Separatismo das grandes cidades
Na maior parte dos países ocidentais, os habitantes e administradores das metrópoles estão descontentes. Apóstolos do progressismo, da abertura e da inovação, eles não apreciam a trajetória adotada pelo resto do país, as cidades pequenas e a zona rural, que se deixaram levar pela extrema direita e pelo populismo; e articulam um contra-ataque.
Para conquistar a prefeitura de uma grande cidade francesa em 2020, todo candidato sério deverá obedecer a algumas regras. Por exemplo, comprometer-se a plantar árvores. Em Paris, Anne Hidalgo propõe semear 170 mil em seis anos, enquanto seu concorrente Cédric Villani, apresentador em julho de 2019 de uma “Noite das Árvores” na Fundação Cartier, defende um vasto projeto de vias arborizadas. Em Marselha, a candidata Martine Vassal, do Les Républicains (LR, do ex-presidente Nicolas Sarkozy), quer um número de árvores igual ao dos bebês que nascerem – perto de 70 mil, caso os marselheses conservem seu nível de fecundidade do mandato precedente, ou seja, três vezes mais do que promete sua concorrente socialista, a senadora Samia Ghali. Em Lille, os candidatos rivalizam nas promessas de “florestas urbanas” e “praças verdes”.
No entanto, o amor à jardinagem não basta. É preciso prometer também a construção de edifícios verdes, estimular o uso da bicicleta e de veículos compartilhados, converter as cantinas escolares à alimentação orgânica, incentivar a cultura, favorecer a transição energética, dinamizar a cidade. É preciso, enfim, rechear o programa de termos como “inovação”, “transparência”, “democracia participativa”, e colar o adjetivo “sustentável” ao máximo de coisas possível: desenvolvimento sustentável, cidade sustentável, território sustentável, turismo sustentável, construção sustentável etc.
As mesmas palavras, as mesmas fórmulas, as mesmas ideias são retomadas por todos os candidatos, cujos programas parecem pinçados de um catálogo de boas práticas exequíveis em qualquer cidade e mesmo em qualquer país, pois as necessidades municipais não seriam diferentes em Seattle, Montreal ou Berlim. É como se a política local se reduzisse a uma série de respostas pragmáticas e a soluções de bom senso para problemas concretos.
“Enquanto as nações falam, as cidades agem”, gostava de dizer Michael Bloomberg quando era prefeito de Nova York (2002-2013) e presidia o Cities Climate Leadership Group (C40), um poderoso fórum que reúne as 94 maiores cidades do mundo em torno da luta contra as mudanças climáticas. Depois, a frase pegou: para muitas autoridades urbanas, os Estados, envolvidos em conflitos ideológicos e partidários, não conseguem agir eficientemente, cabendo então às cidades se unirem para compensar as carências – ideia que, apresentada como evidente na literatura dos profissionais do urbanismo, constitui a base da “diplomacia das cidades”. Essa doutrina tem raízes nos acordos franco-alemães de reconciliação pós-Segunda Guerra Mundial, mas hoje inspira milhares de coalizões, fóruns e redes que agrupam cidades dos quatro cantos do globo. Há trinta anos sua quantidade e influência não param de crescer. Contavam-se 55 em 1985 e hoje são mais de duzentos:1 o C40, mas também a Eurocities, a Convenção Mundial de Prefeitos para o Clima e a Energia, o Conselho Internacional para as Iniciativas Ecológicas Locais (Iclei), a Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), a Rede de Cidades Criativas da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a Prefeitos da Paz, o grupo Cidades-Saúde da Organização Mundial da Saúde… “No que toca às desigualdades, saúde, segurança, administração, direitos humanos e muitos outros temas cruciais, as cidades se afastam cada vez mais de seus governos nacionais e se organizam entre si para encontrar soluções”, rejubila-se Ivo Daalder, cientista político e ex-consultor de Barack Obama na Casa Branca.2
Tornar-se uma “trendsetting city”
Seguindo todos o mesmo caminho, esses grupos se beneficiam do apoio do Banco Mundial, da ONU e de inúmeras multinacionais – Ikea, Microsoft, Google, Velux e Dell figuram entre os patrocinadores do último Congresso Mundial dos Prefeitos do C40. Constituem um poderoso difusor do evangelho metropolitano que une autoridades locais e empresas no culto à inovação. De resto, o setor privado gosta tanto da “diplomacia das cidades” que funda, ele próprio, grupos como City Protocol, da gigante da informática Cisco, ou 100 Resilient Cities Network, da Fundação Rockefeller.
