Regenerar a democracia
A história sangrenta da luta pelo sufrágio universal é apenas um dos exemplos capazes de denunciar tanto o engodo de uma suposta tradição democrática intrínseca ao capitalismo como a incoerência do marxismo vulgar que despreza a democracia ao conceituá-la pejorativamente de “burguesa”Leandro Gavião
A despeito de suas imperfeições e de seu permanente estado de incompletude, a democracia encarna um arcabouço institucional antiautoritário de elevada relevância no que se refere à manutenção da liberdade e da cidadania. Entretanto, é sabido que sua história não se resume a uma linearidade simplista, sendo marcada por períodos de avanços e recuos.
Todos os sistemas políticos anteriores lastreavam a legitimidade dos governantes em dois tipos de título: a superioridade de nascença ou a de riqueza. O filósofo Jacques Rancière afirma que o caráter sui generis da democracia deriva justamente de sua autorização ao “governo de qualquer um”, não sendo necessária – ao menos em tese – a posse de títulos para ingressar nademoss classes dirigentes.1
No entanto, para além dessa característica basilar, o saudável funcionamento do regime democrático depende de sua articulação com componentes herdados do liberalismo político, a saber: o constitucionalismo, o regime parlamentar, a isonomia, as eleições livres e regulares, a proteção às minorias e a liberdade de pensamento e expressão.
Em maior ou menor medida, todos os elementos supracitados vinculam-se às demandas de grupos subjugados. Na história recente, a luta pela liberdade começa com o Terceiro Estado, durante a Revolução Francesa, mas se prolonga nas décadas seguintes, sob o protagonismo do proletariado e dos movimentos sociais. Esses atores, por meio de mobilizações ora pacíficas, ora violentas, auferiram direitos outrora considerados utópicos, cujo resultado prático consistiu em uma ampla convergência para a igualdade política.
Tal como procedeu no processo de obtenção dos direitos trabalhistas, raciais e de gênero, a democracia e as instituições a ela agregadas devem ser consideradas conquistas populares, e não um desdobramento mecânico de determinado arranjo socioeconômico ou mera cessão voluntária das elites. A história sangrenta da luta pelo sufrágio universal é apenas um dos exemplos capazes de denunciar tanto o engodo de uma suposta tradição democrática intrínseca ao capitalismo como a incoerência do marxismo vulgar que despreza a democracia ao conceituá-la pejorativamente de “burguesa”.
Dos direitos pessoais aos direitos sociais
Inicialmente, a democracia representativa integrava um Estado de base parlamentar-constitucional fundamentado no voto censitário. Havia direitos pessoais, materializados num conjunto definido de normas impostas a todos – incluindo o soberano –, mas os direitos políticos limitavam-se aos privilegiados. Estes, obviamente, rejeitavam o sufrágio universal, componente indispensável para proporcionar a participação das massas. A expansão dos direitos políticos para outros estratos sociais foi fruto de longas e penosas lutas.
Conforme argumenta Thomas Marshall, para que a democracia se consolidasse e perdesse seu caráter seletivo e aristocrático, tornavam-se urgentes novas exigências, agora tendo como alvo os direitos sociais.2 O Estado foi então reconhecido como o agente mais eficiente para conciliar os interesses divergentes na relação capital-trabalho e garantir bem-estar social.
De acordo com a relação dialógica de Marshall, o Estado social decorre da percepção de que o usufruto da liberdade e da participação política somente seria possível mediante a irrestrita redistribuição dos recursos culturais e econômicos, até então circunscritos a poucos.
Grosso modo, quando as pessoas carecem de direitos políticos, elas não podem ter certeza quanto ao cumprimento de seus direitos pessoais, ao passo que, sem direitos sociais, a democracia permanecerá sendo uma ficção para as maiorias desprovidas de capital. Em outras palavras, é preciso estabelecer uma “política de seguro” em nome da comunidade para que a democracia faça sentido e deixe de ser letra morta.
