Sartre como apologeta da liberdade: vida, obra e filosofia
Em 1960, no auditório Unesp em Araraquara, Jean-Paul Sartre pronunciou uma conferência sobre a relação entre o marxismo e o existencialismo
Nascido em Paris em junho de 1905, Jean-Paul Sartre era filho de Jean-Baptiste Sartre, um oficial da marinha, e Anne-Marie Schweitzer. Quando seu pai morreu, apenas dois anos após o nascimento de Jean-Paul, sua jovem mãe, Anne-Marie, se refugiou em Meudon com seus pais. O jovem “Poulon”, apelido de Jean-Paul na infância, dividia o quarto com sua mãe. Em 1911 a família mudou-se para Nobres e, a partir disso, Jean-Paul teve acesso à biblioteca de seu avô, repleta de obras francesas e alemãs clássicas.
Seu avô materno, Charles Schweitzer, exerceu profunda influência sobre o futuro do jovem, inclusive sobre a sua precoce “vocação” literária. Posteriormente, sua mãe casou-se novamente com um diretor dos estaleiros de La Rochelle. Nessa mesma cidade, o pequeno Jean-Paul cursou o ensino médio e logo após obter seu bacharelado foi admitido na École Normale Supérieure de Paris, onde, em 1929, conheceu Simone de Beauvoir. Os dois jovens estudantes de filosofia mantiveram um relacionamento aberto por cerca de 50 anos, duradouro, singular e doloroso, caracterizado por uma grande afinidade intelectual. Gradativamente, tornaram-se marcantes tanto na filosofia quanto na política.

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Após conseguir sua qualificação de professor, Sartre ensinou filosofia em Le Havre e, em 1933, ganhou uma bolsa de estudos em Berlim. Na Alemanha, assistiu a tomada de poder pelas forças nazistas e leu pela primeira vez as obras de Husserl, Heidegger e Scheler, que influenciaram toda a sua obra filosófica com a “fenomenologia”. A partir desse aparato filosófico, Sartre criou uma leitura existencialista que priorizava a análise do homem como um todo, a partir da sua construção individual cotidianamente, sem uma essência a priori determinante. Essa construção só termina com a morte, ou seja, a cada dia o sujeito constrói sua existência a partir de sua ação no mundo, definindo a si e aos outros, numa relação de responsabilidade e liberdade, que possibilita compreender o mundo em que se vive.
O existencialismo francês possui como característica o confronto com a finitude humana, por um olhar reflexivo diante da vida através do tempo. A partir da corrente existencialista francesa, Jean-Paul Sartre conquistou reconhecimento mundial, se tornando um de seus mais importantes expoentes ao argumentar, ao contrário do dinamarquês Soren Kierkegaard, que os problemas existenciais pessoais não estão fundamentados na crença ou na transcendência, mas no próprio indivíduo. Para o sujeito, a responsabilidade dos atos não se projeta mais, de acordo com a visão sartreana, numa ordem metafísica ou divina, sendo o mesmo imputado por suas consequências sem o acomodo da justificativa transcendente.
Essa filosofia põe uma forte ênfase na liberdade individual e nas responsabilidades que dela derivam. Se não posso justificar as consequências das minhas ações em determinismos ou causas espirituais, simultaneamente assumo o protagonismo da minha existência e de tudo que a circunda. Todavia esse protagonismo é construído de acordo com o somatório das ações e escolhas, que definem o próprio sujeito.
Sartre nos apresenta a angústia que é derivada dessa liberdade de escolha. Escolher viver – que nem sempre é uma tarefa fácil ou até mesmo humana – é necessidade e responsabilidade do indivíduo. A responsabilidade por tudo que acontece e permeia nossa existência é concomitante liberdade e condenação. Em “O Existencialismo é um Humanismo”, o autor define que “o homem é condenado a ser livre”, que em primeiro momento nos parece contraditório, mas revela a impossibilidade de não-escolher, pois isso também é uma escolha, constituindo a liberdade como atributo próprio do ser humano. O homem, condenado a ser livre, carrega o peso do mundo inteiro em seus ombros: ele é inteiro responsável pelo mundo e por si mesmo como um modo de ser.
Segundo o autor francês, não se pode escapar dessa condição de liberdade senão pela “má-fé”, uma mentira contada a si mesmo para mascarar uma verdade desagradável, isto é, a completa gratuidade e liberdade de sua vida. Através da ciência, da religião ou qualquer outro conjunto de normas e crenças que visam impor um sistema de significados à existência humana, o homem tenta racionalizar a si e a sua existência, ocorrendo assim a “má-fé”.
O autor interpela-nos a enfrentar com responsabilidade o peso das nossas escolhas, a nos comprometermos, a tomar uma posição clara diante dos acontecimentos. É a partir disso que compreendemos uma ética legada por Sartre.
A Conferência de Araraquara.