Além de favorecer a reciclagem do capitalismo verde, as redes urbanas internacionais desempenham um papel de relevo na definição das “boas práticas” que circulam depois de cidade em cidade. No âmbito de suas atividades diplomáticas, as equipes municipais pululam nos congressos, salões e exposições, além de multiplicar as viagens de estudos. Seguindo uma lógica de showroom, apresentam suas realizações, suas experiências – e escutam seus colegas dizerem o mesmo, o que permite a cada qual voltar para casa com soluções prontas na mão. “O recurso às práticas dos outros permite aos agentes combinar dois objetivos contraditórios: fazer alguma coisa nova e garantir que as práticas utilizadas já deram certo em outros lugares”, analisam Alain Bourdin e Joël Idt.3 O C40 se orgulhava de ter promovido, de 2012 a 2018, mais de 14 mil ações concretas na luta contra as mudanças climáticas. Sob sua égide, Changwon (Coreia do Sul), Tóquio e Nova York partilharam técnicas inovadoras de revestimento de tetos para refletir os raios solares e refrescar os ambientes. Barcelona, Cingapura, Auckland e Varsóvia intercambiaram tecnologias de eletrificação de ônibus. Cidades com destaque em determinadas áreas (Paris no metrô, Copenhague na bicicleta) deram apoio técnico a outras menos experientes.
Para recompensar as melhores ideias, o C40 organiza todos os anos o C40 Bloomberg Philanthropies Awards. A cerimônia de 2019 premiou os “corredores verdes” de Medellín (Colômbia), os painéis solares de Seul, o programa de incentivo às energias verdes de San Francisco, os ônibus elétricos de Cantão… “Esses projetos merecem ser estudados por prefeitos e administradores de cidades do mundo inteiro”, declarou a presidenta do C40, a prefeita Anne Hidalgo, na entrega dos prêmios. Para as cidades que desejam reforçar sua estatura internacional, não há arma melhor que esse tipo de recompensa. A oferta é grande: cada rede, cada revista, cada nível de governo indica seus bons alunos. A Comissão Europeia concede anualmente o título de “capital europeia” (verde, da cultura, da juventude ou da inovação) e distribui os Access City Awards (para recompensar a atenção dada aos idosos ou deficientes). Na França, o Ministério da Economia concede o selo French Tech aos “Tech Champions” capazes de atrair investimentos estrangeiros.
A cidade que recebe um prêmio será inevitavelmente enaltecida na imprensa especializada. Às vezes, chega a adquirir o status de modelo. Seu nome permanece então associado a uma prática virtuosa e ela é imitada – ou, mais frequentemente, macaqueada – no mundo inteiro. Torna-se uma trendsetting city,4 uma cidade que define tendências. Porto Alegre e seu orçamento participativo, Cingapura e seu sistema de pedágio urbano, Bilbao e sua estratégia de regeneração econômica pela cultura (o famoso “Efeito Guggenheim”), Hamburgo e sua gestão de riscos de inundação, Seattle e seu viveiro de start-ups, Londres e sua gestão de megaeventos esportivos, Vancouver e seu modelo de desenvolvimento sustentável…
Toda cidade sonha se tornar um modelo, pois, como salienta Yves Viltard, um dos raros especialistas franceses em diplomacia urbana, a guerra econômica entre grandes cidades “vem junto com uma competição que passa pela fábrica de imagens de marcas sedutoras, de branding”5. Participar de fóruns como o C40 é uma maneira excelente de melhorar a imagem e promover a notoriedade da marca, condição sine qua non para tirar proveito do jogo da concorrência urbana e atrair investidores, empresas, trabalhadores diplomados e estudantes, além de acolher grandes eventos geradores de retorno econômico. “Há cinquenta cidades, talvez cem, que são o motor intelectual, cultural e econômico do mundo”, resume Rahm Emanuel, prefeito de Chicago de 2011 a 2019. “Todos trabalhamos com as mesmas coisas, pois todos temos as mesmas oportunidades. Precisamos tornar nossas cidades competitivas. Os empregos e empresas [que queremos atrair] não são apenas globais, mas também móveis.”6