Doravante, sempre que alguma plataforma econômica de corte liberal exigir que a proteção social seja desconsiderada um direito civil – estimulando a regressão do estágio atual da cidadania para uma dimensão outrora superada –, pode-se esperar toda sorte de tensões e conflitos com as forças reacionárias, uma vez que os trabalhadores tenderão a defender direitos que consideram pétreos. Não é mera coincidência que lideranças de governos liberais tendam a recorrer a métodos autoritários para impor sua agenda econômica.
o Estado de bem-estar social
e a consolidação da democracia
Após a Segunda Guerra Mundial, a Europa vivenciou uma espécie de consenso social, lastreado tanto no ideário das esquerdas democráticas como em novas doutrinas econômicas, destacando-se os argumentos de pensadores como Karl Kautsky, Eduard Bernstein, John Keynes e William Beveridge.
Conquanto tenham variado segundo as especificidades históricas de cada país, verifica-se a estruturação de uma cultura política permeada por um espírito reformista que visava modificar tanto a estrutura tributária – com uma configuração progressiva, em que os ricos pagam mais impostos – como a ressignificação do papel do Estado, permitindo aos governos consolidar as leis trabalhistas, reduzir as desigualdades, redistribuir renda por meio de aumentos salariais e auxílios financeiros, estabelecer metas de pleno emprego e ofertar aos cidadãos serviços públicos essenciais.
A luta de classes pode não ser necessariamente o motor da história, haja vista que as ações humanas são demasiado complexas para se restringirem a uma única variável. No entanto, é impossível negar a existência de interesses contrastantes entre patrões e empregados. Estes desejam melhores condições de trabalho, jornadas mais curtas e maior remuneração. Os empregadores, por sua vez, almejam elevar os lucros, comprimindo os custos de produção, incluindo os salários. Esse antagonismo é tão óbvio que até mesmo autores não marxistas o reconhecem.3
Isso posto, a tensão estrutural entre o capital e o trabalho somente encontraria uma solução conciliatória por meio do equilíbrio estabelecido por um terceiro ator: o Estado. Pretendia-se, assim, suprimir os efeitos deletérios do capitalismo, mas sem aderir às modalidades totalitárias que esmagavam as liberdades conquistadas pelas massas. Indiretamente, aprimorava-se a democracia.
É interessante observar que uma parte expressiva dos partidos conservadores europeus cedeu a um programa mínimo das esquerdas. Ao longo do contexto de conflito intersistêmico provocado pela bipolaridade da Guerra Fria, pairava no ar o temor de que o acirramento das desigualdades resultasse em alternativas revolucionárias. Daí a lógica da direita de “entregar os anéis para não perder os dedos”.
Apesar de sua limitação a uma parte bastante restrita do mundo, da reminiscência de problemas e das diferenças entre os sistemas de proteção social,4 o período entre 1946 e 1975 (não à toa chamado pelos franceses de Les Trente Glorieuses, “Os Trinta Gloriosos”) representou o ápice da harmonia entre a liberdade e a igualdade na Europa ocidental – salvo algumas exceções, como Portugal e Espanha.
O neoliberalismo
e a degeneração da democracia
Nos anos 1980, a globalização sofreu uma escalada sem precedentes, fomentando uma profunda internacionalização do capital, que, por sua vez, resultou num relativo enfraquecimento dos Estados nacionais e das organizações sindicais.
“Ressuscitado” nos governos de Margaret Thatcher (1979-1990) e Ronald Reagan (1981-1989), o liberalismo ganharia fôlego extra no início da década de 1990. O colapso do bloco soviético alavancou o fundamentalismo de mercado, caracterizando-o como espécie de “lei histórica incontestável” e convertendo-o em panaceia para as mazelas socioeconômicas mundiais. Afirmava-se pretensiosamente que o “fim da história” havia chegado.5
A renovação da pregação liberal veio acompanhada de uma reinterpretação do papel atribuído ao Estado, transformando-o em seu principal adversário. Passou-se a exigir sua redução ao mínimo, mediante privatizações e desmonte dos sistemas de proteção social, oportunizando uma atmosfera de maior competitividade e estímulo às trocas voluntárias e ao egoísmo criativo. No âmbito das relações laborais, os liberais desejavam atrofiar os sindicatos, de modo a proporcionar o “saudável” funcionamento do mercado e ampliar a “eficácia” do trabalhador – leia-se: tornar os empregados submissos e mais baratos. Esse ambiente de degradação de direitos foi descrito cinicamente como “benéfico para todos” a longo prazo.
