Secretário-geral das Nações Unidas, um trabalho impossível
O processo de substituição de Ban Ki-moon no cargo de secretário-geral das Nações Unidas está aberto. O novo nome será divulgado até o fim deste ano. Shashi Tharoor, autor deste artigo, foi secretário-geral adjunto antes de apresentar sua candidatura nas eleições de 2006Shashi Tharoor
Este trabalho é impossível.” Foi com esses termos que, em 1953, o primeiro secretário-geral da ONU, o norueguês Trygve Lie (1946-1952), descreveu seu posto ao sucessor, o sueco Dag Hammarskjöld. Ao longo das décadas subsequentes, a tarefa não se tornou mais simples. A Carta da ONU define que o secretário-geral deve acumular a função de administrador-chefe e funcionário independente, suscetível ainda de receber missões não especificadas (de natureza política) da Assembleia Geral ou do Conselho de Segurança. Fica a cargo do titular do posto decidir também se quer ser apenas “secretário” ou “geral”.
A tarefa encerra grandes paradoxos. Espera-se que o secretário-geral responda às expectativas dos governos e, principalmente, às dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (Estados Unidos, China, França, Reino Unido e Rússia, o “P5”), mas se mostre imparcial. Exigem-se dele qualificações forjadas nos arcanos da burocracia ou da diplomacia, porém se espera que ele transcenda seu passado e torne-se o porta-voz do planeta, como um “papa secularizado”. Precisa também prestar assistência aos Estados-membros para que tomem decisões mais bem informados, e depois acompanhar sua aplicação. Além disso, deve influenciá-los e estimulá-los a agir de acordo com o que julga oportuno. O secretário-geral gerencia um setor administrativo complexo de 41.081 pessoas, assim como todas as agências que dependem dele.1 E tudo deve ser realizado dentro das contingências orçamentárias e regulamentares impostas pelos Estados-membros.
É certo que ele também dispõe de uma autoridade incomparável para pesar e analisar a ação política internacional. Contudo, não tem nenhum poder de transformar suas ideias em atos concretos ou obrigar governos a aceitá-las. Ele representa o mundo, mas não o dirige. Hammarskjöld (1953-1961), no apogeu da Guerra Fria, disse que um servidor de negócios públicos deveria ser “politicamente celibatário”, sem ser “politicamente virgem” – ou seja, jogar o jogo político sem renunciar à imparcialidade e sempre respeitar a Carta e as leis internacionais.
Decisivas discussões reservadas
A eleição do secretário-geral da ONU tem poucos pontos comuns com o grande espetáculo da campanha presidencial norte-americana. Ela acontece com discrição, está confiada à clandestinidade e sob tutela do colégio eleitoral mais seletivo do mundo, composto por quinze membros do Conselho de Segurança2 – que elegem o candidato que será submetido à aprovação dos 193 Estados-membros na Assembleia Geral, uma formalidade desprovida de qualquer suspense, já que a própria Assembleia endossa a escolha do Conselho. É no seio do próprio Conselho que decisivas discussões reservadas podem ocorrer, especialmente considerando o direito de veto dos cinco membros permanentes.
Este ano, o desafio é que o Leste Europeu apresente um candidato que não provoque veto da Rússia ou dos Estados Unidos (os outros três membros permanentes não se oporiam à candidatura de um europeu). Se os candidatos fracassarem em atrair a simpatia de Washington e Moscou, um representante do grupo “Europa Ocidental e outros”, incluindo Estados do Pacífico, poderia ter alguma chance, em particular se for mulher. A ideia de uma candidatura feminina encontra eco cada vez mais forte no seio da organização, que sempre foi dirigida por homens. Por outro lado, para 2016, a nomeação de um latino-americano, africano ou asiático é uma hipótese pouco provável.