Para impressionar os investidores, as equipes municipais recorrem a agências de consultoria urbana – um setor florescente. Com sua linguagem padronizada, elas ajudam a montar o currículo do candidato a um prêmio ou título e, ainda, os grossos formulários de pedido de subvenções a uma fundação filantrópica que financie projetos urbanos inovadores. Criam logotipos atraentes e slogans de impacto, de preferência em inglês (“Only Lyon”, “So Toulouse”, “My Rodez”), destinados a figurar em todas as peças de comunicação ou a ser exibidos nos grandes eventos. A concorrência urbana envolve as cidades em uma lógica de benchmarking,7 uma “corrida sem linha de chegada” onde cada uma procura se mostrar mais inovadora, mais moderna, mais “ligada”, qualquer que seja o nível (nacional, continental ou mundial) ao qual concorra. Assim, Aix-en-Provence se apresentou aos investidores como se fosse San Francisco: “A cidade do célebre pintor Paul Cézanne soube se adaptar para ser hoje classificada como French Tech e oferecer um ecossistema atraente aos donos de projetos e criadores de empresas […]. Cidade inteligente, conectada, resolutamente comprometida com a inovação digital e internacional, Aix-en-Provence é uma moderna, cosmopolita, cultural, dinâmica, aberta para o mundo”, gaba-se um folheto do projeto “Atrativo e Cooperação Internacional” da prefeitura.
Fratura territorial
Embora concorrentes, as metrópoles sabem se aliar para defender seus interesses e utilizar a diplomacia das cidades para fins de lobby. A rede Eurocities tem por objetivo “influenciar as políticas europeias a fim de garantir que a opinião das grandes cidades seja levada em conta na elaboração de políticas”. A CGLU se vangloria de exercer um “lobby político” junto a Bruxelas – bem como ao Banco Mundial e à ONU – para obter “a criação de um fundo europeu destinado à ‘diplomacia das cidades’”. O Iclei pressiona sobretudo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), incitando-o a privilegiar o lugar central que as cidades devem ocupar na luta contra o aquecimento climático. Já o C40 fundou em 2017 a Associação Urban20, que procura influenciar os ministros participantes das deliberações das reuniões do G20.8
Estabelece-se assim um círculo vicioso. Ao concentrar riquezas e atividades de alto valor agregado nas metrópoles, a globalização aumentou seu peso econômico, político e cultural. Diante dos mesmos problemas, abrigando a mesma população próspera e estudada, elas começaram a ficar parecidas – encontramos em Nova York ou Pequim os mesmos arranha-céus, os mesmos shopping centers assépticos, os mesmos “clusters criativos” – e depois a se juntar. Unidas para defender interesses comuns, elas influenciam agora os centros de decisão, do Banco Mundial à Comissão Europeia, e orientam as políticas públicas em proveito próprio, privilegiando um modelo de desenvolvimento espacialmente desigual, que esquece o campo e as cidades pequenas.
Esse fosso entre os territórios não é novo, mas nunca foi tão largo. Enquanto uns cobrem os imóveis de verde e eletrificam os ônibus, outros fogem de prédios abandonados, sem moradores, e enfrentam os ônibus em horários pouco adaptados, que não circulam à noite, nem nos feriados nem nos fins de semana… Essa brecha, existente na maioria dos países ocidentais, alargou-se consideravelmente desde a crise de 2008. Na França, o PIB por habitante no aglomerado parisiense aumentou 3% entre 2008 e 2016; no resto do país, ficou estagnado. Nos Estados Unidos, durante o mesmo período, o nível de emprego nas áreas metropolitanas cresceu 4,8%, ao passo que, nas áreas não metropolitanas, diminuiu 2,4%. A diferença é ainda maior no Reino Unido, onde só a metrópole de Londres captou 70% das criações de empregos no país desde 2008.9 Para Paris, Nova York e Londres ou Amsterdã e Toronto, a crise foi apenas um episódio passageiro: dez anos depois, o emprego vai aí muito bem, o setor imobiliário chega às alturas, os investimentos afluem, as classes superiores nunca foram tão concentradas.