Contrariando a experiência histórica, a narrativa liberal assentou-se na promessa de um futuro utópico no qual indivíduos gozariam de liberdade plena e habitariam um mundo próspero, desvencilhado da opressão do Estado e das ideologias, regido apenas por normas racionais sob os auspícios do onipotente e onisciente deus Mercado.
Na dimensão prática, as consequências da aplicação de seu programa são familiares: ampliação das desigualdades, arrochos salariais, perda de direitos trabalhistas, desemprego, carência de uma rede pública de assistência, sentimento de insegurança generalizado e instabilidade social. Esse círculo vicioso é coroado com o estabelecimento de um “Estado máximo” de repressão para garantir a execução da agenda econômica liberal.
O antropólogo Fernando Coronil explica esse fenômeno por meio da análise de uma das principais consequências da expansão do liberalismo global: a violência legítima de um poder ilegítimo.6 Esse jogo de palavras faz referência à exigência do grande capital – o poder ilegítimo, uma vez que não foi eleito – de um Estado mínimo, embora este mobilize contra os focos de insatisfação sua corpulenta máquina repressiva – a violência legítima, conforme a clássica definição de Max Weber. Em resumo, o capitalismo “sem rédeas” coloca em xeque a própria democracia.
Assim sendo, percebe-se que a real função do Estado mínimo é assegurar o paraíso dos ricos, dado que preza pela defesa da propriedade e da dinâmica do mercado, ao passo que prega verdadeira cruzada contra os serviços públicos e os direitos laborais, desdenhando das demandas provenientes das camadas sociais menos abastadas. As pessoas são impelidas a encontrar soluções individuais para problemas gerados socialmente.
Curiosamente, os neoliberais se apresentam como arautos da democracia. Em parte, isso se deve a uma confusão terminológica também praticada por alguns setores de esquerda, haja vista que o liberalismo político – cujos componentes básicos estão elencados no terceiro parágrafo – e o liberalismo econômico são, erroneamente, retratados como interdependentes.
Oriunda de mobilizações populares, a democracia não possui dívidas com o liberalismo econômico. Por esse motivo, em vez de depreciá-la por conta de suas imperfeições e relativizar sua importância, as esquerdas deveriam investir no aperfeiçoamento das formas institucionalizadas de democracia, de modo a torná-la forte o suficiente para lidar com os desafios que são impostos. Parafraseando José Mujica: a democracia não é perfeita – nós tampouco o somos –, mas é necessário defendê-la para melhorá-la, e não para sepultá-la.
No mesmo sentido, o combate ao liberalismo econômico deve ser direcionado não apenas para sua clássica versão liberal-conservadora, mas também para sua nova roupagem “libertária”, que, travestida de vanguardista e insistindo na falaciosa separação entre economia e política, tem angariado crescente apoio entre os jovens. Urge explicitar suas incoerências doutrinárias, sobretudo quando se confronta seu discurso pseudocientífico com a complexidade do mundo real.
Desafios no horizonte
Zygmunt Bauman assevera que o divórcio entre política e poder é um dos grandes desafios de nossa época.7 Enquanto o capital é dinâmico e internacionalizado, a política continua sendo territorial e limitada. Pari passu, os laços de solidariedade se enfraquecem e os grandes partidos se tornam cada vez mais parecidos.
Nesse contexto, a democracia tem se fragilizado, deixando de suprir as expectativas das maiorias – fato que se agrava em países de economia dependente, como o Brasil. É necessário buscar soluções para evitar a supremacia do poder econômico sobre a esfera política, bem como elaborar fórmulas que revertam o aprofundamento do processo de degeneração no qual o modelo democrático se encontra, recolocando em cena a importância fundamental do Estado e dos direitos sociais, além de propor alternativas de participação cidadã que ultrapassem o mero ato de votar.
Essas estratégias demandam esforços sinérgicos da sociedade. Paradoxalmente, o principal meio de ação disponível para regenerar e desenvolver a democracia é a própria política. Ironicamente, as soluções se encontram fora do receituário econômico liberal.
Leandro Gavião é doutorando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.