A eleição de 2006 – para a qual eu mesmo me apresentei (e fiquei em segundo lugar, depois de Ban Ki-moon, entre os sete postulantes) – foi marcada por uma exposição sem precedentes dos candidatos: encontros com grupos regionais, fala no encontro anual da União Africana, análises do escrutínio na internet, pesquisas, editoriais e até um debate no canal britânico BBC, do qual o ganhador do posto nem sequer participou, o que confirma o sentido marginal de uma campanha pública.
Desde sua entrada no páreo, o candidato sul-coreano explicitou suas ambições visitando cada um dos quinze países-membros do Conselho e prometeu aos mais pobres acordos bilaterais de auxílio ao desenvolvimento com os quais nenhum de seus adversários poderia rivalizar. A Coreia do Sul foi o único país a se engajar em uma campanha longa, bem organizada e generosamente financiada. Isso indica que uma operação inteligentemente orientada não é inútil, desde que um dos cinco membros permanentes não tenha nada a retrucar.
O secretário-geral não é designado ao cargo por sua visão, programa de governo, eloquência, capacidade ou carisma. Trata-se de um cargo político, cuja atribuição obedece a critérios não menos políticos, estabelecidos principalmente pelo P5.3 Na realidade, os eleitos são vistos como os “menos inaceitáveis” entre todos os candidatos disponíveis. Mais de uma vez celebrou-se que o vencedor não poderia agitar o mar se caísse do barco. O P5 sempre preferiu o perfil “secretário” ao perfil “geral”, e não há indícios de mudança. O fato de atualmente os candidatos se mostrarem publicamente tem algo de alentador, porém o candidato preferido de Washington e Moscou já sai necessariamente com uma vantagem considerável, para não dizer definidora, sobre qualquer outro pretendente.
O processo de designação deve começar em julho para terminar em setembro ou outubro. Não há dúvida de que o P5 deseja a nomeação de um administrador maleável, que não corra o risco de se rebelar. A história recente da ONU, porém, demonstra que mesmo um homem de consenso pode, às vezes, demonstrar insatisfação e exercer plenamente seu mandato. É o caso de Kofi Annan (1997-2006), que, com o fim da Guerra Fria, estendeu consideravelmente o “domínio da palavra” para sua função. Pediu a moralidade das intervenções, interpelou cada um a seguir a voz da consciência e solicitou aos Estados que trocassem o “jugo da soberania” pela responsabilidade de proteção às populações civis.4
Em fevereiro de 1998, quando os Estados Unidos ameaçaram bombardear o Iraque porque Saddam Hussein se recusava a cooperar com as missões de inspeção da ONU, Annan, contra a vontade da maior parte dos cinco membros permanentes, voou para Bagdá e intermediou a crise. Esse sucesso durou pouco; entretanto, ao extrapolar os limites que o Conselho havia estipulado, ele demonstrou que um secretário-geral pode desempenhar um papel primordial.
Se por um lado o secretário-geral tem o poder de suscitar questões que incomodam, por outro ele não tem nenhum poder para colocar em prática boas soluções. O célebre discurso de Annan sobre as intervenções estrangeiras, pronunciado diante da Assembleia Geral de 1999, gerou todo tipo de reflexão em think tanks e entre formadores de opinião, mas não surtiu nenhum efeito concreto. Apesar de a ONU ser percebida como a encarnação da legalidade internacional, as declarações de seu secretário-geral têm menos impacto sobre o comportamento dos Estados que as do papa sobre políticas de contracepção.
Nada pode ser feito sem o apoio dos governos, apesar de o secretário-geral ter o direito de denunciar a ação ou inação de um governo em relação a determinado tema. Mas ele não pode se permitir qualquer reação negativa desses governos, pois isso poderia afetar sua capacidade de obter cooperação em outras questões. Annan formulou esse paradoxo com um velho provérbio ganês: “Jamais golpeie um homem na cabeça quando seus dedos estiverem entre os dentes dele”.
