O retorno do reprimido
Catástrofe no Rio Grande do Sul não é consequência do acaso ou do imprevisto da natureza
Tradicionalmente rejeitada pela direita e pela esquerda, a questão ambiental vem sendo aos poucos admitida como questão política relevante. Agora, com a catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul, a bomba estourou na mão do governador Eduardo Leite, do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, e da grande maioria dos prefeitos das cidades gaúchas, todos negacionistas do clima e neoliberais.
Para ficar nos casos mais conhecidos, o governador gaúcho, bolsonarista enrustido, cancelou ou alterou 480 pontos do Código Ambiental do Estado em 2019 para facilitar o investimento privado sem cumprimento da lei ambiental. E o prefeito de Porto Alegre, bolsonarista assumido, não gastou um tostão com manutenção do sistema de proteção contra enchentes, apesar das fortes inundações do ano passado. Ambos, como bons negacionistas da crise climática, desviaram para outras finalidades as verbas previstas para a proteção ambiental.
Em declaração indireta de culpa, o governador Leite se apressou a afirmar: Não é hora de buscar culpados! Para ele, essa hora nunca vai chegar. Não acreditou ou não quis acreditar nas previsões científicas que anunciaram a tragédia que agora inundou 85% do território do Rio Grande do Sul. Centenas de desaparecidos, mortos, cidades isoladas, falta de água, luz, transporte, alimentos, um caos que transformou um dos Estados mais ricos do Brasil em pedinte de auxílio da população. Leite nem ao menos sugeriu algo mais digno e forte como, por exemplo, doação por parte dos partidos políticos que recebem bilhões do fundo eleitoral, ou doações dos bilionários que mal pagam impostos, quando pagam.
No entanto, verdade seja dita, o negacionismo não é monopólio da direita. A esquerda dita desenvolvimentista – pelo menos em sua maioria – sempre desprezou a questão ambiental. O meio ambiente era considerado entrave ao desenvolvimento. No PT do RJ, onde militei nos anos 1980 e me elegi deputado com uma plataforma ambiental, o desprezo dos dirigentes partidários era soberano. Ouvi pérolas do seguinte tipo: “No Brasil, não existe questão ambiental, a questão é social”. Ou então: “Meio ambiente é uma falsa questão importada da Europa”. O meio ambiente não fazia parte da cartilha marxista que os dirigentes adotavam.
Torpedeada pela desenvolvimentista Dilma Roussef, então chefe da Casa Civil, Marina Silva saiu do Ministério do Meio Ambiente em maio de 2008, durante o segundo governo Lula. A ideia de que meio ambiente é um entrave ao desenvolvimento era voz corrente na linha desenvolvimentista. Agora, segundo matéria do Intercept de 6 de maio, o relatório “Brasil 2040”, elaborado em 2015 por técnicos e especialistas em meio ambiente, foi engavetado pelo governo Dilma, que o havia encomendado. O relatório apontava resultados dramáticos como “Elevação do nível do mar, mortes por onda de calor, colapso de hidrelétricas, falta d’água no Sudeste, piora das secas no Nordeste e o aumento das chuvas no Sul”.
O relatório foi elaborado por diversos órgãos e desagradou porque, na época, o governo Dilma apoiava a usina de Belo Monte e o estudo mostrava o impacto da crise climática sobre os recursos hídricos. Segundo o Intercept, o relatório “Brasil 2040” afirmava claramente que “as secas na regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte poderiam reduzir a água nas bacias hidrográficas, impactando a produção de energia elétrica das hidroelétricas. Na época, o governo estava construindo a faraônica usina de Belo Monte, que poderia ter sua capacidade de produção de energia reduzida em 50% com a projeção da seca”.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades… Assim inicia-se um famoso Soneto do grande poeta lusitano Camões. A questão ambiental, antes rejeitada por muitos, apesar das previsões dos cientistas e ecologistas, hoje torna-se prioridade e não vão faltar candidatos a pai da criança. A direita, por interesse, sempre rejeitou a questão do meio ambiente e foi negacionista da crise climática e da degradação ambiental. Sempre apoiou o agronegócio, a pecuária extensiva, a mineração, o desmatamento, a indústria poluidora, o envenenamento dos rios, enfim, toda atividade econômica que destrói o meio ambiente. O capital não tem reclamações da classe operária urbana, que tem se comportado muito bem. Já na fronteira agrícola, o capital se sente obrigado a assassinar lideranças rurais, camponeses, quilombolas, indígenas, ambientalistas etc. Eles se atrevem a criticar as atividades produtivas poluidoras e destruidoras do meio ambiente.
Os cientistas e jornalistas que denunciam a degradação ambiental estão sendo ameaçados. Segundo um estudo da Unesco, de 2024, dois de cada cinco pesquisadores do clima sofreram ameaças à sua segurança. De acordo com o jornalista Jamil Chade (UOL, 10 abr. 2024), “uma onda de ataques contra jornalistas e cientistas que lidam com temas ambientais ganha força e abre uma nova fronteira de preocupação no combate às mudanças climáticas. Levantamentos realizados por organismos internacionais e entidades de pesquisa revelam que o avanço do populismo, a erosão da democracia, a desinformação e o impacto de novas tecnologias estão colocando pressão sobre a segurança e a liberdade de cientistas.”.