Em 1960, no auditório da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), Jean-Paul Sartre pronunciou uma conferência que tem como temática principal a relação entre o marxismo e o existencialismo. “Sartre no Brasil: A conferência de Araraquara” foi editada pela Editora Unesp Considerada pelo autor como um apêndice da teoria de Karl Marx, o existencialismo justificaria sua própria razão de existir pela preservação de sua autonomia, que em vias gerais, teriam como objetivo preencher o “vazio” deixado pelo pensamento marxista.
Ao analisar o pronunciamento do texto, a Profa. Cristina Diniz Mendonça, da UNESP, frisa que “a interpretação ‘existencialista’ do marxismo tem uma preocupação central: fazer a crítica de uma certa leitura economicista de Marx que, utilizando um esquema rudimentar de explicação causal, entende a teoria como reflexo, cópia da realidade econômica”, tendo por objetivo resgatar a importância do indivíduo e do particular. A mesa que presidiu a conferência de Sartre foi composta por Fausto Carrilho, Paulo Guimarães da Fonseca, então diretor da Faculdade, Jorge Amado e a filósofa Simone de Beauvoir. No auditório da faculdade, estavam presentes diversas personalidades da vida cultural e filosófica brasileira, como Ruth Cardoso, Miriam Moreira Leite, Jorge Nagle (ex-reitor da UNESP), Bento Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso (ex-Presidente da República), Lívio Teixeira, Nilo Scalzo, Gilda Mello e Souza, dentre tantas outras personalidades.
Na primeira parte de sua conferência, o autor elabora a ideia de que a Filosofia se tornou prática a partir da sua noção de realização trazida por Marx. Nas palavras do filósofo francês, a filosofia “tornou-se prática, compromete todo o filósofo, não é para ele apenas uma visão de mundo, um conhecimento dogmático ou relativista, mas é uma ação sobre o mundo, no sentido de que nasce da ação e prepara a ação”. A partir de um novo exame do marxismo, pelo qual ele denominou existencialismo, Sartre põe o pensamento em contato com a realidade prática, na tomada de partido e ação política.
Num contexto marcado pelas guerras (Revolução Cubana, Guerra Fria, Guerra do Vietnã, conflitos na Argélia pela independência), o famoso escritor brasileiro Jorge Amado convida Sartre e Beauvoir para visitar o país. Os três haviam se conhecido nos encontros do Partido Comunista e, visto todo o desenrolar global das guerras e de seu contexto político-social, o casal aceitou o convite de Jorge Amado e aproveitou o ensejo para pisar em solo brasileiro.
Pouco antes de desembarcar no Brasil, em 1960, o casal francês participou, em Cuba, de diversos debates envolvendo desde o existencialismo até o socialismo, com lideranças da Revolução Cubana, estudantes e escritores. Fascinados por Fidel Castro, permaneceram durante um mês na ilha e ficaram admirados com o processo revolucionário liderado por ele e Ernesto Che Guevara – que curiosamente era ávido leitor e admirador das obras de Sartre.
A excitação dos grupos de esquerda no Brasil fascinou os dois autores franceses. A vinda ao Brasil se tornou a viagem política mais duradoura do casal em vida. Visitaram, dentre muitas cidades, Rio de Janeiro, Manaus, Salvador, São Paulo, Recife e, não menos importante, marcaram nos anais da história a cidade de Araraquara.
Sartre não queria ser um homem apenas de letras. A opera omnia de Sartre, romancista, teatrólogo, político e filosófo é vasta: “A Transcendência do Ego” (1936), “A Náusea” (1938), “O Ser e o Nada” (1943), “Entre quatro paredes” (1944), “A idade da razão” (1945), “O Existencialismo é um humanismo” (1946), “Que é a literatura?” (1947), “Com a morte na alma” (1949), “As Palavras” (1964), “A Imaginação” (1972), além de tantas outras obras. Observa-se a influência de André Malraux, importante escritor francês e notável personalidade da época, que via na literatura e na arte necessárias formas de participação na tragédia de seu tempo. O compromisso do escritor é um dos aspectos essenciais da moralidade de Sartre, tal como se configura, especialmente a partir da Resistência. Isso quer dizer, em essência, que o escritor não é um oficiante da arte, mas que a arte é um modo de expressar e transformar o mundo. Assim, o artista não pode se dá o luxo de limitar-se a descrever um ou outro fenômeno, pois ele mesmo é o protagonista da arte, mesmo que não queira. Isso desenvolve um compromisso filosófico que desemboca num compromisso político e social. Dito isto, em 1964, Sartre recusa de modo voluntário o Prêmio Nobel de Literatura, não renunciando aos seus princípios, ou seja, afirmando que sua atuação literária não depende de julgamentos externos que definem a sua qualidade, mas ocorre de maneira livre.
Na prática, a responsabilidade do filósofo está num determinado tempo histórico, em tomar partido por algo, externo à sua obra, traduzida num compromisso consigo e com todos os demais.
Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF).