Reforma política: democracia ou plutocracia?
Deve-se notar quão diferentes são os projetos: o de Eduardo Cunha, assentado no binômio “financiamento privado” e “voto facultativo”, em contraste com o da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, cuja lógica é o financiamento público e o empoderamento dos partidos políticos e do cidadão comumFrancisco Fonseca
O último governo militar, comandado pelo general Figueiredo e articulado ideologicamente pelo general Golbery, o atual sistema político foi estruturado com o objetivo de, parcialmente, contemplar demandas democráticas (caso do pluripartidarismo), mas fundamentalmente manter o statu quo, o que implicou, por um lado, impedir qualquer reprimenda às barbáries impetradas pelos militares e, por outro, vetar grandes reformas estruturais: políticas, sociais e econômicas.1
Deu-se a redemocratização, e a espinha dorsal do sistema político não foi alterada, pois:
a) o pluripartidarismo foi levado às últimas consequências, a ponto de termos hoje 28 partidos legais com participação no jogo político, dos quais grande parte é considerada “partido de balcão”;
b) o financiamento dos partidos políticos se consolidou de forma mista (fundo partidário público e financiamento privado legal), mas com uma terceira e decisiva forma de financiamento, ilegal: o chamado caixa dois, que se desenvolve durante todo o período governamental. Neste, as prioridades governamentais (a questão da agenda), que se dão desde o momento eleitoral (coligações eleitorais), passam por parte significativa das licitações, pela composição dos governos (distribuição de nacos de poder a grupos com interesses muito distintos) e pela lógica da chamada “governabilidade”, por meio de “bases de apoio” amplíssimas (coalizão), tornando o caixa dois uma verdadeira instituição informal da vida política brasileira. Nesse sentido, independentemente de partidos políticos e governos, o que se vê, desde a redemocratização, é uma sucessão de escândalos, cuja lista é longa e perpassa todos os governos, e cuja raiz é o financiamento de partidos/campanhas tanto por meio de doações privadas legais – cuja lógica é beneficiar-se após as eleições – como por meio do caixa dois;
c) a lógica da “governabilidade a qualquer custo”, anteriormente referida, aprofundou-se de tal forma que qualquer governo de coalizão paga um custo político brutal – notadamente os partidos ideológicos, quando vencem eleições ao Executivo – para governar, a ponto de perder sua identidade, então construída quando de oposição (caso notório do PT). Tal sistema tornou-se verdadeira “máquina de moer partidos”, em boa medida indiferenciando-os no quesito “comportamentos/costumes políticos” – embora não quanto a determinados conteúdos de políticas, mesmo que incrementais –, o que traz consequências trágicas à chamada “cultura política”, isto é, aos valores referenciados à “esfera pública”;
d) distorções as mais distintas foram ocorrendo, tornando o sistema político um mosaico de perversidades: coligação nas eleições aos cargos proporcionais, que implica que o eleitor vote num partido/candidato e eleja outro, de outro partido; a lógica de que os partidos derrotados também governam, em razão da referida necessidade de maioria parlamentar a qualquer custo; a controversa desproporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados; o estímulo ao personalismo na vida política, associado ao descrédito que o sistema político confere tanto ao subsistema de partidos como ao Parlamento; entre outros;
e) os mecanismos institucionais/legais de fiscalização, embora tenham avançado enormemente, não foram capazes de desfazer a lógica privatizante da vida “pública” brasileira, a ponto de “engavetadores-gerais da República” serem possíveis, uma vez que, em boa medida, dependem do perfil de quem está no poder das instituições fiscalizatórias;
f) o papel despolitizante, simplificador ao extremo dos problemas nacionais e antidemocrático da grande mídia formou gerações e gerações de “cidadãos” manipulados e incapazes de minimamente refletir sobre os aspectos basilares do processo político (caso das manifestações das classes médias ocorridas no dia 15 de março). Nunca é demais relembrar que a grande mídia brasileira é fortemente oligopolizada (conceito econômico) e oligárquica (conceito político: famílias detentoras de enorme poder comunicacional), tendo prestado enormes desserviços à democracia no Brasil, e jamais foi contida por nenhum governo desde a redemocratização, por quaisquer meios: institucionais, legais, políticos, econômicos, creditícios etc.