Nos anos pós-ditadura militar, a maioria da esquerda dita desenvolvimentista defendia o crescimento econômico sem preocupação com a proteção ambiental. Só tempos depois é que a noção de desenvolvimento sustentável abriu caminho e ganhou respeitabilidade no mundo político, com exceção dos neoliberais e da extrema direita. Hoje, o meio ambiente, a mãe Terra, retoma seus espaços, destruídos sem respeito aos cuidados exigidos pela legislação ambiental.
Segundo Marcio Astrini, secretário do Observatório do Clima, eventos extremos como a tragédia ambiental no RS serão cada vez mais comuns por causa das mudanças climáticas e não podem mais ser tratados como “imprevistos”. Além de muitos governos estaduais e municipais, a maioria do Congresso também é negacionista e trabalha para destruir a legislação ambiental do Brasil. “Neste momento estão querendo acabar com a Lei de Licenciamento Ambiental, com a reserva legal na Amazônia, e com as reservas indígenas”.
De acordo com o climatologista Carlos Nobre, “o que acontece no RS não é uma tragédia natural. É consequência da ação humana, da irresponsabilidade, do descaso com o meio ambiente”. Os órgãos públicos podiam ter tomado medidas preventivas, porque sabíamos desde o ano passado que isso poderia ocorrer. Calamidades como a do RS serão cada vez mais frequentes no Brasil. Nobre disse que o Brasil pode ter 3 milhões de refugiados climáticos nos próximos anos por desastres relacionados ao clima.
Rualdo Menegat, do IG-UFRGS, denuncia que houve um apagão na infraestrutura do estado do Rio Grande do Sul, privatizada pelo atual governo estadual e gerenciada de forma incompetente. A drenagem natural e os ciclos hídricos foram destroçados pelas políticas de uso intensivo do solo. Segundo ele, “flexibilizaram leis para aumentar áreas de plantio de soja, desmontaram planos diretores para ampliar a especulação imobiliária em zona ribeirinhas, para instalar minas de carvão, favorecer a especulação imobiliária”.
“Para a ciência, isso não é nenhuma novidade”, afirma o físico Paulo Artaxo, membro do Painel Intergovernamental da ONU para Mudanças Climáticas (IPCC) e pesquisador da USP. “Há mais de vinte anos, todos os modelos climáticos mostram que, com o aumento da temperatura global, vai subir a quantidade de chuvas e secas muito intensas, ou seja, o clima vai ficar mais extremo. O relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas que fizemos há oito anos já previa chuvas mais extremas no Sul e secas na Amazônia”. E o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) alertou que as chuvas extremas no sul do país terão aumento de 60% em trinta anos. Mesmo cenário é visto no agreste e litoral do Nordeste. Seca extrema tende a piorar no norte de Minas, sul da Bahia, Tocantins e Goiás.
Assim, a catástrofe no Rio Grande do Sul não é consequência do acaso ou do imprevisto da natureza. É uma tragédia anunciada e com dupla negação. Os governos conservadores negam o papel do Estado, reduzido ao Estado mínimo previsto na cartilha do neoliberalismo, e negam também a crise climática e os eventos climáticos extremos anunciados e previstos pelos cientistas e ecologistas do Brasil e de todo o mundo. Enquanto o Rio Grande do Sul enfrenta o maior desastre ecológico já registrado no Brasil, seus deputados e senadores negacionistas, todos bolsonaristas, apoiam no Congresso a extinção do licenciamento ambiental, das reservas indígenas e a redução da reserva legal na Amazônia. No Rio Grande do Sul, a ficha caiu, mas no Congresso a boiada continua passando.
É de se esperar que a noção de desenvolvimento sustentável deixe de ser uma expressão vazia, utilizada apenas como enfeite em alguns programas partidários ou como retórica formal no discurso de políticos, e passe a se incorporar nos projetos concretos elaborados e executados pelos governos e pelas empresas do mercado que tradicionalmente ignoram o impacto ambiental de suas atividades produtivas. O desenvolvimento sustentável não se confunde com a noção quantitativa de crescimento econômico, pois envolve necessariamente o combate à desigualdade social e o respeito à diversidade cultural.
Entretanto, a visão neoliberal de austeridade fiscal, defendida pelo mercado financeiro e pela mídia, ignora até mesmo a noção conservadora de crescimento econômico, priorizando jaboticabas que só existem no Brasil como, por exemplo, teto de gastos, déficit zero e Estado mínimo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Estado investe pesado na infraestrutura e na tecnologia. Porém, defende o “austericídio” fiscal nos países de sua periferia.
Proteção ambiental e desenvolvimento sustentável são noções estranhas e ignoradas pelo mercado e pela grande mídia a seu serviço. Infelizmente, contudo, foram também ignoradas, durante muito tempo, pela esquerda desenvolvimentista que zombava das propostas ambientalistas. O meio ambiente, reprimido, retornou para retomar seus espaços violentamente destruídos, provocando uma inédita e caótica catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul, prevista pelos cientistas e ecologistas do Brasil e de todo o mundo. A grande interrogação é saber se, daqui para a frente, as previsões dos cientistas e as propostas dos ambientalistas serão ignoradas ou levadas em conta pelas políticas públicas e investimentos privados.
Liszt Vieira é integrante da Coordenação Política e Conselho Editorial do Fórum 21 e do Conselho Consultivo da Associação Alternativa Terrazul. Foi Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92.