De seu lado, os territórios densos, mais populares, continuam a sofrer os efeitos da recessão. Foram colhidos numa engrenagem em que o desaparecimento dos empregos industriais e pouco qualificados provocou o declínio demográfico, o qual, por sua vez, forçou a baixa dos preços dos imóveis e a crise das finanças locais. Menos habitantes, menos empregos, imóveis mais baratos: isso significa também menos receitas para as coletividades locais, com consequências na oferta de serviços públicos, na manutenção das infraestruturas… Esses territórios perdem muito de seu atrativo, obrigando a população a sair, e assim por diante.
É nessas zonas que a extrema direita e, mais ainda, os partidos ditos “populares” – avessos à globalização e à livre circulação de bens e pessoas – criam raízes. Na eleição presidencial norte-americana de 2016, Donald Trump venceu nos condados onde o aumento da renda era mais fraco, a população declinava e as taxas de mortalidade subiam. Na França e no Reino Unido, o Rassemblement National (ex-Frente Nacional) e os partidários do Brexit se saem melhor nas áreas mais afetadas pela queda dos preços dos imóveis.10 Ao contrário, os partidos ditos “progressistas” – adeptos do livre-comércio, do capitalismo verde, da abertura e da inovação – obtêm resultados mais expressivos nas metrópoles. Em 2016, nos Estados Unidos, a candidata democrata Hillary Clinton venceu em 88 dos cem condados de população mais densa (os que abrigam as grandes cidades), deixando às vezes apenas migalhas para seu adversário, como em Washington, onde só 4% dos eleitores votaram em Trump.
Essa situação se repete na Hungria: Budapeste é governada, desde outubro de 2019, por um ecologista, virulento carrasco do primeiro-ministro Viktor Orbán. Na República Tcheca, Praga escolheu para prefeito, em novembro de 2018, um membro do Partido Pirata, que quer plantar 1 milhão de árvores em oito anos e defende os refugiados, contrariamente ao primeiro-ministro Andrej Babiš, que denuncia a “imigração de povoamento” na Europa. Mesmo Istambul, que há 25 anos serviu de rampa de lançamento para o presidente islâmico-conservador Recep Tayyip Erdogan, no ano passado caiu em poder de um partido de oposição leigo e social-democrata. “A coalizão dos cidadãos secularizados, dos meios empresariais, da juventude, das mulheres e das minorias se mobilizou ativamente. […] Turcos, curdos e uzbeques partilham as calçadas com senegaleses, catarenses, sírios. Os naturais de Istambul de sétima geração convivem na cidade com imigrantes, expatriados e refugiados. Dividindo o mesmo espaço, quando não a mesma vida, essa miríade de cidadãos está ligada por uma urbanidade comum”, admirou-se na época o Washington Post, propriedade de Jeff Bezos, dono da Amazon.
Defesa de “valores”
Essa visão beatífica vem se propagando amplamente há uns dez anos. “Os valores de Nova York, como os de outras grandes cidades do mundo, são valores de otimismo, diversidade e tenacidade, aos quais todos deveríamos aspirar”, avalia o The Guardian (31 out. 2016). Particularmente entusiasta, o Fórum Econômico Mundial de Davos chega a ver nas metrópoles um “antídoto ao populismo”: “A maioria das cidades do mundo reinventa a política, a economia e o ativismo ecológico partindo dos habitantes. Elas constroem, do futuro, uma visão positiva, inclusiva, plural, enquanto os dirigentes nacionais semeiam o medo, fecham as fronteiras e erguem muros”. Constatando que “as populações urbanas e rurais vão sendo cada vez mais despojadas de valores e prioridades”, o simpósio dos milionários convida as metrópoles a se organizar e reforçar sua “diplomacia urbana”.11 Ivo Daalder, ex-consultor de Barack Obama, sugere até a criação de “miniembaixadas” instaladas nos lugares onde têm interesses importantes, a fim de contornar possíveis bloqueios governamentais. São Paulo, Londres e Toronto já tentaram essas experiências, mas despertaram a cólera dos habitantes, que viam nisso um desperdício de dinheiro público. “Uma parceria público-privada talvez fosse a solução”, sugere o estrategista.
