Sanções e guerra no conflito ucraniano
Ao reconhecer a independência de duas regiões separatistas, o presidente Vladimir Putin comprometeu a integralidade da Ucrânia e acelerou a espiral de sanções contra a Rússia: embargos, restrições financeiras, lista de dirigentes excluídos de reuniões internacionais… Apesar de raramente eficazes, essas medidas são cada vez mais usadas por Washington e União Europeia
“Se Putin invadir, quero que saiba uma coisa: vai ter problemas para comprar um refrigerante em uma máquina de venda automática cinco minutos depois”, declarava aos jornalistas o político democrata Seth Moulton, em visita a Kiev no fim de dezembro de 2021. No início de janeiro,1 os membros de seu partido apresentaram um projeto de lei2 que prevê sanções preventivas, um conceito nada habitual em relações internacionais, pois se trata de uma resposta a algo hipotético.
O projeto tem por objetivo, “em caso de escalada”, proibir os principais bancos russos de utilizar o dólar e a Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (Swift), o sistema internacional de transações interbancárias pelo qual transita a maioria das transações financeiras do mundo. Além disso, a Rússia se sujeitaria a um embargo sobre tecnologias avançadas e a um bloqueio do gasoduto Nord Stream 2. Essas ameaças não foram suficientes para dissuadir Vladimir Putin. Na noite do dia 23 de fevereiro, o Exército russo invadiu a Ucrânia, levando os ocidentais a executar represálias econômicas. Essa onda de novas sanções terá um impacto superior àquelas adotadas em 2014. O banimento de centenas de cidadãos e entidades russas e as restrições comerciais limitadas dão lugar a embargos sobre amplos setores da economia, especialmente militares e bancários. O segundo maior banco da Rússia, o VTB, e três outros estabelecimentos foram banidos do sistema financeiro global. O maior, o Sberbank, não pode mais efetuar transações com contrapartes norte-americanas. Mas a exclusão da Rússia do Swift ainda não foi decretada, uma vez que impediria os europeus de pagar sua conta de gás a Moscou. Enquanto anunciam que não vão sacrificar a vida de nenhum soldado pela Ucrânia, os ocidentais transferem para Moscou o “preço” de sua decisão. Não o suficiente, contudo, para “obrigar a paz”, segundo a expressão do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, à frente de um Exército que já sofreu perdas consideráveis.
Pressões econômicas para dobrar um adversário? A história das relações internacionais está cheia delas. Pense-se, por exemplo, no bloqueio continental imposto por Napoleão à Inglaterra em 1806 ou no decretado pelo presidente Abraham Lincoln contra os estados sulistas durante a Guerra de Secessão (1861-1865). Prelúdio do conflito, essas medidas em geral continuavam em vigor após o início das hostilidades. Mas, no início do século XX, o presidente norte-americano Woodrow Wilson, já consciente do poderio econômico de seu país, percebeu que esse tipo de ação poderia substituir a guerra. “Quem recorrer a essa medida econômica, pacífica, calma e fatal não precisará recorrer à força. Não é uma medida tão terrível. Não sacrifica uma só vida fora do país exposto ao boicote, mas faz contra esse país uma pressão à qual, penso eu, nenhuma nação moderna consegue resistir”, anunciou durante as negociações do Tratado de Versalhes, em 1919.
Na mesma época, com vistas ao policiamento das relações internacionais, foi criada uma organização permanente, a Sociedade das Nações (SDN), dotada ela própria de um poder de sanção destinado a impedir que litígios entre países degenerassem em guerra. As agressões da Alemanha nazista, do Japão e da Itália sufocaram esse projeto no berço. Em 1945, a ideia reapareceu na carta das Nações Unidas, que erigiu em princípio a regulamentação pacífica dos litígios entre Estados e proibiu o recurso à força (artigo 2º). Em caso de ameaças à paz ou de conflitos, ela confia a um órgão especial, o Conselho de Segurança – e só a ele –, o poder de adotar sanções para pôr termo à crise. O artigo 41 da carta estabelece assim uma lista, não limitativa, de restrições possíveis: “interrupção completa ou parcial das relações econômicas e das comunicações ferroviárias, marítimas, aéreas, postais, telegráficas, radioelétricas e de outros meios de comunicação, bem como a ruptura das relações diplomáticas”. O leque foi se ampliando com o decorrer do tempo: sanções econômicas (comerciais ou financeiras), militares (embargo de armas), diplomáticas, culturais e esportivas. Isso deixa claro o cuidado da ONU de enquadrar uma prática forçosamente mais disseminada entre as grandes potências do que entre as outras.
