‘Rosas de Chumbo’: uma conversa com Daniela Bonafé sobre o livro que resgata a história de mulheres vítimas da ditadura militar brasileira
Na obra, a autora e militante dos direitos humanos relembra através da ficção 50 mulheres de grande importância para a resistência durante os anos de chumbo
Recentemente, o filme Ainda estou aqui, baseado no livro homônimo de Rubens Paiva, lançou mais uma vez a atenção para a discussão dos horrores da ditadura militar brasileira, reforçando assim o papel da literatura e arte no debate dessas feridas históricas e na preservação da memória de um passado que não deve ser esquecido.
Neste contexto, é lançada a obra Rosas de Chumbo, de Daniela Bonafé. Nos 13 capítulos, a autora e militante dos direitos humanos, ecoa vozes de 50 mulheres importantes para a resistência, porém silenciadas pela ditadura militar. Por meio da ficcionalização, ela traz os desejos e vontades dessas mulheres, dando-lhes identidades únicas e revertendo o efeito de desumanização que a ditadura tão brutalmente lhes impôs.

Daniela Bonafé, nascida em 1981 em São Paulo, é professora e possui uma formação acadêmica diversificada. Graduada em Artes Cênicas e Pedagogia, tem várias pós-graduações, incluindo Teatro, Tecnologias Assistivas, Gestão Escolar e Educação Digital. Atua na educação desde 2004, tendo lecionado nas redes estadual e municipal e, atualmente, na rede particular, além de formar docentes em Arte Educação e Educação em Direitos Humanos.
Confira abaixo uma entrevista com a autora:
O tema da ditadura militar é bastante denso e complexo, permeado por elementos espinhosos como tortura, violência contra a mulher e desaparecimento. Por que você decidiu abordar esse período e seus estigmas na sua obra?
Sou militante dos Direitos Humanos: formada como conselheira em Direitos Humanos e premiada na cidade de São Paulo pela Secretaria de Direitos Humanos, que reconheceu o projeto Coletivo Rede Semente, realizado com adolescentes no âmbito da Educação, como relevante e necessário. Isso significa que temas relacionados a essa área sempre me foram caros. Como escritora, na literatura juvenil e adulta, tenho alguns objetos de desejo e estudo, isto é, coisas das quais falo com recorrência: tudo o que escrevo costuma abranger mulheres, violência e opressões, escrita (metalinguagem), movimento, maternidade e morte. Então não foi novidade eu me aproximar daquilo que move esse projeto: mulheres torturadas e mortas durante a ditadura militar brasileira, muitas delas mães e em pleno movimento de luta por seus direitos. É como se eu unisse num único livro diversos anseios e paixões relacionados à escrita e à educação.
Como surgiu a ideia de escrever Rosas de chumbo? E como foi o processo de criação da obra?
Acho que a vontade de falar disso nasceu há muito tempo, talvez na adolescência, quando passei a me engajar mais nos movimentos políticos e estudantis e depois, já adulta, nos movimentos pela educação pública e dos direitos humanos. Para escrever essa obra, me dediquei a uma pesquisa que durou cerca de 6 a 7 meses. Depois da pesquisa veio o tempo demorado da escrita: mais de um ano me dedicando ao texto. Só depois enviei para a leitura beta, leitura crítica e revisão.
Deixei a história descansando por mais um ano, porque acho importante o tempo da digestão. Sou uma escritora sem pressa, que escreve devagar, tenho muito carinho com cada processo do meu livro. Quando decidi olhar para ele de novo e relê-lo, percebi que era hora de publicá-lo porque não mudei uma vírgula. Estava pronto.
Você poderia contar um pouco do processo de pesquisa das biografias e documentos das mulheres retratadas no livro?
Li muitos documentos disponíveis da Comissão Nacional da Verdade e do Centro de Referência do Memorial da Resistência em SP, além de reportagens, recortes de jornais e diários oficiais do período, tudo o que consegui sobre as mulheres listadas que eu decidi priorizar. A cada dia ou semana eu lia a biografia de uma dessas mulheres e pesquisava tudo o que conseguia, reportagens, causa da morte, documentos que estavam anexados nos arquivos da CNV. Cada uma delas chegava a mim de uma forma, ora por conto, ora por poesia, ora por carta… e eu fui lapidando, fazendo com que as histórias ficassem mais palatáveis a ponto de qualquer pessoa ler, sem ter que escarafunchar documentos para saber o que aconteceu.
De que forma você conectou sua necessidade de expressão às vozes das mulheres silenciadas pela violência de estado?
Na época estávamos vivendo o esfacelamento de nosso país com Bolsonaro na presidência e eu queria muito que não vivêssemos mais aquilo. Quando vi as manifestações de pessoas à favor da volta da ditadura, eu tive certeza de que meu livro era necessário e cumpriria um lindo caminho no sentido de ser mais um instrumento de luta. Fui unindo minha necessidade de falar com as falas dessas mulheres silenciadas pela violência de estado. Então mergulhei nos estudos dos arquivos.
