¿Que pasa?
A impressão que fica é que o abandono das populações de ambos os lados por parte dos governantes pode ser intencional e orquestrado para explodir em outubro na mídia nacional, de forma a mostrar a todos o que acontece com os tolos que votam em projetos da esquerda
Parece que por todo o país a primeira reação ao saber sobre a explosão de violência contra os venezuelanos em Pacaraima foi de tristeza e vergonha. Projetamos nos compatriotas nossos mais puros sentimentos altruístas e esperamos que os roraimenses recebam os venezuelanos de braços abertos para podermos dormir tranquilos, sabendo que nosso povo é cordial, hospitaleiro, de bom coração. Esquecemos como tratamos os migrantes de nosso próprio país, o estigma negativo com que no Sul e Sudeste tratam nordestinos e nortistas que para lá vão em busca de sonhos tão singelos como um emprego e uma vida digna. Esquecemos que nas grandes cidades, a maioria da população em situação de rua é composta de migrantes. Esquecemos que embaixo do verniz da cordialidade, somos um povo ainda racista, misógino, homofóbico e xenófobo. E nossa xenofobia tem endereço. É direcionada contra latino-americanos, africanos e asiáticos. Europeus e norte-americanos por aqui são tratados como reis. Temos inclusive uma versão sui generis de xenofobia destinada aos indígenas, habitantes originais de nosso território, mas que são expurgados constantemente como ervas daninhas, exilados em seu próprio território. Pelo menos é assim que sempre foi e é assim que a mídia e a escola em geral se esforçam em manter. Mas estamos mudando. Há uma grande parcela da população que já consegue se desvencilhar de suas cordas de títeres e construir a própria visão crítica de mundo. Escolas não convencionais, novas universidades federais, movimentos sociais, mídias alternativas e internet contribuem para que ao menos alguns de nós tenham a possibilidade de enxergar além desse grande véu de Maya que nos entorpece a visão. Precisamos lembrar, no entanto, que a maior parte da população é formada pelos meios convencionais e seguem cordialmente as instruções da indústria cultural.
Mas a complexidade do tema não para nesse ponto. Roraima é um dos estados mais pobres do país, último no ranking do IBGE 2017 no valor do PIB e o 13º pior na comparação da renda per capta, mesmo que inflada pelas grandes fortunas de políticos e fazendeiros. Existe em Boa Vista um sério lapso de políticas públicas essenciais. Segundo o IBGE, é o penúltimo estado em saneamento básico. De acordo com reportagens em jornais locais, não há vagas em creches para todas as crianças e a população sofre em hospitais lotados e mal equipados (segundo o Tribunal de Contas da União, a saúde pública em Roraima enfrenta “dificuldades acentuadas”). Roraima está entre os cinco estados brasileiros com maior taxa de suicídio, com predominância de jovens. Outro título vergonhoso é ser o estado que mais mata mulheres no país. O feminicídio em Roraima é quase três vezes maior que a média nacional. Segundo levantamento da ONG Human Rights Watch, são 11,4 homicídios para cada 100 mil mulheres. Mesmo assim, Roraima conta com apenas uma delegacia de atendimento especializado à mulher (que não funciona aos finais de semana).
Isto posto vem a questão: como ajudar o outro se nós mesmos precisamos de ajuda? Os próprios roraimenses têm mostrado que é possível dividir o pão, mesmo que escasso. Já faz cerca de três anos que o estado recebe diariamente novos refugiados venezuelanos e, pelo menos até a pouco, sem grandes conflitos. Claro que nunca foi um mar de rosas, que a truculência ensinada ao nosso povo é replicada em atos de covardia e preconceito, mas no geral a população vinha recebendo sim os venezuelanos de braços abertos. Acontece que as ações práticas de hospitalidade do cotidiano da população, como compartilhar comida, realizar doações, oferecer empregos temporários e o trabalho voluntário em abrigos e instituições religiosas não são suficientes. Nem a indústria da emergência. Nem as ações do estado até agora.
As instituições e organismos não governamentais têm atuado na assistência aos refugiados com o acolhimento, a montagem e gestão de abrigos, a distribuição de comida, roupas e kits de higiene.
A Universidade Federal de Roraima (UFRR), a Universidade Estadual de Roraima (UERR) e o Instituto Federal de Roraima (IFRR) oferecem cursos de português aos estrangeiros e promovem atividades de extensão como debates e comitivas de acolhimento aos imigrantes. A UFRR cedeu um prédio para a instalação do Centro de Referência para Imigrantes, e alunos e professores das três instituições, principalmente do curso de Relações Internacionais da UFRR, têm se dedicado a estudar a complexidade da questão, que inclui o contexto histórico, político, social, econômico e cultural do fenômeno das migrações no mundo todo, na América Latina e no caso Venezuela-Brasil em específico, além da análise da crise Venezuelana e da crise do Brasil pós-golpe.
