.
*Olivier Zajek é mestre de conferência em Ciência Política da Universidade Jean-Moulin – Lyon-III, França.