Contudo, a rivalidade entre blocos se manifesta fora das regras da ONU. Desde 1950, os Estados Unidos incentivam a criação de um Comitê de Coordenação para o Controle Multilateral das Exportações, organização oficiosa abrigada na embaixada norte-americana de Paris e cujo objetivo é entravar a venda de produtos e tecnologias militares ou civis para países do mundo comunista. Asfixiar o inimigo continua fazendo parte do arsenal norte-americano contra Cuba (desde 1962), Vietnã (1975-1994, salvo o embargo das armas, suspenso em 2016) e Coreia do Norte (desde 1950). Foi também nessa época que os países árabes exportadores de petróleo fecharam as torneiras para Israel e seus aliados. A adoção de sanções multilaterais pelo Conselho de Segurança se limita a casos emblemáticos: embargos de armas contra o regime racista da África do Sul em 1963 (confirmado em 1977) e em seguida contra a declaração unilateral de independência dos brancos da Rodésia do Sul (ex-Zimbábue) em 1966.
O desaparecimento da União Soviética em 1991 inaugurou a chamada “década das sanções”, no curso da qual o Conselho de Segurança adotou nada menos que treze regimes restritivos, entre os quais um embargo contra o Iraque por causa da anexação do Kuwait em 1990 – uma violação flagrante do direito internacional – e, em 1993, contra a Líbia de Muamar Kadafi por seu envolvimento nos dois atentados aéreos (em Lokerbie em 1988 e no Níger em 1989). Essa medida produziu os efeitos desejados: Trípoli reconheceu sua responsabilidade (1999), renunciou ao programa de armas de destruição em massa (2003) e aceitou colaborar com as investigações internacionais. Os Estados Unidos exercem agora uma influência predominante no Conselho de Segurança. Todavia, a partir dos anos 1990, contornando-o, eles incrementaram a máquina de punir. De 1918 a 1998, a Casa Branca restringiu seu intercâmbio com nações sancionadas 115 vezes, 64 durante os anos 1990 e quase sempre unilateralmente. Em 1997, praticamente metade da população mundial vivia sob sanções norte-americanas.3
Ordenação jurídica vaga
Particularmente severo, o embargo comercial, financeiro e militar infligido ao Iraque em 6 de agosto de 1990 marcou uma reviravolta. Prolongado por dez anos após a “primeira Guerra do Golfo”, autorizada pelo Conselho de Segurança, ele arruína a economia do país, reforça o regime em vigor, que tira proveito do contrabando para contornar as sanções, e provoca penúria alimentar e de medicamentos: 500 mil crianças perderam a vida por isso, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) – mas “o preço vale a pena”, avaliava em 1996 Madeleine Albright, então embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas. Denis Halliday, subsecretário-geral da ONU e coordenador das operações humanitárias no Iraque, pediu demissão em 1998, denunciando “a destruição de toda uma sociedade”. Enquanto o embargo contra o regime de apartheid foi saudado como um mal necessário até por Nelson Mandela, vozes se elevam para criticar, com base no caso iraquiano, os embargos em geral, pois eles golpeiam às cegas populações inteiras, sem necessariamente importunar seus governantes. Vai também caindo por terra a ideia de que sanções econômicas são sem dúvida menos mortíferas que o envio de tropas.
