Reforma política: a democratização do poder
Nos próximos meses serão coletadas assinaturas para que as propostas de uma iniciativa popular de reforma política sejam levadas ao Congresso e tramitem como projeto de lei. José Antônio Moroni, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Políitco, apresenta a inciativa e discute suas perspectivas.Luís Brasilino
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Qual o conceito de reforma política trabalhado pela Plataforma dos Movimentos Sociais?
JOSÉ ANTÔNIO MORONI – A plataforma nasce em 2004/2005, diante do desconforto de várias organizações, redes e movimentos da sociedade civil com o que estava sendo apresentado como proposta de reforma política. O entendimento apresentado pela imprensa e pelos partidos era que a reforma política é igual à reforma do processo eleitoral, das normas eleitorais. Esse conceito, além de reduzir a complexidade do tema a um dos aspectos, acaba trazendo outra consequência: os sujeitos reconhecidos para interferir no debate seriam apenas os parlamentares e os partidos. A sociedade ficaria de fora.
Ora, a questão da forma de fazer política e exercer o poder e seus mecanismos é um debate no qual a sociedade tem todo o direito de participar e decidir. Afinal, todo o poder, inclusive o da representação, é uma delegação da sociedade. Com isso, elaboramos o conceito de reforma do sistema político que coloca no centro do debate não apenas o processo eleitoral e a representação, mas também o poder, suas formas de exercício e controle, e principalmente o debate sobre quem tem o poder de exercer o poder.
Assim, estruturamos a plataforma em cinco grandes eixos: fortalecimento da democracia direta; fortalecimento da democracia participativa/deliberativa; aperfeiçoamento da democracia representativa; democratização da informação e comunicação; e transparência e democratização do Judiciário.
DIPLOMATIQUE – Quais são as estratégias da plataforma para alcançar uma reforma com essa amplitude?
MORONI – Sempre tivemos duas estratégias básicas: uma de diálogo e debate na sociedade, e outra de atuar na institucionalidade. Atuar na institucionalidade é promover o diálogo e a pressão para que o Parlamento abra espaço à participação da sociedade civil e vote uma reforma que atenda aos interesses da sociedade e não fique apenas nas regras eleitorais. Para isso fomos cofundadores, em 2007, da Frente Parlamentar pela Reforma Política com Participação Popular e participamos ativamente de todo o debate no Parlamento. Da mesma forma, como em 2007, participamos na elaboração da proposta do Executivo, e em 2010 cobramos do Judiciário e do Ministério Público o respeito à lei que obrigava os partidos a terem 30%, no mínimo, de mulheres como candidatas. Infelizmente os partidos descumpriram a lei e o Judiciário não fez nada.
No debate com a sociedade, que é a nossa principal estratégia, atuamos no sentido da construção dessa pauta nas organizações e na própria sociedade, fazemos mobilizações, elaboramos propostas consensuais em processos amplos e democráticos, elaboramos materiais (cartilhas, programas de rádio, vídeo etc.). Essas duas estratégias se articulam, pois não adianta ficar só dialogando com a institucionalidade sem ter a participação ampla da sociedade e vice-versa.
DIPLOMATIQUE – Como está sendo o processo de construção da iniciativa popular para a reforma do sistema político?
MORONI – A plataforma discute com o MCCE [Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral], que articulou duas iniciativas populares, contra a compra de votos e o ficha limpa, desde 2008. Chegamos num consenso que, após o ficha limpa (que é um dos elementos da reforma), a reforma do sistema político deveria ser submetida ao Congresso por iniciativa popular. Estamos discutindo há mais de três anos a estratégia (iniciativa popular) e o conteúdo. No final de março apresentamos um texto consulta para recebermos sugestões e críticas. Agora estamos concluindo a sistematização das sugestões recebidas para ver como as incorporamos, ou não, na proposta. Vamos dar retorno a todas as pessoas que colaboraram com este processo. No começo de junho vamos dar início à coleta de assinaturas. Vale lembrar que todo esse processo está sendo discutido com muitas organizações e movimentos, e isso demora, porque é necessário respeitar o tempo de cada organização.