Você escolheu organizar o livro de forma cronológica. Por que fez essa escolha e qual impacto espera causar no leitor?
Quis organizar o livro por ordem cronológica para dar a dimensão real da ditadura, onde cada texto é uma homenagem a uma dessas mulheres, carregando seus nomes e trazendo a voz de cada uma. Além disso, pensei na ordem cronológica por lecionar para jovens, que não viveram nada disso e para quem a ditadura é uma realidade distante, um passado remoto. Pensando nisso, percebi a necessidade de uma ponte e adicionei elementos como uma playlist da época para ambientar a obra, que pode ser acessada pelo QR code contido no livro. Mais tarde, com a dica da minha crítica literária, inseri a cada capítulo de ano da ditadura uma pílula de contexto, como se fosse um título ou o lide de uma notícia, onde o leitor percebe como aquele momento era retratado na mídia e, em seguida, adentra os textos que são a realidade nua e crua, mas que não era divulgada, como se fosse um universo paralelo.
E entrar em contato tão profundamente com essas histórias te afetou de algum modo? Quais desafios físicos e emocionais você enfrentou ao trabalhar em um tema tão visceral?
Como citei, a vontade de abordar esse assunto nasceu quando eu era muito jovem, então precisei me preparar durante a juventude para encarar o que eu precisava ler, para agora, já mais madura, saber lidar melhor com a pesquisa sobre a barbárie e tudo o que ela moveu em mim. Fui me aproximando devagar da temática da ditadura porque sinto demais as coisas e não houve um dia sequer de minha pesquisa que eu ficasse bem. Chorei, tive vômitos, quase desisti. Me sinto orgulhosa depois desse percurso porque, para além do meu próprio livro no mundo, essa obra foi um divisor de águas em mim.
Na sua trajetória literária, você estudou e trabalhou muito com o insólito. Como esse aspecto influenciou a sua obra?
Na época em que eu escrevi o Rosas de Chumbo, eu estava estudando o insólito com profundidade, fiz diversas publicações de contos insólitos em revistas literárias, o que me aproximou ferozmente ao terror social na literatura e da minha vontade de falar da violência e da morte para talvez compreender melhor esses fenômenos. Vi que eu gostava e me sentia confortável em falar das mulheres que já morreram, dando a elas a voz que elas não puderam ter ou que tiveram por pouco tempo. Nesse sentido, minhas referências fundamentais foram autores como Cortázar, Borges, Diamela Eltit, Mariana Enriquez, Maria Fernanda Ampuero, entre outros.

Você poderia comentar como a bagagem de suas obras anteriores, que vai de contos insólitos a um romance infanto-juvenil, influenciou na construção do Rosas de Chumbo?
No Menina na Estrada, meu romance infanto-juvenil, experimentei a prosa longa e um percurso linear, testando minha afinidade com o gênero. Em Contos para o Fim do Mundo, explorei a interconexão entre histórias, criando uma coletânea que pode ser lida como um romance; porém, foi em Na Redoma da Flor, no qual flertei com a poesia concreta e a autoficção, que percebi meu gosto por explorar diferentes formas de escrita. Rosas de Chumbo é minha primeira extrapolação, onde faço livres bricolagens e exploro as misturas entre poesia, crônica, diário, recorte de notícia, conto, música, texto teatral… falando dessa violência que ainda é tão presente em nossas memórias e, se fizermos um paralelo, em nossa vida atual.
Esse romance me veio como um chacoalhão, fui tomada por ele, não percebi o tempo ralentar, não fiquei ansiosa, não segui as “receitas” de quantidade de palavras, de uma frase que te fisga no início… eu simplesmente o escrevi do meu jeito, misturando tudo, no meu tempo e com a minha concisão típica.
E como você definiria seu estilo de escrita?
Minha escrita é híbrida, eu gosto de bricolagens, de usar textos de outros autores para escrever, fazendo colagens e traçando conversas e paralelos. Usei Brecht, Diamela, e tantos outros com os quais me identifico. Uma das minhas características é a liberdade do verso, a antropofagia e a bricolagem como movimento para diálogo e aprofundamento de questões, para mim é natural escrever assim.
Por fim, qual foi o sentimento de trazer à tona essas histórias? O que essa obra representa para você?
Para mim, é uma honra contar a história de todas nós através da história dessas mulheres. Dou voz a elas e a nós, mulheres de hoje, que ainda carregamos muitas marcas desse tempo em nossa memória e corpo coletivos. Então todo esse processo foi inaugurando em mim um novo tempo. Uma travessia difícil, mas necessária. Quando finalizei o livro eu me senti forte e frágil ao mesmo tempo, era como se eu tivesse milhares de pernas para caminhar e nenhuma, mas com absoluta certeza de sua relevância e da importância de todas nós seguirmos juntas.
Ana Ferrari é uma jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e pós-graduanda em Edição e Gestão Editorial pelo Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (NESPE). Sempre teve forte ligação com a literatura e às vezes se aventura a escrever textos ficcionais.