Essas críticas promovem o surgimento de uma nova categoria de sanções, ditas “direcionadas” ou “inteligentes”, em oposição aos embargos gerais considerados injustos ou “cegos”: incidem, por exemplo, sobre certas categorias de produtos – petróleo, diamantes, madeira, armas – e excluem os de primeira necessidade (alimentação, saúde). Além disso, o Conselho de Segurança das Nações Unidas agora designa, como costumam fazer os Estados em suas relações bilaterais, organizações e pessoas privadas tidas como responsáveis por distúrbios ou delitos internacionais. Em 1998, a junta de Serra Leoa e os líderes da União pela Independência Total de Angola (Unita), como também seu círculo, tiveram seus bens no estrangeiro congelados e sua entrada em alguns países proibida. De início em caráter excepcional, essas medidas se generalizaram após o 11 de Setembro de 2001, com a perseguição dos dirigentes da Al-Qaeda e a luta contra o financiamento do terrorismo. Uma vez que o consenso entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança é mais fácil de obter no que concerne à África, esse é o continente mais afetado (Sudão, Quênia, Somália, República Democrática do Congo etc.) por medidas individuais multilaterais contra chefes de Estado, ministros, militares, diretores de serviços de informação ou policiais, senhores da guerra, traficantes.
O quadro jurídico permanece vago: os indivíduos são sancionados sem processo e sem possibilidade real de defesa.4 Seu círculo ou seus parentes também podem aparecer na lista. Acasos infelizes de homonímia colocam pessoas num embaraço perpétuo. A ausência de garantias jurídicas é, a propósito, constatada regularmente na Corte Europeia dos Direitos Humanos e na Corte de Justiça da União Europeia5. A arbitrariedade reina inconteste, como quando Washington e Bruxelas sancionam oligarquias russas pela anexação da Crimeia em 2014, na qual não desempenharam papel algum.
Outra evolução, pouco notada, afeta o universo das sanções: a ênfase nos argumentos fundados na violação dos direitos humanos e na natureza de certos regimes julgados não democráticos. Se no fim dos anos 1960 essas preocupações justificavam menos de 20% dos pacotes de sanções no mundo, em 2019 apareciam em mais de 42% deles. O Conselho de Segurança, cuja missão consiste, antes de tudo, em zelar pela paz e segurança internacionais, intervém raramente em casos assim: em 17 de maio de 1994, por exemplo, ele justificou um embargo de armas para Ruanda afirmando que “a situação” (“massacres”, “violências étnicas”, “refugiados”) era uma “ameaça à paz e à segurança da região”. Em 2011, ponderou os riscos de repressão que ameaçavam as populações civis a fim de decretar um embargo de armas para a Líbia e autorizar uma intervenção militar internacional das demais polêmicas.6
Entretanto, são sobretudo os países, tendo à frente os Estados Unidos e a União Europeia, que invocam esses motivos. Os Estados Unidos começaram a dança em 1974, ao adotarem a medida Jackson-Vanik, que condicionava a concessão de créditos e a atribuição da cláusula de nação mais favorecida à URSS a uma liberalização de sua política migratória. Pela primeira vez foi estabelecido um “vínculo condicional […] entre os direitos humanos e o comércio, cuja originalidade é relacionar a política externa e a política interna”.7 Washington só foi normalizar suas relações econômicas com a Rússia em 2012, com a adoção do Magnitsky Act. O Congresso concordou com uma condição: ter a possibilidade de punir cidadãos russos considerados responsáveis por violações de direitos humanos, sem fazer referência à Rússia como Estado. Adotado em 2017 sob a presidência de Donald Trump e mantido por seu sucessor, Joe Biden, o Global Magnitsky Act ampliou essa possibilidade para o resto do mundo e para os episódios de corrupção. Doravante, a lista das pessoas e entidades visadas pelos Estados Unidos contém 1.623 páginas e perto de 37 mil nomes…
Com os tratados de Maastricht (1992) e Lisboa (2007), que instauraram a Política Europeia de Segurança Comum (Pesc), a União Europeia se tornou, depois dos Estados Unidos, a maior fonte de sanções no mundo. Ela procura assim “fazer respeitar os direitos humanos, a democracia, o Estado de direito e a boa governança”.8 A exemplo dos Estados Unidos, ela chegou a se munir de um novo instrumento de punição de indivíduos que violem os direitos humanos, uma espécie de “lei Magnitsky” europeia. Em 22 de março de 2021, o Conselho Europeu adotou, com base nisso, medidas restritivas contra 28 pessoas e quatro organizações russas, chinesas, norte-coreanas, líbias, eritreias e sudanesas.