Algumas cidades começaram a organizar sua cruzada contra o populismo. Na Europa oriental, os prefeitos de Praga, Bratislava, Varsóvia e Budapeste assinaram, em dezembro último, o Pacto das Cidades Livres. Desafiam seus governos, que acusam de fomentar “o tipo de nacionalismo xenofóbico responsável, na Europa, por duas guerras durante o último século”: “Não nos apegamos a uma concepção ultrapassada das noções de soberania e identidade; ao contrário, acreditamos numa sociedade aberta, baseada em nossos preciosos valores comuns de liberdade, dignidade humana, democracia, sustentabilidade, igualdade, estado de direito, justiça social, tolerância e diversidade cultural”, professaram os quatro eleitos antes de conclamar as cidades a “colaborar partilhando seus recursos, intercambiando suas ideias”.
Nos Estados Unidos, as metrópoles se apresentam como os primeiros opositores do presidente. Em janeiro de 2017, tão logo Trump se instalou na Casa Branca, os prefeitos de San Francisco, Los Angeles, Seattle, Boston, Nova York, Washington, Detroit e Chicago avisaram que não aplicariam seus decretos destinados a acirrar a luta contra a imigração clandestina. O prefeito de Boston denunciou uma legislação “destrutiva” e “antinorte-americana”, uma “agressão aos habitantes de Boston, à força de Boston, aos valores de Boston”. “Nossa cidade e nossos valores não mudaram por causa da eleição […]. Não somos agentes do governo federal”, secundou seu colega de Washington.12 Algum tempo depois, começou uma briga em torno da questão ambiental, com várias metrópoles declarando sua intenção de respeitar o Acordo de Paris sobre o clima, apesar da retirada decidida por Trump.
No Reino Unido, o Brexit é que acendeu o estopim. Logo após o referendo de junho de 2016, circulou um abaixo-assinado pedindo a independência de Londres. Em poucas semanas, ele recolheu 180 mil assinaturas. Sem ir ao ponto de defender a secessão da capital, o prefeito Sadiq Khan deseja também se dissociar do destino nacional. Quatro dias após os resultados, ele publicou, com Hidalgo, uma carta aberta no Financial Times e no Le Parisien: “Nossas cidades são espaços em que cada qual, venha de onde vier, pode se sentir em casa. Como prefeitos de Paris e Londres, estamos decididos a trabalhar mais estreitamente a fim de construir alianças ainda mais fortes entre as cidades da Europa e do mundo. Juntos, seremos um contrapeso poderoso à letargia dos Estados-nações e à influência dos lobbies. Juntos, daremos forma ao próximo século”.
Para tranquilizar turistas e investidores, Khan lançou também uma campanha de comunicação com a hashtag #LondonIsOpen [#Londres está aberta]. Apoiado pela Câmara de Comércio e Indústria, pela Corporação da Cidade de Londres e por numerosos think tanks e multinacionais, ele propõe a criação de um visto de trabalho válido unicamente em Londres, bem como a extraterritorialidade da capital em suas relações com o Mercado Comum. Nenhuma dessas propostas se concretizou, mas uma oposição feroz permitiu a Khan adquirir uma estatura internacional inesperada para um prefeito: ele agora divide o palanque com ministros e chefes de Estado estrangeiros (o canadense Justin Trudeau, o argentino Mauricio Macri, o francês Emmanuel Macron…).13
A imprensa esquerdista saúda com entusiasmo essas resistências. Em seu dossiê “As cidades tomam o poder” (primeiro semestre de 2020), a revista francesa Regards, por exemplo, vê na rebeldia das metrópoles norte-americanas uma prova de que “existem margens de manobra para resistir à política repressiva do presidente [Trump]”. Ora, a ideia de que as metrópoles já não se preocupam com a sorte do resto do país contribui para acentuar as diferenças territoriais. Ela ajuda também a transformar peculiaridades sociogeográficas em conflitos de “valores” – palavra que reaparece o tempo todo. A linha divisória não passa mais entre os territórios que se aproveitam da globalização, do livre-comércio, da circulação de cérebros, da mão de obra barata dos imigrantes e as regiões que sofrem com isso: passa entre os espaços abertos, voltados para o futuro, e os que permanecem fechados, agarrados às suas tradições.
