Sensibilizando sem tomar o poder
Os cinco dias de vivência que tive no mundo zapatista não foram suficientes para uma compreensão plena da complexidade de seu funcionamento, da relação entre as instituições armadas e políticas e da dinâmica de liderança. Pude ver, porém, o comprometimento da luta dos indígenas chiapanecosFelipe Addor
O contexto histórico
No dia em que Estados Unidos, Canadá e México assinaram o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), estabelecendo definitivamente a economia mexicana como apêndice da maior economia mundial, os indígenas de Chiapas tornaram pública a luta do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Naquele 1o de janeiro de 1994, os zapatistas ocuparam cidades da região com o intuito de anunciar sua luta e expulsaram latifundiários instalados em suas antigas terras. Uma das principais bandeiras foi a recuperação das terras comunitárias, el ejido.
A referência a Emiliano Zapata, líder guerrilheiro da Revolução Mexicana do início do século XX (1910-1920), faz-se pela perspectiva rural de sua luta e pelo objetivo da autonomia.2 Os indígenas liderados por Zapata lutavam contra a concentração fundiária e queriam retomar os ejidos como política agrícola. Embora as frentes populares de base não tenham conseguido efetivamente tomar o poder, a força das revoltas e a forte instabilidade política cravaram as demandas na Constituição de 1917. A demanda pelo restabelecimento do sistema de terras comunitárias só foi atendida, no entanto, por Lázaro Cárdenas (1934-1940), que ampliou de 6,3% para 22,5% a participação ejidal nas terras agrícolas.3
Recentemente, o presidente Carlos Salinas de Gortari (1988-1994), com uma clara agenda neoliberal, foi quem atacou mais duramente as propriedades comunitárias. Sob o manto da promoção de uma “reforma agrária” que impulsionasse a produção agrícola, Salinas aprovou, em 1991, uma mudança das leis agrárias, que passaram a permitir a venda dos ejidos, o que levou a um aprofundamento da concentração fundiária.
O Levante Zapatista em 1994
O processo inicial de lançamento do movimento inaugurou uma de suas características principais: o intenso diálogo com as comunidades indígenas que compunham sua base. A coordenação do movimento consultou cerca de quinhentas comunidades indígenas, que optaram pelo conflito armado. Capitaneado por seu Comité Clandestino Revolucionario Indígena – Comandancia General (CCRI-CG), oEZLN estourou uma revolta de resistência às políticas neoliberais, retomando terras e ocupando sete capitais municipais de Chiapas. O movimento fez sua primeira Declaración de la Selva Lacandona, na qual traçou seu histórico de formação, exaltou que sua luta vinha de abajo y a la izquierda, apresentou sua insígnia de luta democracia, libertad y justicia, e conclamou todo o povo mexicano a integrar-se à luta.4
O conflito armado foi intenso, mas não longo. As forças oficialistas eram muito mais fortes que as rebeldes. Entretanto, a capacidade destas de utilizar o território a seu favor permitiu uma sólida resistência. A população mexicana mobilizou-se contra o conflito armado, e as partes negociaram um cessar-fogo um mês depois do início dos enfrentamentos. Nesse momento, o EZLN decidiu, após consulta às suas bases e fundamentado na percepção da vontade da maioria do povo mexicano, manter o cessar-fogo ofensivo indefinidamente (mantendo seu poderio militar apenas para ações defensivas) e começou a empreender uma luta não militar, com as mesmas bandeiras, mas com outro método.5
Desde então, o movimento vive em constante luta, com maior ou menor tensão com o Estado mexicano, de acordo com o governo em questão. Houve uma tentativa de resolução dos conflitos por meio dos Acuerdos de San Andrés, em 1996. Entretanto, o não cumprimento do acordo pelo governo fez que o EZLN buscasse encaminhar as demandas de forma autônoma. Embora, nesse período, não tenha havido ataques militares governamentais explícitos às comunidades zapatistas, são relatados vários casos de conflitos com grupos paramilitares, alguns apoiados pelo governo.6 Além disso, o Estado busca enfraquecer a luta com tentativas de cooptação de comunidades e com simulações de acordos com comunidades pretensamente zapatistas. É o que os indígenas chamam de guerra de baja intensidad.