Com certa ingenuidade, a União Europeia assume aqui o papel de cavaleiro andante, como os Estados Unidos, o que não deixa de ter contradições: os ocidentais acabaram punindo, na confusão e com uma intensidade variável, a Arábia Saudita pelo assassinato do jornalista Jamal Kashogi (2018), mas Israel escapa sempre a seus raios, malgrado a resolução de 2016 do Conselho de Segurança, que pela primeira vez condenou a ocupação de territórios palestinos invadidos depois de 1967, inclusive Jerusalém Oriental. Diga-se o mesmo do Chade. Os debates atuais no seio da União Europeia sobre a atitude a adotar contra a Rússia deram ensejo a proezas retóricas. A presidenta da Comissão, Ursula von der Leyen, parecia defender a posição norte-americana segundo a qual “o Nord Stream 2 não pode ser excluído, a priori, da lista das sanções [preventivas]”, acrescentando querer “construir o mundo de amanhã, enquanto democracias, com parceiros que partilhem as mesmas ideias”. Entre os parceiros capazes de fornecer energias suscetíveis de substituir o gás russo, a chefe do executivo europeu citou uma monarquia produtora de petróleo (Catar), uma ditadura aliada da muitíssimo autoritária Turquia (Azerbaijão) e um país que vive sob a férula do Exército (Egito)…

Segundo os interesses do momento
O papel de cavaleiro andante exige que ele próprio seja irrepreensível. Poderíamos, por exemplo, achar que o denunciante Julian Assange, perseguido pelos Estados Unidos e aprisionado em Londres, seria o candidato dos sonhos ao asilo político que nenhum membro da União Europeia está disposto a conceder-lhe. Diante da crise migratória, a convenção de 1951 sobre os refugiados não é mais respeitada pelos 27. À margem da presidência francesa, a Anistia Internacional se inquieta, de resto, com os atentados às liberdades públicas no seio da União Europeia.9 Enfim, os Estados Unidos só ratificaram cinco dos dezoito tratados internacionais sobre os direitos humanos.
Se os ocidentais não dão o mesmo tratamento a todas as ditaduras, Washington modula a aplicação de seus próprios regimes de sanções segundo os interesses geopolíticos do momento. Assim, a Índia aprofundou sua cooperação militar com a Rússia ao assinar, entre 2018 e 2020, uma série de contratos no valor de US$ 13,5 bilhões, sem que Washington achasse necessário aplicar a Nova Déli sua lei sobre a luta contra os adversários da América (Caatsa, adotada em 2017), punindo o apoio, direto ou indireto, ao setor da defesa russa. Vale dizer, os Estados Unidos cortejam Nova Déli na esperança de atraí-la para sua aliança antichinesa. O Tesouro norte-americano não foi tão indulgente para com as empresas europeias. Em 2019, multou 25 delas num montante total de US$ 1,288 bilhão. O banco britânico UK’ Standard Chartered despendeu US$ 657 milhões por ter desafiado o embargo contra o Irã; e o banco italiano UniCredit assinou um cheque de US$ 611 milhões pelos mesmos motivos.
Utilizadas corriqueiramente por Washington para defender seus interesses, as sanções desempenham para os europeus outro papel, mais interno que internacional. Com efeito, as sanções são “o único instrumento coercitivo de política externa ao alcance da União Europeia”:10 comportam, pois, uma pesada carga simbólica, que permite à organização aparecer unida no cenário internacional e mostrar que ainda existe, alardeando medidas de forte conteúdo moral. Tomando partido, na esteira de Washington, em um conflito interno que opõe o presidente Nicolás Maduro a seu concorrente autoproclamado, Juan Guaidó, os Estados-membros lamentam em uníssono uma “ocasião perdida para a democracia”. A fim de confirmar, em 2019, as sanções direcionadas e o embargo de armas, citam enfaticamente “os cidadãos que temem a prisão e a perseguição, inclusive de seus familiares, por terem exercido seus direitos e liberdades fundamentais”.11 O ataque militar russo altera o quadro. Enquanto a União Europeia permanece dividida sobre o que fazer diante de Moscou – os Estados bálticos defendem o confronto, a Alemanha pensa no fornecimento de gás –, os europeus cerram fileiras atrás dos Estados Unidos.