Em razão desse conjunto de problemas, tem havido intensos debates, propostas diversas de reforma política e inúmeros embates desde a redemocratização. Dessa forma, duas grandes propostas se consolidaram, desde o ano passado, como projetos claramente antagônicos.
Do lado conservador, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 352/2013, de autoria do hoje ex-deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) e encampada pelo deputado e atual presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ),2 que, em linhas gerais, fundamentalmente institucionaliza o financiamento privado – por meio de um inexequível sistema de “escolha”, por partido, da forma de financiamento, isto é, se público, misto ou privado; institui o “voto facultativo”; e impede a reeleição aos executivos; entre outras medidas, a maior parte conservadoras e outras nem tanto, embora, estas, de menor importância. Sobretudo as duas primeiras medidas são suficientes para simultaneamente derrogar toda a luta por reformas de cunho democrático e institucionalizar o que há de pior na vida política do país. Como bem aponta Maria Inês Nassif: “O país, agora, está diante de uma ação desafiadora do presidente da Câmara e de seus asseclas, que têm especialmente como objetivo manter o financiamento privado de campanha, centro de todos os escândalos políticos que envolvem o país desde a primeira eleição direta para a Presidência da República pós-ditadura, em 1989”.3
A chamada “privatização da vida pública” tem no financiamento privado (legal e ilegal) verdadeiro pilar, uma vez que torna estratosférico o preço das campanhas; impede que os pequenos partidos ideológicos tenham a mínima chance de concorrer com os grandes partidos que “jogam o jogo”; torna os poderes do Estado e boa parte de suas ações verdadeiros “balcões de negócios”; estimula a existência ao infinito de partidos e atrai políticos sem qualquer compromisso com a democracia e sem o mais tênue sentido de “esfera pública”; elitiza fortemente a política, dificultando estruturalmente reformas populares ao blindar as elites de qualquer possibilidade de “reformas radicais democráticas”; desestimula a participação política do cidadão comum, abrindo caminho para os lobbies e toda forma de tráfico de influência. Tudo isso amparado, coordenado e amplificado pelo aparato midiático, espécie de “intelectual orgânico” do capital e das classes médias gestoras deste, e que precisa igualmente ser reformado. A PEC n. 352 constitucionaliza, portanto, a plutocracia, isto é, a formalização do governo dos detentores do capital, que hoje atua de maneira informal.
Quanto ao voto facultativo, trata-se de verdadeira derrubada de qualquer vestígio popular de democracia, o que é um paradoxo. Afinal, num país em que historicamente se descrê, e de maneira vigorosa, das instituições estatais e do sistema político,4 o voto facultativo – cuja imagem é a ideia de que “direitos não se obrigam” – tenderia fortemente a excluir os pobres da vida política. A plutocracia fecharia o círculo: pela origem, via capital privado, e pela dinâmica, por meio do voto das classes médias e dos ricos.
Não é coincidência que a agenda conservadora tem no voto facultativo um de seus motes, reforçado ao extremo pela cobertura dos grandes meios de comunicação: TVs, rádios, jornais, revistas e grandes portais privados. A imagem negativa das instituições e do sistema político como algo intrinsecamente sujo tende a afastar da vida política institucional os mais pobres, mais vulneráveis ao “pensamento único” e àquilo notabilizado por Goebbels e válido fortemente nos dias de hoje: a estratégia de que “uma mentira contada reiteradas vezes torna-se verdade”. Portanto, o voto facultativo adquire enorme importância para a lógica privatista e elitista: excluir os pobres – num sistema “formalmente” democrático – da democracia sem a utilização da violência e de regimes autoritários. Reitere-se que a combinação de constitucionalização do financiamento privado com voto facultativo liquida liminarmente a experiência democrática brasileira.5
De maneira oposta, diversas organizações democrática e politicamente organizadas vêm se articulando em torno da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas,6 que reúne mais de uma centena de entidades, entre as quais OAB, CNBB, centrais sindicais e inúmeras outras, das mais distintas naturezas, mas com um único propósito: reformar o sistema político brasileiro numa perspectiva de fato democrática. Os pilares da proposta, que necessita de 1,5 milhão de assinaturas para ser apresentado ao Congresso, baseiam-se na proibição do financiamento empresarial a partidos e candidatos; o voto em lista em dois turnos: no primeiro turno o eleitor vota em uma lista de candidatos apresentada pelo partido e, no segundo turno, em um candidato específico; fim das coligações proporcionais; paridade entre homens e mulheres nas listas partidárias;7 e fortalecimento dos mecanismos de democracia direta com a participação da sociedade em decisões nacionais importantes.
