Romney, diplomata na ponta do fuzil
Concebida como uma acusação contra a política externa dos democratas, o livro de campanha de Romney vale sobretudo pelo que revela do âmago da doutrina do candidato. As páginas dedicadas aos acontecimentos ocorridos em Honduras em 2009 e as declarações sobre a Indonésia de Suharto são particularmente dignas de atençãoJohann Hari
Formado pela Universidade Harvard e com postura de bom pai de família, Willard Mitt Romney nada tem em seu percurso que faça supor um gosto especial para a derrubada de presidentes democraticamente eleitos ou para a instalação no poder de tiranos responsáveis pela morte de centenas de milhares de pessoas. No entanto, o recurso a tais práticas constitui um dos pilares do modelo de política externa defendida, com toda indiferença, pelo candidato republicano à presidência dos Estados Unidos. Criticado em círculos progressistas por ter liquidado muitas empresas quando dirigia o fundo de investimentos Bain Capital, Romney também mereceria sê-lo por sua apologia aos coveiros da democracia.
Uma crítica frequentemente feita ao ex-governador de Massachusetts é a de ser um oportunista sem convicções reais, que iria à caça de votos sem um projeto claro. Porém, se ele de fato muitas vezes se contradiz sobre questões sociais (aborto, mudanças climáticas, seguro-saúde…), o mesmo não vale para sua carreira: forte defensor da ortodoxia neoliberal, nunca vacilou quanto a esse ponto. Aquele que respondia em 2011 a um adversário “mas, meu caro, as empresas são as pessoas!” nunca deixou de exigir, para as multinacionais norte-americanas, a liberdade de agir como bem entendessem, sem nenhum entrave, em todo o mundo.
A esse respeito, seu livro de campanha, No apology,1 é instrutivo em mais de uma maneira. Concebida como uma acusação contra a política externa dos democratas, a obra vale sobretudo pelo que revela do âmago da doutrina do candidato Romney. As páginas dedicadas aos acontecimentos ocorridos em Honduras em 2009 e suas declarações sobre a Indonésia de Suharto são particularmente dignas de atenção.
Eleito pelo povo hondurenho em uma eleição livre, o presidente Manuel Zelaya (2006-2009) dificilmente poderia ser chamado de radical. Como destaca Richard Gott, especialista em América Latina, esse “rico proprietário de terras, especializado em silvicultura e pecuária bovina, era o candidato do Partido Liberal, um dos dois polos tradicionais da oligarquia hondurenha”.2 À frente do segundo país mais pobre do Hemisfério Norte, ele não deixou de tentar melhorar a vida da maioria da população: aumentou o salário mínimo em 60% e investiu em programas sociais inspirados pelas políticas colocadas em prática no Brasil pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essas iniciativas foram suficientes para enfurecer a oposição de direita, que se apressou em tachá-lo como um novo “caudilho”, fazendo referência à demagogia e à ditadura. Assim, quando Zelaya anunciou a organização de um referendo sobre a possível convocação de uma Assembleia Constituinte – a Constituição em vigor, que datava de 1980, tinha sido elaborada pelos militares –, a direita gritou, falando em golpe de Estado: alta noite, homens armados de metralhadoras invadiram o palácio presidencial para dali retirar o chefe de Estado e sua filha.3
Levado à força a uma base militar dos Estados Unidos, Zelaya foi em seguida abandonado na pista de um aeroporto na Costa Rica, com ordens de nunca mais voltar a seu país. Enquanto isso, em Honduras, as rádios tinham parado de transmitir, as conexões de telefone estavam interrompidas e atrocidades se espalhavam por todo o país. A Anistia Internacional falou de “prisões em massa, espancamentos, tortura”.4 Mas rapidamente Romney pôde se alegrar: poucos meses depois do golpe, o novo governo organizou um fórum internacional com o tema “Honduras está aberta para o mercado”. Os capitais privados afluíram.