DIPLOMATIQUE – Você pode fazer uma breve apresentação das propostas contidas no texto base?
MORONI – Primeiro, um lembrete: a iniciativa popular não pode apresentar mudanças constitucionais. Isso limitou as nossas propostas, por exemplo, para a possibilidade de revogação de mandatos pela própria população, que é uma ideia que apoiamos.
Optamos por apresentar na iniciativa dois eixos da plataforma: a democracia direta e a democracia. Escolhemos deixar de fora a democracia participativa/deliberativa porque essa é uma agenda mais voltada ao diálogo com o Executivo e menos com o Parlamento. Nesta área não precisamos, no momento, de mudanças legislativas, mas sim de tornar os instrumentos que temos (conselhos, conferências, audiências publicas, ouvidorias etc.) espaços de partilha de poder. Isso não se faz apenas por mudanças legislativas, e sim pela prática política democrática. Na questão da democratização da informação e da comunicação, e na questão do Judiciário, ainda estamos discutindo qual a melhor estratégia a ser usada.
Com esse recorte, estruturamos a iniciativa popular em quatro eixos: fortalecimento da democracia direta; democratização e fortalecimento dos partidos políticos; reforma do sistema eleitoral; e controle social do processo eleitoral.
DIPLOMATIQUE – Você poderia detalhar melhor o que significa cada um desses eixos?
MORONI – No que diz respeito à democracia direta, trabalhamos com a seguinte concepção: quando escolhemos nossos parlamentares não estamos passando uma procuração em branco. Portanto, trabalhamos com a ideia que a representação tem limites. Hoje não tem. Elencamos um conjunto de temas que a representação não pode decidir. Isso é uma mudança enorme na ideia do poder total à representação. E nós já temos os instrumentos de democracia direta para fazer isso, que são o plebiscito e o referendo. Acontece que a Lei 9.709/98, que regulamentou esses mecanismos, limitou o seu uso. Por isso, elaboramos uma nova normatização. Outra questão é a simplificação para o processo da iniciativa popular, que hoje é complexo e oneroso: por exemplo, permitir o uso da urna eletrônica e da assinatura pela internet. Atualmente, só pode ser em papel impresso e com o título de eleitor. Precisamos coletar 1,5 milhão de assinaturas e, quando o projeto chega ao Parlamento, ele tem o mesmo rito que qualquer outra proposta apresentada por um parlamentar. Propomos que a iniciativa popular tenha uma tramitação própria e que seja votada em caráter de urgência. Defendemos também que plebiscitos e referendos possam ser convocados por iniciativa popular; e não como é hoje, quando apenas o Parlamento pode convocá-los. Outro ponto são as cláusulas pétreas e os direitos fundamentais não poderem ser objeto de plebiscitos e referendos. Defendemos ainda que a sociedade tenha participação nas campanhas dos plebiscitos e referendos, e que estes não possam ter financiamento privado em suas campanhas. Defendemos a proibição, na iniciativa popular, de qualquer recurso público ou de empresas, e que seja apresentada uma prestação de contas de todo o processo de elaboração da iniciativa popular.
DIPLOMATIQUE – E a questão dos partidos?
MORONI – Para qualquer proposta de mudança no processo eleitoral, precisamos discutir os partidos. Por isso, colocamos um conjunto de propostas que buscam democratizá-los e fortalecê-los. Sem isso não teremos grandes mudanças na representação. Defendemos que, nos partidos, o poder esteja nos filiados e não na direção, e que as coligações sejam aprovadas pelos filiados com quórum mínimo de 30%. Propomos ainda que os partidos só possam ser financiados com recursos do fundo partidário e dos filiados – empresas não podem financiar partidos –, e que a prestação de contas periódicas e sistemáticas seja obrigatória.
DIPLOMATIQUE – Quais são as propostas para as eleições?