Em um mundo que conhece apenas uma grande potência, o dirigente deve manter uma rede de relações que lhe permita assegurar a sobrevivência da organização sem prejudicar sua própria integridade e independência. As vozes que se levantam nos Estados Unidos e obrigam a ONU a atuar a seu serviço – uma exigência que não poderia ser formulada dessa maneira durante a Guerra Fria – impõem às Nações Unidas um exercício constante de equilibrismo entre os interesses norte-americanos e os dos outros Estados-membros. Paradoxalmente, os Estados Unidos lhe são mais úteis justamente quando a ONU afirma sua independência em relação a Washington.
O controle cada vez menor que os Estados-membros exercem sobre a gestão do orçamento enfraquece igualmente sua autoridade. Annan e seu predecessor, Boutros Boutros-Ghali (1992-1996), embarcaram em reformas administrativas ambiciosas, sem, contudo, solucionar os problemas de inércia procedimental e regulamentária nos âmbitos sob tutela dos governos. Diante destes, nenhum secretário-geral pôde exercer real autonomia: a ONU funciona sem embaixadas ou serviços de informação, e qualquer tentativa de sua parte de adquirir esses tributos encontra resistência imediata e categórica dos Estados-membros. A zona de influência do secretário-geral não afeta jamais suas fronteiras ou suas finanças.
O próximo dirigente disporá, sem dúvida, de uma incontestável legitimidade diplomática e de um eco midiático ainda maior. Mas suas prerrogativas políticas permanecerão imensamente inferiores ao que a própria Carta da ONU prevê.5 Para se impor, “a” próxima secretária-geral – pois tudo leva a crer que será uma mulher – deverá dominar a gestão das equipes e dos orçamentos, demonstrar altas aptidões para a diplomacia e tecer laços de lealdade com os protagonistas exteriores, notadamente organizações não governamentais, setores empresariais e jornalistas.
Deverá igualmente convencer as nações mais pobres e instáveis do Sul de que seus interesses serão escrupulosamente defendidos em seu mandato e que se procurará uma colaboração mais estreita com as potências do Norte. Também deverá se submeter aos poderes do Conselho de Segurança e se mostrar atenta às demandas muitas vezes apaixonadas da Assembleia Geral. Por fim, deverá propor aos Estados-membros objetivos políticos tangíveis, além de exercer seu mandato com os meios que estes se voluntariarem a fornecer.
Grandes expectativas, frágeis mecanismos
No entanto, a convicção é de que a ONU precisa de uma reforma. Não por seus fracassos, mas porque seus êxitos não justificam o investimento em seu futuro. Por isso, “a” secretária-geral deverá, em primeiro lugar, construir sua própria visão em relação ao porte de sua missão e os limites de sua função, e conceber e expressar uma ideia das mudanças a serem efetuadas – sem, contudo, deixar de lado as ações e necessidades em curso.
Ao que parece, a ONU continuará concentrada em zonas geográficas onde consegue comprovar sua eficácia: coordenando apoios e auxílios a crises humanitárias maiores e zelando pelos acordos de paz. Cada vez que precisar administrar um território em via de pacificação para a consolidação de uma solução política viável, o mundo se voltará para a ONU, única entidade capaz de transcender os interesses de um poder local para atuar em nome de todos.
Imagino que ela não conduzirá intervenções militares – à exceção de operações com o objetivo de manter a paz –, ainda que seu aparelho legislativo permaneça a fonte principal de legitimidade para atos de guerra. Uma vez que a força militar não é o meio mais adequado de desenvolver um país (como dizia Talleyrand,6 “podemos fazer qualquer coisa com baionetas, menos sentar sobre elas”), a paz será sempre o objetivo cardinal.
Também não vejo outra organização capaz de amenizar as fissuras que residem na fachada da “comunidade internacional”, as mesmas pelas quais se propagam os flagelos do século XXI – desde a degradação do meio ambiente e as epidemias planetárias, passando pela violação dos direitos humanos e do terrorismo.
Essa poderia ser a arquitetura. Mas, como diz o provérbio, uma casa não é necessariamente um lar. Caberá “à” nova secretária-geral dirigir a ONU nessa direção. Uma tarefa, de fato, impossível.
Shashi Tharoor é diplomata e político indiano.