O desenrolar dos fatos, contudo, enraiveceu Romney. Não em nome da democracia violada, mas, pelo contrário, porque – diferentemente do costume – os Estados Unidos não assumiram a iniciativa de derrubar um regime de centro-esquerda na América Latina. “Quando Honduras quis se livrar de seu presidente marxista”, declarou à imprensa demonstrando seu desagrado, “[Barack Obama] proibiu”.5 Em seu livro, o candidato republicano à Casa Branca vai mais longe, descrevendo Zelaya como um “autocrata corrupto […] legalmente retirado do poder pelo Supremo Tribunal de Honduras. […] É surpreendente constatar que o presidente dos Estados Unidos tenha podido forçar Honduras a agir de forma incompatível com suas próprias leis, para restaurar o poder de um líder repressivo e antiamericano”.6 Graças a documentos revelados pelo WikiLeaks, agora sabemos que ninguém fora dos círculos conservadores mais radicais adere a essa tese. Prova disso são os telegramas diplomáticos da embaixada dos Estados Unidos em Tegucigalpa que relatam “sem sombra de dúvida” um “golpe de Estado ilegal e inconstitucional”, culminando no “sequestro” do presidente eleito.7
Brutal e autoritário
Eis os métodos recomendados por Romney para conduzir a futura política exterior norte-americana. Durante um debate organizado em novembro de 2011 pela CNN e pela Heritage Foundation, ele se mostrou ainda mais preciso e dessa vez fez o elogio “daquilo que aconteceu na Indonésia, nos anos 1960, quando ajudamos o país a entrar na modernidade graças a um novo regime”. Um período da história particularmente esplendoroso a seus olhos e no qual os Estados Unidos deveriam se inspirar para gerir suas relações com o Paquistão e, por extensão, com o resto do mundo. Outra maneira de encarar os eventos que ocorreram na Indonésia durante os anos 1960 seria dar crédito à versão sustentada pelas notas internas da CIA, que defende que os Estados Unidos contribuíram para dar plenos poderes a um homem que “figura na lista de honra de um dos maiores criminosos de massa do século XX”.8
O que tinha essa política de tão excepcional para que meio século depois ainda despertasse a admiração do candidato conservador na Casa Branca? Como assinala um telegrama diplomático britânico de 1964, a Indonésia era então um país importante em virtude de seu papel como “grande fornecedor de matérias-primas essenciais”: ela produzia “cerca de 85% da borracha natural mundial, 65% do óleo de copra e detinha 45% dos estoques de estanho e 23% de minério de cromo”.9 Nos anos 1950 e 1960, ela foi dirigida por Achmed Sukarno, um presidente autocrático que rejeitava o imperialismo norte-americano e soviético para traçar seu próprio caminho e preservar os recursos naturais do país. Um desejo de independência que obviamente não era do agrado das multinacionais norte-americanas. Quando Romney elogia a Indonésia, é na era de Suharto que ele está pensando – um personagem muito mais brutal e autoritário do que seu antecessor e levado ao poder com a ajuda dos serviços secretos dos Estados Unidos.
Na Indonésia, a CIA trabalhou durante muito tempo na preparação do golpe. Ela formou e equipou o Exército até fazer dele um Estado dentro do Estado. Então, quando os militares ficaram em posição de tomar o poder, ela lhes enviou uma lista de 5 mil nomes de supostos comunistas. Joseph Lazarsky, que dirigia então o escritório local da CIA, acredita que essas informações foram usadas como “licença para matar”.10 Esse primeiro massacre deu início a uma purgação generalizada de comunistas (ou presumidos consumistas), que eliminou meio milhão de pessoas, na maioria agricultores. Mais tarde, Suharto invadiria o Timor Leste, onde exterminaria um terço da população.
De acordo com Romney, esse método mostrou sua eficiência porque permitiu à Indonésia ter acesso à “modernidade”, isto é, abrir amplamente suas portas para as multinacionais que se tornavam mais livres para prosperar ali à medida que os movimentos de resistência popular eram subjugados de forma sangrenta pela junta militar. De fato, logo após a cruel repressão, o presidente Suharto convidou grandes grupos internacionais de industriais para participar de uma conferência em que lhes concedeu os direitos de exploração de porções inteiras de território.
As relações internacionais não são a única área que o candidato republicano considera sob o prisma exclusivo da busca do lucro. Essa grade de leitura se aplica segundo ele às áreas mais íntimas da vida. Assim, poucos anos depois de se formar na Harvard Business School, Romney voltou à universidade para dar uma palestra a uma plateia de estudantes: “Vocês [enquanto indivíduos] são como uma multinacional. Vocês têm os mesmos problemas que a General Electric”.11 Para apoiar sua teoria, ele apresentou uma “matriz BCG” – um gráfico comumente usado na estratégia de negócios no qual os diversos setores de uma empresa são representados por círculos, cujo tamanho é proporcional às receitas geradas. Aplicado à esfera privada, o gráfico inclui três bolas: uma representa o trabalho, a outra, a família; e a última, a religião. “O tempo gasto no trabalho”, diz Romney, “tem consequências tangíveis, já que ele rende dinheiro. […] Seus filhos, porém, não vão lhe render nada durante vinte anos.” Pior ainda, se os pais não lhes consagrarem tempo suficiente, eles podem mesmo tornar-se um “peso morto” para a família e para o resto da sociedade.
Se é permitido avaliar o próprio filho de acordo com critérios de produtividade, por que o mesmo não valeria para um tirano? O meio milhão de camponeses mortos sob o regime de Suharto não rendia nada para os Estados Unidos; eles eram um “peso morto”. Já o déspota permitiu que empresas privadas enriquecessem. Em tal sistema de pensamento, a escolha é feita rapidamente: ficar ao lado do povo contra seu algoz é ilógico. Romney erigiu a maximização dos lucros em valor que ele aplica igualmente a todas as instituições humanas, da família à presidência.
Longe do vazio ideológico de que é muitas vezes acusado, Romney é ao contrário um ideólogo puro e duro, capaz de esconder os sofrimentos que suas crenças podem gerar. Como Joseph Stalin, também convencido de “ajudar seu país a entrar na modernidade, com um novo regime”, e que não ouviu o grito de fome da Ucrânia, Romney não ouviu o baque surdo da queda dos corpos dos dissidentes hondurenhos e dos professores indonésios assassinados. Na “América” do candidato republicano, a empresa tem todos os direitos e sabe como fazê-los valer, se necessário na ponta de um fuzil.
Johann Hari é colunista do The Independent (Londres).