MORONI – Um primeiro ponto é o financiamento democrático. O que temos hoje é uma forma de financiamento que mescla público e privado, que acaba sendo público, porque quando uma empresa contribui com uma campanha, ela coloca esse custo nos produtos que nós adquirimos, portanto, estamos pagando. Quando não acrescenta o valor nos serviços que presta ao Estado, o que é uma forma de corrupção. Desse processo vem o chamado “caixa dois”. Além disso, esse sistema de financiamento é fonte de desigualdades na disputa. Quem está no poder ou tem maior possibilidade de chegar sempre terá mais recursos que os demais, reproduzindo e aumentando as desigualdades presentes na sociedade. Por isso, chamamos de financiamento democrático o financiamento público exclusivo, pois somente ele possibilita uma igualdade maior nas disputas eleitorais.
Outra questão é a lista transparente. O atual sistema de escolha de candidato é o menos transparente, pois você vota num e acaba elegendo outro, e personaliza a política, enfraquecendo os partidos. Com a lista, elaborada de forma democrática pelos partidos, isso acaba. Mas, para isso, quem deve definir a ordem da lista são todos os filiados do partido e não sua cúpula. Outro argumento fundamental para nós é que somente pela lista transparente podemos criar mecanismos que diminuam a sub-representação de vários segmentos, entre eles as mulheres. Um país que tem apenas 8% de mulheres na Câmara dos Deputados não é democrático. Assim, defendemos que, na lista, seja respeitada a alternância de sexo. Mas não só as mulheres são sub-representadas, também os indígenas, a população negra e LGBT, os jovens, as pessoas com deficiência, a população rural etc. Nesse caso, defendemos que os partidos adotem mecanismos para incluir tais segmentos na lista, deixando público quais foram os critérios usados. Outra questão importante é não favorecer quem já é parlamentar. Defendemos também o fim das votações secretas, do foro privilegiado, da imunidade parlamentar, a fidelidade partidária e programática, que partidos com comissão provisória não possam lançar candidatos etc. Outro ponto importante da nossa proposta é a obrigação de cumprir o mandato. Isto é, se foi eleito deputado federal, não pode assumir algum cargo no Executivo e continuar a ser parlamentar. Vai ter que renunciar. Isso vale também para quem é parlamentar e disputa eleição para prefeito, por exemplo.
No que diz respeito à Justiça Eleitoral, apresentamos um conjunto de propostas com vista à sua democratização. Basicamente, é incluir a representação da sociedade civil no processo eleitoral e na sua fiscalização. Todas as propostas podem ser acessadas no site www.reformapolitica.org.br.
DIPLOMATIQUE – A aplicação dessas alterações no sistema político brasileiro poderia mudar o país? Em qual sentido? Por exemplo, é possível afirmar que, em consequência disso, a educação ou a saúde vai melhorar?
MORONI – Com certeza esse conjunto de propostas melhora a forma de fazer e pensar a política, assim como o próprio exercício do poder e o seu controle. Teremos no Parlamento, por exemplo, representantes de todos os segmentos defendendo seus legítimos interesses e de forma pública, republicana e transparente. Teremos uma mudança, em médio prazo, na cultura política. Isso é fundamental. Com o sistema proposto, a população poderá cobrar e acompanhar mais os seus representantes, e cobrar dos partidos coerência nas suas promessas de campanha e no seu modo de agir. Com isso, se saúde e educação são prioridades na sociedade, deverão ser também para os partidos e governo.
DIPLOMATIQUE – Por outro lado, quais grupos sociais saem perdendo com (e por isso farão de tudo para impedir) essa reforma política?
MORONI – No longo prazo, penso que toda a sociedade sai ganhando. De imediato, quem perde com essas mudanças são os oportunistas, as oligarquias, tanto urbanas como rurais, o poder econômico, os que fazem da política instrumento de riqueza e fonte de impunidade e, principalmente, quem financia a política para depois ter favores do Estado. Basta ver quem está contra essa nova forma de fazer política e quais interesses estão sendo contrariados.