O governo federal anunciou a construção de onze abrigos, o encaminhamento de duzentos profissionais de assistência social, além da destinação de verba para o Exército e para o estado de Roraima. Até agora são dez abrigos pelo estado, atendendo a 4.600 venezuelanos. Todos são administrados em parcerias o Sistema ONU, ONGs e o Exército, e teriam alimentação gratuita. Mas muitas vezes falta comida e medicamentos entre outros itens essenciais e parece que o governo espera que ONU e ONGs resolvam o que é de sua responsabilidade. A interiorização dos migrantes levou apenas 1.500 venezuelanos para outros sete estados da Federação.
A Câmara dos Deputados promulgou a Lei de “assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária” no Brasil (Lei 13.684/18). As principais determinações da lei é a instituição do Comitê Federal de Assistência Emergencial e a “permissão” da presença da sociedade civil na execução das medidas emergenciais. Sem surpresas, a legislação prioriza as ações e serviços de saúde e segurança pública. Contudo, não especifica quem serão os integrantes do referido Comitê.
O Ministério da Defesa recebeu um crédito extra de R$ 190 milhões e criou a Operação Acolhida, que visa a “distribuição de alimentos, melhoras nas condições dos abrigos e apoio de saúde”. Ao Exército coube a Operação Controle, para “aumentar a segurança na faixa de fronteira roraimense, intensificando a triagem e o controle dos refugiados, direcionando-os para os centros de acolhimento e auxiliando o processo de interiorização deles no Brasil ou de retorno à Venezuela”. O resultado é a militarização do estado.
O governo de Roraima, que já tentou fechar a fronteira do país, mas foi impedido pelo STF, publicou em 1º de agosto um decreto que restringe o acesso de estrangeiros a serviços públicos. A Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) ajuizaram uma ação civil pública contra o decreto, inconstitucional, segundo a DPU. Para o MPF, a medida, além de não diminuir efeitos da crise, pode implicar na proliferação descontrolada de doenças no território nacional e da xenofobia. O juiz Hélder Barreto suspendeu dois artigos do decreto em questão que versam sobre deportação e expulsão de venezuelanos.
A prefeitura de Boa Vista realizou um mapeamento em junho deste ano para saber quantos venezuelanos se encontram na cidade e fechou com tapume a Praça Simon Bolivar em março após retirar, com a força de trezentos policiais, 940 venezuelanos que lá residiam e transferir os 871 que estavam cadastrados para dois abrigos temporários. No fim de abril, a Praça Capitão Clovis, que abrigava cerca de trezentos venezuelanos, também foi cercada com tapumes e desocupada numa ação semelhante.
O governo estadual parece perdido, tentando desesperadamente dar um fim ao problema via soluções inconstitucionais e a prefeitura tenta manter a aparência de normalidade. As ações do governo federal, principal responsável para a resolução da questão, ainda são pouco efetivas, e têm o Exército como principal executor.
O problema é que todas essas ações, além de insuficientes ao que se propõem, estão focadas apenas na assistência emergencial. Contudo, a crise na Venezuela não está mostrando sinais de arrefecimento, muito pelo contrário. De acordo com a Polícia Federal, até fevereiro deste ano, mais de 50 mil venezuelanos haviam entrado no Brasil. A cada dia cerca de oitocentas pessoas continuam chegando ao país. Vale notar que isso representa apenas 2% dos 2,3 milhões de venezuelanos que emigraram, segundo dados da Organização Internacional para Migrações (OIM). A Colômbia aparece como o destino mais procurado, tendo recebido 870 mil venezuelanos até abril de 2018. Segundo o secretário nacional de Segurança Pública Brasileira, Flávio Basílio, os 120 homens da Força Nacional enviados pelo governo federal à fronteira irão “facilitar e resolver o problema do fluxo migratório”. Simples assim!
Mesmo sob esse enfoque de emergência, ainda há muito que fazer. Há venezuelanos transbordando em Boa Vista, vivendo em situação de rua, acampados em praças e calçadas, concentrados em cruzamentos e na frente de estabelecimentos comerciais como padarias e supermercados, batendo nas portas das casas, oferecendo serviços gerais, vendendo bugigangas, pedindo dinheiro e comida. É latente que ainda existe muita gente desassistida, mas que buscam saídas minimamente dignas de suas penúrias.