Dirigindo-se ao Conselho de Segurança em 15 de setembro de 1997, a Assembleia Geral lembrou que as sanções constituem uma medida de “última instância”, quando todas as outras fracassarem. “As medidas coercitivas unilaterais da União Europeia prejudicam a diplomacia”, avalia Claire Daly, deputada irlandesa do Parlamento europeu. “São armas a serviço da manutenção de uma hegemonia que não faz mais sentido no contexto multipolar.”12
Ao invadir a Ucrânia no dia 24 de fevereiro, Putin interrompeu brutalmente a maratona do presidente francês e do chanceler alemão entre Kiev, Moscou e Washington para encontrar uma saída diplomática. O direito de veto russo no Conselho de Segurança da ONU excluiu, entretanto, qualquer possibilidade de adoção de sanções legais contra essa violação do direito internacional. Ainda que grande, o grupo de países que condenaram sem ambiguidade a agressão russa conta com ausentes de peso, a começar pelo Paquistão, pela Índia e, sobretudo, pela China.
Moscou prepara-se há muitos anos para esse teste de força. A sistematização das sanções produz efeitos contrários aos desejados, sobretudo o reforço do apoio prestado pela população ao regime punido, como no Mali ou em Burkina Faso, em 2021 e 2022.
Sabendo-se duramente exposta a um ambiente de sanções, a Rússia decidiu se adaptar e procurou até tirar partido da situação. Em resposta às restrições impostas em razão da agressão russa contra a Ucrânia, Moscou adotou o embargo das importações de produtos agrícolas provenientes da Europa, América do Norte, Austrália e Noruega. O efeito protecionista dessas medidas impulsionou sua produção nacional. As vendas agroalimentares para o exterior atingiram o nível recorde de US$ 30 bilhões em 2020, mais que as de gás natural, tornando a Rússia um país exportador líquido de produtos agrícolas pela primeira vez desde a coletivização soviética.13
Correlação de forças
Na área financeira, a Rússia procura limitar sua dependência do dólar e do sistema financeiro dominado pelos Estados Unidos. Seu Banco Central acumulou reservas consideráveis (equivalentes a um terço da produção anual) ao desencorajar todo ataque à sua moeda. A partir de 2018, ela foi se livrando cada vez mais dos bônus do Tesouro norte-americano – primeira entre as potências emergentes –, que trocou, em parte, pela dívida soberana chinesa (da qual se tornou o principal comprador estrangeiro).
A Rússia antecipou uma desestabilização de seu sistema bancário vinda dos ocidentais. Moscou lançou, em 2015, seu próprio sistema interbancário internacional (SPFS) e um cartão de crédito, Mir, que permite assegurar as transações no interior do país caso os ocidentais excluam a Rússia do Swift. Em 2021, 87% da população possuía o cartão Mir, que no entanto cobre apenas um quarto das transações, pois as classes médias continuam preferindo os cartões ocidentais, utilizáveis no exterior.14
Nos últimos anos, Moscou pôde contar com o apoio de Pequim para rebater, diante da “comunidade internacional” (isto é, as Nações Unidas), a explosão de recursos às sanções que vem ocorrendo desde a queda da União Soviética. “Somente as sanções do Conselho de Segurança são legais” e representam “um instrumento importante que permite reagir às ameaças no mundo”, afirmou o embaixador russo adjunto na ONU, Dmitry Polyanskiy, em um debate no Conselho no dia 6 de fevereiro de 2022. Na mesma linha, o embaixador chinês, Jang Jun, declarou que “as sanções unilaterais coercitivas […] apenas exacerbam as relações de força”. Os países que as utilizam dependem delas como de “uma droga”, avaliou ele, conclamando-os a renunciar a esses dispositivos “imediatamente”. Moscou, como Pequim, vai defender o princípio da não ingerência em assuntos internos (artigo 2º da carta da ONU). Nesse ponto, a China mostrou coerência quando se recusou a reconhecer a anexação da Crimeia. Na véspera da invasão da fronteira ucraniana pelas tropas russas, Pequim adotou uma postura mais ambivalente, fustigando a responsabilidade norte-americana na eventualidade de um conflito sem apoiar o recurso à força por parte de Moscou.