DIPLOMATIQUE – De que modo os partidos políticos têm recebido essas propostas?
MORONI – Se em outros temas é difícil falar em posição partidária, neste, então, é mais complexo. Nas tentativas de votação que já tivemos, da reforma política no seu aspecto eleitoral, percebemos que uma coisa é dialogar com os partidos via suas instâncias, outra é dialogar com as lideranças partidárias no Parlamento, e outra ainda é conversar com os parlamentares. Na maioria das vezes, esses três grupos têm propostas diferentes, e aí reside uma grande dificuldade da sociedade, pois não há um interlocutor capaz de negociar uma proposta. Esse quadro vem mudando, e muito. Temos uma ótima recepção dos partidos e também de vários parlamentares às nossas propostas. Se é a maioria, é difícil dizer, pois ainda há muitos formando posição. A plataforma se reúne periodicamente com fundações partidárias de sete partidos, construímos consenso em várias propostas e as fundações dialogam com as instâncias partidárias. Queremos que a Frente Parlamentar pela Reforma Política com Participação Popular também faça esse trabalho com os partidos.
DIPLOMATIQUE – E o governo federal apoia a iniciativa popular para a reforma do sistema político ou você acredita que essa não é uma prioridade do Executivo?
MORONI – Tanto o governo Fernando Henrique (sim, esse tema vem de longe) quanto o governo Lula não se envolveram no tema da forma como deveriam. Argumentavam, de forma equivocada, que esse era um tema do Legislativo. Não é, é de toda a sociedade e de toda a institucionalidade. Portanto, o Executivo não tem o direito de esconder a sua posição. O governo Lula mandou uma proposta de reforma eleitoral para o Congresso, em 2007, que tem certa semelhança com a nossa. O governo Dilma ainda não se posicionou, o que eu acho uma omissão. O Executivo precisa dizer para a sociedade o que ele defende num tema tão fundamental para a democracia. Penso também que a reforma política (seja ela qual for) só será votada no Congresso se tiver pressão da sociedade, e o Executivo articulando um processo de negociação. Sem isso, por si só, não acredito que o Parlamento consiga chegar num consenso majoritário. Acho que caminhamos nessa direção, a sociedade pressionando (a iniciativa popular ajuda, e muito, nessa pressão) e o Executivo articulando a negociação. Eu leio que a entrada do Lula como esse elemento negociador tem o aval do governo. Não acho que o PT faria isso sem ter o apoio da presidenta. Portanto, estamos caminhando na direção certa. Outro aspecto é que os partidos de oposição também precisam definir o que eles defendem, sem isso fica difícil um processo de negociação.
DIPLOMATIQUE – Quais as chances dessas propostas serem aprovadas até o final deste ano?
MORONI – Esse é um grande desafio, mas acredito que nunca estivemos tão perto de conseguir a aprovação de uma reforma política que aponte para uma mudança estrutural do poder no Brasil. Porém, para isso, os partidos devem acelerar a sua tomada de posição, e a sociedade precisa pressionar mais.
DIPLOMATIQUE – Como a população pode participar desse processo?
MORONI – A plataforma tem realizado reuniões e encontros nos estados, quando são discutidas com a sociedade as nossas propostas, e recebemos sugestões. Tudo isso é sistematizado e vira instrumento de debate na plataforma. Foi essa metodologia que usamos na construção da plataforma, assim como na iniciativa popular. Produzimos materiais aos quais qualquer cidadão pode ter acesso para organizar debates e nos encaminhar suas contribuições. Lançamos, no final de março, programas de rádio que são ótimos instrumentos para provocar o debate, e agora começamos a produzir vídeos e mais cartilhas. Tudo isso com muita dificuldade financeira, porque nos sustentamos com contribuições das organizações. Todos os nossos materiais podem ser acessados no site www.reformapolitica.org.br.
Luís Brasilino é Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.