A impressão que fica é que o abandono das populações de ambos os lados por parte dos governantes pode ser intencional e orquestrado para explodir em outubro na mídia nacional, de forma a mostrar a todos o que acontece com os tolos que votam em projetos da esquerda.
Entre os venezuelanos no exílio, em sua maioria já muito carentes antes de abandonar seu país, e agora, na condição de refugiados, em situação de extrema vulnerabilidade, existem aqueles que já tinham o crime como forma de subsistência e outros que acabaram tomando esse rumo diante das agruras a que foram submetidos. E a mídia convencional, em geral, foca as ações violentas dessa pequena parcela, que inclusive já começa a se articular com o crime organizado local depois de passar por períodos na grande escola de nosso sistema prisional. Segundo a Associação dos Venezuelanos no Brasil, criada para organizar a busca de recolocação profissional, muitos dos exilados ocupavam bons cargos em seu país de origem, inclusive com curso superior e bem qualificados.
Há ainda os venezuelanos indígenas, na maioria da etnia warao e que requerem atenção especial. Porém, pouco se vê de ações nesse sentido, a não ser dois abrigos, e um deles, localizado em Pacaraima, segundo o MPF está em “péssimas condições sanitárias”. No geral, os indígenas venezuelanos sofrem com isolamento cultural e linguístico e o MP investiga suspeita de que brasileiros estariam se aproveitando da situação precária e vulnerável dos indígenas em trabalho escravo, tráfico de pessoas e exploração da própria viagem da Venezuela ao Brasil.
A população roraimense já começa a dar sinais de que, apesar da boa vontade inicial, a continuidade e agravamento do problema, a insuficiência das ações emergenciais, aliadas ao despreparo dos governantes e à falta de propostas de soluções em longo prazo já não serão tratados com a mesma condescendência. Os venezuelanos começam a somar números cada vez mais significativos com relação à proporção aos habitantes do estado. E a mídia continua com o mesmo enfoque perverso: de um lado destaca a violência provocada por alguns dos imigrantes e de outro supervaloriza as frágeis ações do estado. Segundo a OMI os casos de violência são mínimos se comparados a situações similares, mas a amplificação da mídia causa outra impressão na população. Como se não bastasse, há ainda os que incitam explicitamente o ódio e violência, contra venezuelanos e contra as instituições e organizações não governamentais, distorcendo informações em uma campanha vergonhosa de odiosidade que beira o fascismo. Praticamente todos os candidatos ao governo do estado e aos cargos legislativos proferem um discurso extremamente conservador, culpando os imigrantes por toda a precária situação em que já se encontravam a saúde, educação e segurança do estado, chegando a reivindicar o fechamento da fronteira. Todo esse discurso acaba por legitimar e incentivar posicionamentos xenófobos, agressivos e intransigentes na população.
A incapacidade do Estado brasileiro de lidar com essa problemática de maneira efetiva pede que as forças de ação da sociedade civil se organizem para além das ações emergenciais. Precisamos articular instituições e organizações da sociedade civil nacionais e internacionais, associações de moradores, associações e lideranças dos venezuelanos, instituições de ensino, pesquisa e extensão e os movimentos sociais para pensar em ações mais efetivas e de longo prazo. Colocar em prática, dentro do possível, algumas delas e reivindicar com organização, determinação e força, que o Estado se dedique de maneira séria e comprometida nos encaminhamentos e propostas oriundos desse esforço coletivo.
Precisamos de ações que respeitem todos os envolvidos. Que as ações emergenciais sejam mais efetivas, rápidas e que deem conta do número crescente de recém-chegados, não esquecendo imigrantes de outras nacionalidades, como os haitianos que têm sido deixado de lado. Que o Estado receba solidariamente os refugiados sem que a população local pague com mais privações e cerceamento de direitos. Que investimentos em infraestrutura há muito tempo aguardados sejam enfim realizados. Por que não aproveitar o caos para pensar em soluções conjuntas para a problemática da desassistência local? Por que não aproveitar a mão de obra qualificada dos que aqui chegam em setores desfalcados do mercado de trabalho? Por que não estimular que o restante do país reveja a forma como tratam os migrantes e imigrantes que já estão em suas comunidades? Somos todos imigrantes nessa terra. Todos temos direitos. Mas não podemos esperar que apenas uma parcela da sociedade, uma das mais sofridas do país, pague pela paz de espírito do resto da nação.
*Bruno Franques é sociólogo, mestre em educação. Pernambucano criado em São Paulo mudou-se recentemente para Boa Vista (RR).