Ideólogo ligado ao ex-presidente George Bush, Samuel Huntington publicava, em 1993, seu célebre “Choque de civilizações?”, texto em que vaticinava: “As grandes oposições entre as espécies humanas e a fonte dominante dos conflitos serão culturais”[1]. Quase trinta anos após a publicação deste ensaio, o panorama internacional parece dar a Huntington o mérito de ter antevisto os contornos de um futuro que hoje se faz presente.
No conflito em curso na Ucrânia, a possibilidade de êxito da Rússia em redesenhar o mapa geopolítico internacional, contestando a unipolaridade centrada no binômio EUA-Otan, trouxe à tona uma guerra cultural de novo tipo. O conflito assume inequívocos traços russofóbicos, expressos não apenas nas sanções econômicas e políticas, mas sobretudo naquelas de caráter cultural. Ignorando o princípio da responsabilidade individual – que, ao menos no discurso, sempre foi caro a países herdeiros da tradição liberal —, essas retaliações se voltam não apenas contra o Estado, mas também contra a totalidade da população russa.
No caso das sanções propriamente culturais, importa destacar que, em tempos de globalização e redes digitais, estas assumem o aspecto do cancelamento — aplicado, agora, não a indivíduos, mas a todo um país. Busca-se inocular na opinião pública uma lógica discursiva binária, de perseguição e punição imediata, em que não pode haver nuances e matizes[2]. O discurso avassalador contra a Rússia, turbinado pelos poderosos aparelhos de hegemonia do Ocidente, deixa atordoados até mesmo setores progressistas e de esquerda, que em tese deveriam guardar posição mais cética[3].
Verifica-se, no plano simbólico, uma clara tentativa de alvejar a cultura russa como forma de atingir o soft power do gigante euroasiático. A histeria macarthista de cancelamento de atletas (Fifa, COI e federações), músicos, artistas e até clássicos universais da literatura e da ciência russa compõe esse esforço, que não chega a ser propriamente novo, pois já se verifica ao menos desde a época soviética. Fica claro, contudo, que o fenômeno atinge agora dimensões extremas de intolerância e xenofobia.

Dostoiévski
A Universidade de Milão anulou um curso sobre Dostoiévski e, embora tenha voltado atrás na decisão, já era tarde. O teatro de Gênova desmarcou um festival em homenagem ao autor de Os Irmãos Karamazov e o prefeito de Florença disse ter recebido pedidos para derrubar uma estátua do autor russo na cidade. Seguiram-se o cancelamento de filmes russos nos festivais de cinema de Glasgow e Estocolmo. O renomado Festival de Cannes comunicou que não aceitará delegações oficiais da Rússia.
Na música clássica, a Polônia proibiu execuções de Tchaikovski e Shostakóvitch. O pianista Sergey Belyavsky foi excluído da competição internacional de pianistas em Dublin, na Irlanda, por ser russo[4]. A soprano Anna Netrebko teve suas apresentações canceladas no Metropolitan de Nova York. Valery Gergiev, o maior maestro russo da atualidade, teve suas apresentações com a Filarmônica de Viena canceladas, além de ser demitido da Filarmônica de Munique, na Alemanha, onde tinha o cargo de maestro-chefe. O motivo declarado para a demissão do maestro foi ter-se recusado a dar declarações anti-Putin. No Ocidente da “liberdade de expressão”, quem não concorda estritamente com a narrativa e os pressupostos dos potentados ocidentais agora está sujeito ao cancelamento e à demissão.
A “limpeza” cultural, como não poderia deixar de ser, também se estende às grandes da indústria do entretenimento, como Disney, Sony e Warner. A Netflix suspendeu produções russas e o Spotify encerrou sua presença física em Moscou. Haveria muitos outros exemplos a destacar, porém o mais importante é ressaltar que as sanções de tipo cultural não deixam de exalar fortes conotações racistas.
É quando recordamos a tragédia do imperialismo e do colonialismo, com sua oposição entre nações “civilizadas” — hoje lideradas por Estados Unidos e Otan — e povos “bárbaros” ou “incivilizados” — agora encarnados na Rússia. A recorrência desse tipo de discurso não se dá por acaso. Como lembra o pensador marxista italiano Domenico Losurdo, “a desqualificação racista do inimigo abre caminho a formas de violência que atacam todo um povo”[5].
O preconceito antirrusso é por vezes explícito. Não à toa, jornalistas são flagrados expressando seu sentimento de estarem diante de uma guerra “diferente”, pois agora se trata do sofrimento de europeus (ou de “quase” europeus, como chegam a assumir alguns), e não de sírios, africanos ou orientais. A questão dos refugiados surge ainda mais gritante, uma vez que os ucranianos são aceitos sem ressalvas (desde que não sejam negros residentes na Ucrânia), ao mesmo tempo que, ainda hoje, milhares de africanos e sírios, provenientes de outras guerras com participação da Otan, são barrados ao tentarem entrar na Europa. Dois pesos, duas medidas.
O aspecto racista do discurso antirrusso, somado às notórias relações institucionais do governo de Zelensky não só com o ideal nazista[6], mas com facções milicianas de semelhante inspiração, sugere uma espécie de revanche do nazismo pela derrota na Segunda Grande Guerra — derrota para a qual a Rússia, então como União Soviética, contribuiu com grande protagonismo.