Como resposta a isso, esporadicamente o EZLN realiza grandes marchas e atos, cujo objetivo principal é mostrar à população mexicana que sua luta segue em frente. Podemos destacar: Marcha de la Dignidad Indígena, em 2001, retratada no documentário Marcos, aquí estamos; La Otra Campaña, iniciada no contexto eleitoral de 2006, que se tornou um movimento pela transformação do sistema político; e Marcha del Silencio, em dezembro de 2012, quando cerca de 40 mil zapatistas encapuzados atravessaram, silenciosamente, cinco cidades de Chiapas.7
Na sexta e última de suas Declaraciones de la Selva Lacandona, de 2005, o EZLN reforçou o caminho da luta política com iniciativas pacíficas e destacou o objetivo de “defender, apoiar e acatar as comunidades indígenas zapatistas que integram e são seu comando supremo, e, sem interferir em seus processos democráticos internos e dentro de suas possibilidades, contribuir para o fortalecimento de sua autonomia, bom governo e melhora de suas condições de vida”.
A construção da autonomia zapatista
O abandono dos Acuerdos de San Andrés, que previam o direito à livre determinação dos povos indígenas e sua autogestão política comunitária, fez os zapatistas buscar sua autodeterminação unilateralmente. As comunidades começaram a articular-se em Municipios Autónomos Rebeldes Zapatistas(Marez), organizados em instâncias maiores, denominadas inicialmente Aguascalientes, em referência ao estado onde, em 1914, foi realizada a Convenção Revolucionária que reuniu as forças progressistas da Revolução Mexicana.
A partir de agosto de 2003, essa articulação de comunidades indígenas zapatistas passou a chamar-se Caracol, coordenada por representantes de cada município na Junta de Buen Gobierno.8 Atualmente, os zapatistas são centenas de comunidades organizadas em 27 Marez, que se articulam em cinco caracoles: La Realidad, Morelia, La Garrucha, Roberto Barrios e Oventic. Cada comunidade tem seu Gobierno Local, que indica representantes para o Consejo Autónomo de seu município, e estes definem os integrantes da Junta de Buen Gobierno. A “remuneração” desses representantes é definida e fornecida por sua comunidade e, em geral, é composta de alimentos oferecidos pelo resto da comunidade ou de ajuda na colheita de suas terras para garantir a sobrevivência de sua família. Ademais, esses representantes podem ser destituídos a qualquer momento.
O território zapatista entrelaça-se com a divisão política formal do território mexicano. Trafegando em uma estrada, você depara com o aviso: “Você está entrando em território zapatista”. Podemos dizer que a estrutura política que o movimento vem consolidando é um Estado dentro do Estado, ou melhor, um não Estado dentro de um Estado. O mais interessante, e surpreendente, é ver como o EZLN conseguiu conquistar um sólido respeito, também por sua resistência militar, mas principalmente pela legitimidade que conquistou com o povo mexicano, garantindo um pacto de não agressão nesse cenário contraditório.
Vinte anos do Levante e a Escuelita
O movimento zapatista sempre se preocupou em dialogar com a população mexicana e os movimentos sociais do resto do mundo. Além das marchas, o EZLN promoveu seminários internacionais, a maioria em sua sede urbana, o Centro Indígena de Capacitación Integral – Universidad de la Tierra (Cideci-Unitierra), na periferia de San Cristóbal de las Casas. Em comemoração aos dez anos de existência dos caracoles e à proximidade de seus vinte anos de luta, os zapatistas criaram a Escuela Zapatista Global − Escuelita, para os íntimos.
Pela ampla articulação que o movimento tem dentro e fora do México, a oportunidade de conhecer sua experiência, o cotidiano de suas comunidades e sua forma de organização atraiu um grande número de pessoas para o curso “La libertad según l@szapatistas”. A primeira edição da Escuelitaocorreu em agosto de 2013, com 1.281 alunos. Embaladas pelas comemorações dos vinte anos, foram feitas mais duas edições, entre os dias 25 e 29 de dezembro de 2013, e entre os dias 3 e 7 de janeiro de 2014, com 2.250 vagas para cada uma. Desta última, eu participei.9
A programação inicia-se no Cideci com o registro dos alunos, que são distribuídos entre os cinco caracoles (fui para La Garrucha, seis horas de viagem). O primeiro e o último dia de curso são realizados nos caracóis, e os três dias restantes servem para vivenciar o cotidiano das comunidades zapatistas. Ao chegar, o aluno recebe quatro apostilas que devem ser lidas até o último dia do curso.10
A origem dos estudantes é diversa. Diria que entre 60% e 70% são mexicanos; de 15% a 20%, de outros países da América Latina; quantidades significativas dos Estados Unidos e Europa; e pessoas isoladas de todo o mundo. Para cada um dos alunos foi designado um guardião para acompanhá-lo e garantir o bem-estar de seu protegido. Provavelmente, esse procedimento também tem a função de ter controle para o caso de haver alunos infiltrados pelo Estado mexicano.