Ainda assim, Moscou e Pequim não rejeitam o princípio das sanções. Por isso, desde 1971, a China limita suas relações comerciais com os países que reconhecem a independência de Taiwan. De seu lado, a Rússia suspendeu em 2015 os voos charters com a Turquia, restabeleceu os vistos de entrada, e decretou um embargo sobre as frutas e legumes depois que um avião russo foi abatido pelo Exército turco na fronteira síria. Mas a Rússia e a China preferem agir oficiosamente a adotar um recurso direto às medidas unilaterais. Assim, Moscou decretou, à maneira de contrassanção, um embargo sobre o porco proveniente da Europa, oficialmente por motivo de um caso de peste suína africana. O mesmo fez Pequim, que retirou a Lituânia de seus registros aduaneiros depois da abertura de um “escritório de representação de Taiwan” – e não apenas da capital, Taipei – em Vilna. Agora mais oficialmente, Pequim publicou uma lista de catorze queixas depois que Camberra exigiu uma investigação sobre a origem da Covid-19. Enquanto isso, só a duras penas os têxteis, o vinho e o carvão australianos conseguem passar a fronteira chinesa.
A despeito desse ativismo nascente, a Rússia e a China só deram origem a 4% dos acontecimentos (adoções, aprovações, prorrogações, decisões judiciárias) ligadas às sanções em 2020, bem longe dos Estados Unidos (53%).15 Sua contenção se explica também por uma realidade econômica: ao contrário de Washington, nem Pequim nem Moscou dispõem da arma do dólar. A ameaça de proibir seu uso permite aos Estados Unidos impor regimes de sanção ao mundo inteiro, um poder exorbitante ao qual a dupla russo-chinesa tenta resistir. Seus regulamentos comerciais bilaterais em dólar caíram a 46% em 2020, contra 90% em 2015. Vinte e três bancos russos adotam o sistema de transações financeiras chinês (Cips), contra um único banco chinês no SPFS russo. Com um movimento de apenas 0,3% do movimento da Swift, o Cips é apenas um plano de emergência, não um concorrente sério de seu homólogo ocidental.
Em se tratando da China e da Rússia, a Europa parece se resignar à impotência. A União Europeia aceitou, sem reagir, a retirada dos Estados Unidos do acordo sobre a questão nuclear com o Irã em 2018. Apesar das exortações dos europeus, o Swift, cuja sede é em Bruxelas, logo excluiu os bancos iranianos, com medo das sanções secundárias norte-americanas. A Comissão Europeia bem que tentou se munir de um “veículo especial” para garantir a continuidade das trocas comerciais com Teerã, mas sua primeira transação só pôde ser feita em março de 2020 e era de material médico… autorizado pela lei norte-americana. O mecanismo pode, teoricamente, assegurar importações de petróleo, mas apenas no quadro das isenções combinadas com Washington. De qualquer modo, nenhum grupo europeu quis comprá-lo: as companhias de seguro se recusam a cobrir as cargas das raras empresas marítimas dispostas a transportar essa mercadoria.
Um certo realismo
O reconhecimento das repúblicas autoproclamadas do Donbass pela Rússia, que viola integralmente a soberania da Ucrânia, demonstra o fracasso da política de sanções aplicada há oito anos. Elas, no entanto, desencadeiam uma enxurrada de novas medidas de retaliação que jamais obtiveram sucesso, mesmo quando aplicadas a países menos poderosos e isolados que a Rússia. A probabilidade de que sejam bem-sucedidas desta vez é, portanto, bastante insignificante.