Trata-se de um projeto autenticamente popular e democrático: forma e conteúdo. Afinal, impede o financiamento empresarial8 ao expor a incoerência e a desigualdade resultante desse instrumento, que privilegia determinados partidos em detrimento de outros, torna o jogo político iníquo e fundamentalmente permite o domínio do capital sobre o cidadão.
O projeto procura empoderar dois atores fundamentais: primeiro, os partidos políticos, por meio do voto em lista preordenada, em que os partidos se tornam protagonistas, em vez de os candidatos como indivíduos. Os partidos políticos passam, portanto, a ser responsabilizados e cobrados pela lista de candidatos ofertada, o que implica tornar os mandatos dos eleitos pertencentes, de fato, aos partidos que lhes deram guarida. Mas, o mais importante, implica fortalecê-los como instituição, diminuindo o personalismo individualista que rege o cenário partidário brasileiro.
Segundo, as mulheres (política de gênero) são igualmente empoderadas ao se estatuir paridade entre homens e mulheres na lista ofertada aos eleitores. O projeto considera fundamental que as mulheres sejam protagonistas na vida político/institucional, uma vez que não apenas são maioria da população brasileira (51%, de acordo com o último Censo), como sua participação – nas três esferas do Estado – é historicamente diminuta. Embora haja a lei dos 30% de vagas reservadas às mulheres candidatas aos parlamentos, por partido, o fato é que a participação feminina continua extremamente aquém de seu número e, sobretudo, de sua importância.
Por fim, quanto aos mecanismos de participação direta – também chamados de “democracia direta” e de “controle social” –, procura-se equalizar a democracia representativa (institucional) e a democracia direta (ou de base), de forma que se complementem. Afinal, não há qualquer incompatibilidade entre ambas,9 visto que conselhos gestores de políticas públicas, conferências locais, regionais e nacional de políticas, formas diversas de participação, incluindo-se as digitais, entre outras, já fazem parte da dinâmica social brasileira, embora sem a formalização de uma lei orgânica, que seria o caso do decreto presidencial que os institucionalizaria.
Deve-se notar quão diferentes, isto é, opostos, são os projetos: o de Eduardo Cunha, assentado no binômio “financiamento privado” e “voto facultativo”, em contraste com o da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, cuja lógica é o financiamento público (fim da plutocracia) e o empoderamento dos partidos políticos (voto em lista), das mulheres (paridade) e do cidadão comum (formas de democracia direta e controle social). Embora em ambos os projetos haja outras questões, tal como proibição da reeleição aos executivos (PEC n. 352), reeleição apenas uma vez, incluindo-se os cargos parlamentares (proposta da Coalizão), entre tantas outras, os pilares de ambos os projetos ancoram-se na forma de financiamento, na obrigatoriedade ou não do voto e na formatação do sistema eleitoral.
Quanto a este último – no bojo das premissas que devem reger a reforma política –, a questão fundamental baseia-se no conjunto de princípios, isto é, representatividade, legitimidade, responsividade, transparência e expressão de uma doutrina política que deve possuir o sistema político e, consequentemente, seus subsistemas: partidário e eleitoral.
A PEC n. 352 (forma e conteúdo), encampada pelo deputado Eduardo Cunha, coloca sobre a democracia brasileira verdadeira “bala de prata”, com o objetivo de ceifá-la, tornando-a uma democracia “formalmente democrática”, mas, na prática, “essencialmente plutocrática”. O projeto da Coalizão é simples e extremamente democrático.
São dois projetos de Brasil. A vitória de um ou de outro impactará gerações. Não é pouco o que está em jogo!
Francisco Fonseca é mestre em Ciência Política e doutor em História, professor de Ciência Política na FGV-SP e autor de diversos artigos e livros, entre os quais O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil (2005) e Liberalismo autoritário – Discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira (2011), ambos pela Editora Hucitec.