Entre a liberdade e o terror: Robespierre e a Revolução Francesa
Um campeão incorruptível do povo ou um tirano sanguinário? O enigmático Robespierre encarnou as duas faces da Revolução da forma mais plástica
Os primeiros sinais de uma revolução na França começaram no dia 5 de maio de 1789, com a Assembleia dos Estados Gerais. A États Généraux se constituiu como representativa e consultiva, com a participação de dignitários de cada um dos Três Estados. Para fins de conhecimento, os Três Estados do reino representavam as três classes divididas pela pirâmide social. Cada uma deliberava sobre uma pauta separadamente, e o voto de cada Estado correspondia a um terço do geral. O Primeiro Estado representava o clero católico, sua hierarquia constituída; o Segundo Estado representava a classe nobre e casta francesa; o Terceiro Estado incluía o povo e a plebe, além da pequena burguesia local.
A Assembleia era convocada pelo rei em ocasiões de extrema necessidade, momentos de crise, guerra, sobretudo quando o Antigo Regime francês via sua soberania ameaçada de algum modo. Sua última configuração se deu exatamente nessa data, quando foi dissolvida com a Revolução Francesa. Oficialmente, a revolução começou com a tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, prisão que contava com pouquíssimos presos, mas que se tornou símbolo do rompimento dos grilhões que amarravam o sistema absolutista francês, que já vinha dando sinais de colapso. Todavia, devemos pensar que esta foi o ápice do movimento que vinha sendo traçado e teve no mês anterior, com a États Generaux, seu ponto de partida.

A intensa agitação política que viveu a sociedade francesa era configurada antes da queda do regime, em especial nos três anos antecedentes à revolução, pelas imensas crises sociais, políticas e econômicas que sustentavam os privilégios de uma pequena parcela da pirâmide social, sobretudo as classes do clero e dos nobres. Quando, então, o alto grau da nobreza francesa sugeriu que aumentassem os impostos para tentar tapar o buraco das crises, sem que estes impostos abarcassem a elite, gerou-se o clima propício para dar largada aos primeiros passos de uma revolução política, até então impensada. Seu momento de efervescência e ápice se deu quando, em definitivo, a monarquia absolutista foi varrida e os ataques sustentados por grupos políticos radicais, pelas massas nas ruas e por camponeses na região rural do país se consolidaram.
Para algumas correntes, uma das entidades responsáveis por formar e difundir novos ideais dentro e fora do círculo intelectual parisiense foi a maçonaria francesa, organização que reunia grandes pensadores e figuras de destaque na sociedade francesa, e por consequência obteve influência na configuração da revolução. Os antigos ideais tradicionais sustentados pela Igreja Católica, pelos reis e aristocratas foram substituídos por novos princípios que permeavam os círculos maçônicos, como Liberté, Égalité e Fraternité. O que outrora era estruturado como princípio norteador da sociedade, ou seja, a estrutura hierárquica e subordinativa da grande população rural e plebeia à pequena classe privilegiada, nobres e clérigos, dá lugar à configuração ideal sustentada na liberdade, igualdade e fraternidade, valores humanistas. Inclusive, o primeiro apontamento desse “slogan” está na obra Discours de la servitude volontaire, do humanista Étienne de La Boétie, por volta dos anos de 1500, porém sem o contexto revolucionário como pano de fundo.
Se no dia 5 de maio de 1789 as autoridades da corte francesa tentaram conter as graves crises fiscais internas do país, através da ampliação da cobrança de impostos dos mais vulneráveis, em 6 maio de 1758, 31 anos e 1 dia antes, em uma família descendente de notários na França do ancien regime, nascia Maximilien de Robespierre, expoente importante na revolução francesa. Na Assembleia, Robespierre foi eleito deputado do Terceiro Estado, constituindo-se como proeminente figura democrata. Intransigente, se posicionou contra a escravatura e defendeu o direito de votos independente de cor e etnia, como também foi a favor do direito universal e lutou pelo fim da pena de morte.
Como membro e fundador do Club des Jacobins, se tornou expoente de uma das alas mais radicais dos revolucionários, destoando dos girondinos e dos cordeliers, que possuíam uma postura moderada. Os três grupos, em conjunto, representavam o Terceiro Estado, mas quando os jacobinos tomaram a liderança da França, entre 1793 e 1794, o período ficou marcado pela tirania e pelo rastro de sangue. Robespierre, líder dos Jacobinos e presidente do Comité de salut public, que formou o governo provisório na França, implementa o chamado “Período do Terror”, período mais radical do processo de revolução na França, que contava com a aliança das forças jacobinas e dos chamados sans-culottes. Nesse contexto, podemos destacar a marca da perseguição política e religiosa – compreendida pela recente queda do Primeiro Estado e por um sentimento de ojeriza anticlerical; das guerras internas e civis; das execuções, em especial as em praça pública por intermédio da guilhotina.
Sob a batuta de Robespierre, centenas de monarquistas que estavam presos, além de clérigos e nobres, experimentaram o processo de morte em praça pública, como gesto de demonstração de poder e imposição do terror e do medo. Aparentemente, o líder político francês abraçou a máxima do autor florentino Nicolau Maquiavel, “é melhor ser temido do que ser amado”, de um modo tão pragmático que não deixou possibilidade para a piedade. Curiosamente, dentro do processo revolucionário, sobressaíam suas habilidades retóricas, seu compromisso com a causa republicana, além da sua própria retidão pessoal, que lhe rendeu o apelido de “L’Incorruptible”.
Um campeão incorruptível do povo ou um tirano sanguinário? O enigmático Robespierre encarnou as duas faces da Revolução da forma mais plástica: de defensor dos direitos do povo a defensor da guilhotina, sob a qual ele próprio caiu. Há dois Robespierres: o “incorruptível” e o “tirano”, o herói e o monstro, para usar as palavras da época. As duas imagens correspondem às duas fases de sua carreira revolucionária: o opositor e o homem do governo. O problema essencial que os historiadores enfrentam é conectar esses dois momentos e as duas faces que eles transmitiram para a posteridade. Como mudar de um para o outro? O fio condutor que liga o intrépido orador da Constituinte e o mestre da Convenção encontra-se no pensamento que os anima. Seus discursos inflamaram as massas e incitaram pessoas comuns, sem vínculo com qualquer aristocracia, a canalizarem a ideia de terror como encarnação da “vontade do povo” – como instrumento legítimo para garantir o estabelecimento de uma república livre, fraterna e igual.
Concluo com as palavras do professor Laurent de Saes, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da USP, em entrevista dada no editorial “Hoje na História”: “Robespierre é um personagem tão decisivo quanto trágico, e encarna algumas das contradições da própria Revolução: um opositor da pena de morte que recorreu ao terror como método de governo, um apologista da democracia direta que se viu à frente de uma ditadura de salvação pública”.
Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF).
Texto esplêndido. Fato importante e quase nunca lembrado da influência da venerável maçonaria nos ideais humanitários, para terra de além-mar. Isso sem esquecer dos grandes movimentos em nosso país com influência direta das grandes lojas.
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