Dois meses antes dessa constatação, o ex-embaixador francês Gérard Araud, defendendo certo tipo de realismo, lembrou que “mesmo as ditaduras têm preocupações geopolíticas legítimas” (Twitter, 15 dez. 2021). As tentativas de diálogo com Moscou chocaram-se contra um muro. Elas chegaram tarde demais? Sem ainda se recuperar do reconhecimento da independência do Kosovo por parte do Ocidente, a Rússia é regularmente agitada pelo desmantelamento dos principais acordos europeus de controle de armas herdados da Guerra Fria. A guerra atual tem o mérito de lembrar o perigo de negligenciar os desafios da segurança coletiva.
Uma política internacional que parece cada vez mais um encadeamento de fatos consumados, ocidentais e russos, seguidos de ultimatos respondidos por medidas de retaliação, acaba de revelar sua ineficácia e seus perigos. Substituta lastimável da diplomacia, uma engrenagem de medidas unilaterais levou uma guerra para a Europa.
Hélène Richard e Anne-Cécile Robert são jornalistas do Le Monde Diplomatique.
1 Ver David Teurtrie, “Ukraine, pourquoi la crise” [Ucrânia, por que a crise], Le Monde Diplomatique, fev. 2022.
2 “Defending Ukraine Sovereignty Act of 2022” [Ato de 2022 para defesa da soberania da Ucrânia], 13 jan. 2022.
3 David Broder, “Give presidents a break on automatic sanctions” [Deem aos presidentes uma pausa nas sanções automáticas], The International Herald Tribune, Neuilly-sur-Seine, 24 jun. 1998.
4 Ver as atas da mesa-redonda “Les sanctions ciblées au carrefour des droits international et européen” [As sanções direcionadas na encruzilhada dos direitos internacional e europeu], Grenoble, 10 maio 2011.
5 Sentença da Corte de Justiça das Comunidades Europeias (CJCE) n.C-355/04, Segi, Araitz Zubimendi Izaga e Aritza Galarraga contra o Conselho da União Europeia, 27 fev. 2007; e sentença da CJCE n.C-415/05, Yassin Abdullah Kadi, Al Barakaat International Foundation contra o Conselho da União Europeia, 3 set. 2008.
6 Ver “Origines et vicissitudes du devoir d’ingérence” [Origens e vicissitudes do dever de ingerência], Le Monde Diplomatique, maio 2011.
7 Peretz Pauline, “Un tournant humanitaire de la politique étrangère américaine? Carter et l’émigration des Juifs d’Union Soviétique” [Uma reviravolta humanitária da política externa norte-americana? Carter e a emigração dos judeus da União Soviética], Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, Paris, n.54, v.3, 2007.
8 Diretrizes, comunicação do Conselho Europeu de 7 jun. 2004.
9 “Recommandations d’Amnesty international à la présidence française du Conseil de l’Union européene” [Recomendações da Anistia Internacional à presidência francesa do Conselho da União Europeia], 2 fev. 2022.
10 Ramona Bloj, “Les sanctions, instrument privilégié de la politique étrangère européene” [Sanções, instrumento privilegiado da política externa europeia], Questions d’Europe n.598, Fondation Robert Schuman, Estrasburgo, 31 maio 2021.
11 Julia Buxton, “Où va l’opposition à Nicolás Maduro ?” [Para onde vai a oposição a Nicolás Maduro?], Le Monde Diplomatique, mar. 2019
12 L’Humanité, Paris, 10 jun. 2021.
13 David Teurtrie, Russie: le retour de la puissance [Rússia: a volta da potência], Armand Colin, Paris, 2022.
14 Ibidem.
15 Ivan Timofeev, “Sanctions against Russia. A Look into 2021” [Sanções contra a Rússia. Uma visão de 2021], Russian International Affairs Council, Moscou, relatório n.65, 2021.