O que se tenta hoje é empregar contra a Rússia os surrados métodos colonialistas já antes empregados na África, na Ásia e na América Latina. Volta à cena a ideia de que, fora da Europa civilizada, há apenas “menoridade” intelectual, povos bárbaros e incapazes, que só podem participar do Primeiro Mundo se aceitarem os termos universalistas do liberalismo político, econômico e epistêmico.
O Ocidente coloca-se contra a ascensão de países que, ao afirmarem seu projeto nacional, colocam-se objetivamente em contradição com os desígnios de dominação planetária do sistema imperialista. Contra os países que ousam afirmar um caminho próprio de desenvolvimento, o liberalismo não se furta, uma vez mais, a dar as mãos ao nazifascismo.
Isso não ocorre por acaso. Há interesses concretos em jogo, e eles mais uma vez são recobertos com o surrado discurso do “choque de civilizações”, forma um tanto mais “plástica” de apresentar a velha dicotomia civilização vs. barbárie. Pois o fato é que, entre as civilizações em “choque”, a suposição é que apenas uma representa as causas da “liberdade”, da “democracia” e dos “direitos humanos”. Senão vejamos como Huntington aplica seu célebre conceito à leitura das intervenções do imperialismo em países do Oriente Médio:
“Depois de ter derrotado o mais forte exército árabe (o iraquiano), o Ocidente não hesita em fazer sentir o seu peso sobre o mundo árabe (e sobre a Líbia em particular). O Ocidente, com efeito, está usando instituições internacionais, poderio militar e recursos econômicos para impor um governo do mundo que mantenha o predomínio ocidental, defenda os interesses ocidentais e promova os valores políticos e econômicos ocidentais.”[7]
Cabe notar, com base nas palavras do próprio Huntington, que o “predomínio” do Ocidente e de seus “interesses” não apenas importa como é mencionado antes dos “valores” ocidentais. O Iraque e a Líbia, pontos problemáticos de uma região estratégica, precisam dobrar-se a esses “valores” e, na verdade, aos interesses que eles recobrem. Ao analisar, com grande perspicácia, o discurso huntingtoniano, afirma Losurdo:
“A tese do ‘choque de civilizações’ oculta os reais conteúdos da contradição entre o Ocidente e o mundo árabe, acabando por transfigurar ideologicamente a tradicional política colonial e imperial das grandes potências que se autoproclamam representantes únicas se não da civilização enquanto tal, pelo menos da civilização autêntica.”[8]
O mundo dito “incivilizado”, que já esteve encarnado recentemente em iraquianos, líbios, sírios, iranianos e afegãos, assume agora a face da velha Rússia. Essa evolução confirma “a instabilidade dos limites entre civilização e barbárie, ou seja, […] que a ideologia desenvolvida em função da legitimação e celebração das empresas coloniais acaba depois por reemergir no decorrer dos ásperos conflitos internos à metrópole capitalista”[9].
O mesmo autor já postulava, referindo-se à “expedição iraquiana”, que esta havia deixado como resultado uma “fratura geopolítica”[10] na relação entre o Ocidente e o mundo árabe, inclusive reforçando movimentos fundamentalistas. Podemos dizer que fenômeno semelhante se apresenta neste momento. Porém, não mais se trata de uma fenda entre o Ocidente e o mundo árabe, mas de uma fratura maior, envolvendo o Ocidente e o Oriente.
Cristiano Capovilla é doutor em Filosofia (UERJ) e professor do Colégio Universitário da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Fábio Palácio é doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP) e professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
[1] HUNTINGTON, Samuel. The clash of civilizations?. Foreign Affairs, New York (USA), 72(3), 1993. p. 22.
[2] Em certas redes de TV, a mera consideração ponderada do conflito tem levado analistas a serem acusados – às vezes com descortesia – de “defender Putin”.
[3] A referência ajusta-se, com efeito, a certa esquerda que não consegue distinguir a contradição principal – entre o imperialismo e os povos – das contradições secundárias, e acaba colocando a Rússia periférica em pé de igualdade com o imperialismo. Passa incólume, dessa forma, o discurso colonialista. Esse equívoco é impulsionado pela ambiência pós-moderna, que solapou a compreensão processual, histórica e objetiva dos fenômenos sociais, mediada pela totalidade concreta, pondo em seu lugar uma fragmentação analítica operada por sujeitos epistêmicos abstratos, cujas categorias teóricas ficam muitas vezes restritas ao âmbito da experiência empírica condicionada por estruturas de subjetividade.
[4] THOMAZ, Danilo. Russos viram párias nas artes e acendem o alerta sobre ‘macarthismo cultural’. Folha de S.Paulo [on-line], São Paulo, 3 mar. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/03/russos-viram-parias-nas-artes-e-acendem-alerta-sobre-macarthismo-cultural.shtml?origin=uol.
[5] LOSURDO, Domenico. Liberalismo. Entre civilização e barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006. p. 47.
[6] Ao lado dos EUA, o país foi o único a votar contra resolução da ONU que condenava o nazismo. Além disso, o país colocou na ilegalidade o Partido Comunista no tempo mesmo em que legalizou legendas de inspiração nazista.
[7] HUNTINGTON, Samuel P. Op. Cit. p. 40.
[8] LOSURDO, Domenico. Op. Cit. p. 59.
[9] Id. Ibid. p. 43.
[10] Id. Ibid. p. 59.