No primeiro dia, na cabeceira do caracol, houve uma longa exposição de mais de quarenta maestros indígenas, que se dividiram em pequenas falas sobre seu contexto de luta e, particularmente, as diferentes vertentes de conflito com los malos gobiernos: militar, cultural, política e econômica. Para além da estrutura política formal, discorreram sobre os sete princípios que regem a atuação dos representantes em relação às bases, fazendo claras referências aos problemas e vícios antidemocráticos do sistema tradicional: obeceder y no mandar; proponer y no imponer; representar y no suplantar; convencer y no vencer (as políticas devem ser feitas em diálogo); bajar y no subir (manter contato próximo com as bases); servir y no servirse; construir y no destruir(aproveitar iniciativas e ideias de outrem, em lugar de desqualificá-las).
Nos três dias de vivência, estive na comunidade Colombia, no Municipio Autónomo Francisco Gómez, com cerca de cem moradores. Jogavam futebol quase todo final de tarde e tinham missa aos domingos. Mostravam com muito orgulho sua plantação (milho, feijão, café, abóbora, cana, entre outros produtos) e o fato de terem toda a sua sobrevivência garantida pelos frutos retirados daquelas terras. As comunidades zapatistas não têm nenhuma relação com o Estado. Não pagam impostos, não recebem água encanada, luz ou qualquer benefício. Os zapatistas têm suas próprias escolas, com uma metodologia própria de ensino, e seus postos de saúde, nos quais convivem medicina indígena e ocidental. Só utilizam hospitais nas cidades em caso de necessidades extremas.
À primeira vista, chega a ser incompreensível uma comunidade querer tornar-se zapatista, já que essa escolha a impede de ter acesso a diversas benesses. A água vem de poços ou pequenos rios, e alguns possuem uma placa de energia solar para acender uma luz à noite ou ouvir rádio. Mas, quando perguntados sobre o motivo de sua orientação zapatista, não pestanejam: la tierra. A luta pela autonomia dos territórios zapatistas tem como questão-chave a posse coletiva das terras, el ejido, que garante o acesso a todos os moradores. Todo o excedente alimentar é vendido para as comunidades partidistas (que têm relação com o governo), nas quais a terra está concentrada na mão dos grandes fazendeiros e a principal renda das pessoas vem de políticas sociais do Estado.
Uma presença constante nas refeições e nos momentos de descanso é a Radio Insurgente, provavelmente seu principal meio de difusão de informações e formação política. Todas as músicas têm conotação política e trazem o contexto da luta política no México. Nos intervalos, são lidas mensajes destinadas à formação política dos ouvintes, com títulos como: Qué es el capitalismo; Qué es el neoliberalismo.
Infelizmente, por questão de segurança, não estava no programa a discussão sobre o funcionamento do espaço político local. Embora os alunos que estavam na comunidade tenham solicitado, o receio que identificássemos as lideranças locais, sem seus pasamontañas (capuzes), impediu o encontro. Mas pude presenciar alguns momentos de tomada de decisão coletiva, embora em tzeltal (língua principal em La Garrucha), sobre questões relacionadas à comunidade.
No último dia, voltamos ao caracol, onde houve uma atividade para tirar dúvidas e mensagens finais, além de uma confraternização, sem bebida alcoólica, proibida em território zapatista por uma reivindicação das mulheres, que têm em sua Ley Revolucionaria de las Mujeres um importante instrumento de luta pela igualdade de gênero, ainda mais em se considerando o contexto rural indígena. Após uma noite maldormida, às 4h da manhã partimos de volta a San Cristóbal de las Casas.
Certamente, os cinco dias de vivência no mundo zapatista não foram suficientes para ter uma compreensão plena da complexidade de seu funcionamento, da relação entre as instituições armadas e políticas e da dinâmica de liderança. Entretanto, pude ver a profundidade e o comprometimento da luta dos indígenas chiapanecos, o desejo de transformação que possuem e sua capacidade de organização, que vem desde as bases. Fico, junto aos outros alunos, no aguardo de uma prometida continuidade da Escuelitapara vivenciar novamente a bela luta de um aguerrido povo latino-americano, que mostra que é possível mudar o mundo sem tomar o poder.
Felipe Addor é doutor em Planejamento Urbano e Regional e coordenador do Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec/UFRJ).