As relações entre mídia e poder político no contexto brasileiro
O período entre 2013 e a eleição de Bolsonaro só confirma a atuação da mídia como ator fundamental na arena de disputa pelo poder político
As relações entre mídia e poder político envolvem questões relacionadas com a opinião pública. Antes, se faz necessário destacar considerações acerca da conceituação utilizada em relação à opinião pública, que seriam correntes de opiniões, crenças e atitudes a respeito de um assunto específico e compartilhadas e expressas por uma parcela representativa da população. A opinião pública funcionaria como instrumento mediador entre eleitorado e sistema político. A relevância da opinião pública se faz notar porque é um elemento importante nas transformações pelas quais a democracia passa. A democracia liberal na Inglaterra do século XVIII, por exemplo, evidenciava a pequena participação eleitoral e um parlamentarismo que se impunha como alternativa considerada sólida. No século XIX, a “democracia de partido” se coloca como opção no bojo dos rearranjos que sacudiram o cenário político daquele século. Nela os partidos se organizavam em duas frentes protagonistas: a disputa eleitoral e os modos de expressão da opinião pública. Um grande processo de inflexão na sua formação surgiria com o declínio da política ideológica e do jornalismo partidário.
Outro fenômeno relacionado às mudanças que dizem respeito à democracia é o surgimento do conceito “democracia de massa”, que é formada por quatro elementos que se relacionam entre si: a imprensa, a conversa, a opinião e a ação. Lippmann ressalta que a opinião pública do cidadão é governada e influenciada mais por slogans e opiniões oriundas de jornais do que por julgamentos dotados de isenção e equidistância das opiniões públicas, ou seja, pode-se perceber a força que exerceriam veículos midiáticos no jogo político onde estão inseridos eleitores, candidatos e mídia1. Desse modo, na seara política, o processo de estabelecimento da agenda pública (lócus onde se daria a aferição sobre o que as pessoas pensam, sobre o que as pessoas falam e sobre o que falam ou pensam que os outros falam) é um espaço de grande valia nesse binômio “mídia e poder político”. O agendamento, então, se materializa mediante a seleção de assuntos a serem noticiados e destacados em detrimento de outros.
Enquadramento
O conceito de enquadramento, segundo Tankard, nos permite fazer uso de um instrumento para avaliar empiricamente o papel da mídia na construção da hegemonia (palavra empregada em um sentido gramsciano, ou seja, se referindo à direção intelectual e moral da sociedade civil)2. O enquadramento, dessa forma, seria uma alternativa ao paradigma associado à objetividade e um complemento à teoria do agendamento (agenda setting). Para Gamson, o enquadramento é caracterizado como “uma ideia central organizadora”, que confere determinados significados aos eventos, estabelecendo uma conexão entre eles e delimitando o caráter das controvérsias de âmbito político3. A noção de enquadramento abriga o envolvimento de dois componentes de destaque: seleção e saliência.
Os enquadramentos de mídia carecem de uma explicação mais acurada, uma vez que são padrões persistentes de cognição, seleção, exclusão, ênfase, apresentação e interpretação mediante os quais os manipuladores de símbolos planejam o discurso, seja visual ou verbal, de forma costumeira. “Os enquadramentos de mídia” são criados normalmente por jornalistas, mas, embora existam outros tipos de enquadramento, como “os enquadramentos culturais”, nem todos dependem dos profissionais que trabalham ou escrevem em órgão de imprensa periódica. Pelos apontamentos aludidos anteriormente acerca do conceito de enquadramento, é possível detectar o grau de importância de que ele se apropriou na relação contendo o dueto “mídia e poder político”. Para além do valor conceitual adquirido, a abordagem do enquadramento propicia um aprimoramento no entendimento do relacionamento entre mídia e poder político.
Entre meados dos anos 1990 e o segundo mandato presidencial de Lula iniciado em 2007, com o partido sinalizando uma guinada mais enfática em direção ao jogo parlamentar-eleitoral, distanciando-se estrategicamente de sua base operária e de seu vínculo com as lutas sindicais, o tom da grande imprensa em relação ao PT vai se alterando até enquadrá-lo como partido eticamente duvidoso e responsável por práticas políticas criminosas. O período entre 2013 e a eleição de Bolsonaro só confirma a atuação da mídia como ator fundamental na arena de disputa pelo poder político. As análises de valência, que são chaves de grande utilidade para avaliar textos jornalísticos de acordo com sua relação ao objeto noticiado como favorável, contrário, neutro ou ambivalente, ratificam o posto de rival conferido a grande imprensa nos seus enfrentamentos contra o PT e a esquerda.
É imperioso ressaltar que as abordagens do agendamento e do enquadramento proporcionaram ferramentas de grande valia para analisar, por exemplo, o contexto entre 2013 e a eleição de Bolsonaro concretizada em 2018. É necessário discorrer primeiramente sobre o sistema de mídia brasileiro antes de indicar sua atuação decisiva como poderosa agente antiesquerda e antipetista. Trata-se de um sistema oligopolizado em que quatro famílias merecem especial holofote: Grupo Globo liderado pela família Marinho, Grupo Estadão conduzido pela família Mesquita, Grupo Folha capitaneado pela família Frias e Grupo Abril, que foi comandado pela família Civita até meados de 2018. Os maiores grupos de imprensa têm posições econômicas que, em uma comparação mais elementar, se classificam como antagônicas em relação às ideias encarnadas por certos setores da esquerda e do Partido dos Trabalhadores, sobretudo quando se mira a gênese do partido criado em 1980. Os maiores conglomerados da mídia nacional se posicionam pró-mercado e, costumeiramente, são críticos do estatismo e do nacionalismo econômico. Esses conglomerados, no plano político, se aproximam de posições liberais-conservadoras, as quais se diferenciam da ideologia progressista encampada de forma mais nítida pela esquerda – e também pelo PT. É por isso que, em um primeiro momento, o PT foi retratado pela grande imprensa como partido “radical”, “inexperiente”, “hostil à economia de mercado” e uma ameaça à democracia representativa.
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O cerco midiático – aquilo que entra no debate público e aquilo que é ignorado – enfrentado pelo segundo governo de Dilma Rousseff, ao qual a grande imprensa teceu mais considerações desfavoráveis que o escandaloso governo de Michel Temer, as observações amplamente desfavoráveis dispensadas à conduta do ex- presidente Lula nos processos duvidosos em que este é acusado e a articulação promovendo a equivalência entre Bolsonaro (político que já acenou em favor de milicianos, teceu elogios a torturadores e ameaçou outros Poderes do Estado) e Lula como dois extremos antidemocráticos se apresentam como marcas indeléveis do desempenho da grande mídia na arena de embates pelo poder político.
João Camilo Sevilla é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), pós-graduando do curso de Especialização em Política & Sociedade do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ) e servidor público estatutário da Fundação Pública Municipal de Niterói. E-mail: [email protected]
1 LIPPMANN, W. Public opinion. New York: Free Press Paperbacks, 1997. A primeira edição data de 1922.
2 TANKARD JR., James. The empirical approach to the study of media framing. In: REESE, S.; GANDY JR., O.; GRANT, A. (Ed.). Framing public life. Mahwah: Lawrence Erlbaum, 2001. p. 95-106.
3 GAMSON, William; KATHRYN Lasch. The political culture of social welfare policy. In: SPIRO, S.;YUCHTMAN-YAAR, E. (Ed.). Evaluating the welfare state. New York: Academic Press, 1983. p. 397-415.