Analista político de sucesso e ex-consultor do presidente Bill Clinton, Benjamin Barber publicou um livro intitulado Se os prefeitos governassem o mundo.14 Muito apreciada pelos tomadores de decisões, a obra lhe valeu incontáveis entrevistas, convites, propostas de conferências. Nela, o autor esboça uma tipologia que ilustra de maneira caricata como as elites urbanas percebem seus concidadãos. Para as metrópoles e as grandes cidades, Barber reserva os termos “aberto”, “criativo”, “cosmopolita”, “móvel”, “mutável”, “futuro”, “inovação”, “secular”, “progressista”, “liberdade”, “sofisticação”, “comércio”; para o campo e a América interiorana, usa as palavras “fechado”, “convencional”, “paroquiano”, “imóvel”, “estável”, “passado”, “repetição”, “religioso”, “conservador”, “tradição”, “simplicidade”, “autarquia”.
Aventurando-se para além dos clichês, o professor de Ciência Política Lawrence R. Jacobs procurou entender essa fratura fazendo pesquisas em Minnesota, onde leciona e onde Trump levou cerca de vinte condados que haviam escolhido Obama em 2008 e 2012.15 Entre os fatores de divisão, ele salientou primeiro a enorme diferença salarial entre Minneapolis e o resto de Minnesota. Em 2017, a metrópole decidiu elevar progressivamente seu salário mínimo a US$ 15 por hora – medida quase sempre adotada nas grandes cidades para permitir que os trabalhadores pouco qualificados se alojem como puderem num contexto de crise imobiliária. Em outras partes de Minnesota, o salário mínimo é de US$ 10 nas grandes empresas e de US$ 8,15 nas pequenas – quando alguém consegue um emprego. As pessoas que o pesquisador entrevistou se sentem praticamente excluídas. “[Em Minneapolis,] há por todo lado guindastes e cartazes com os dizeres ‘Precisa-se’, para empregos com salário inicial de US$ 15 por hora”, comenta o morador de uma pequena cidade que precisa muito de trabalho.
Jacobs enfatiza também que os discursos, a retórica, os conceitos utilizados pelo grupo progressista de Minneapolis, concebidos a fim de agradar às classes superiores urbanas, parecem fora de lugar para os outros habitantes do Estado. Ele cita, sobretudo, a noção de “privilégio branco”, em voga nas faculdades de Ciências Sociais e utilizada a torto e a direito tanto pelos eleitos de Minneapolis como pelos militantes democratas locais (após um tiroteio numa delegacia, envolvendo habitantes em luta pela proteção dos espaços verdes…). Alguns dos condados mais pobres de Minnesota têm até 95% de brancos. Condenados aos baixos salários e à precariedade, seus moradores não se sentem de maneira alguma privilegiados, principalmente quando olham para Minneapolis. A “privilégio branco”, eles preferem falar de um “privilégio metropolitano” associado indiferentemente às minorias étnicas e aos colarinhos-brancos que ganham a vida matando o tempo em seus escritórios.16
As grandes cidades e seus tomadores de decisões estão em contato com colegas do mundo inteiro, mas separados de uma parte de seu país. Discursos uniformemente inovadores, abertos, sustentáveis, criativos e inteligentes disfarçam muito mal a captação sem precedentes das riquezas que manipulam. Serão mesmo os mais qualificados para propor um “antídoto ao populismo”?
Benoît Bréville é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Michele Acuto, “Give cities a seat at the top table” [Deem às cidades um assento na mesa principal], Nature, v.537, n.7622, Londres, 28 set. 2016.
2 Ivo Daalder, “Why cities need their own foreign policy” [Por que as cidades precisam de sua própria política externa], Politico, 6 jun. 2017. Disponível em: www.politico.com.
3 Alain Bourdin e Joël Idt, L’Urbanisme des modèles. Références, benchmarking et bonnes pratiques [O urbanismo dos modelos. Referências, benchmarking e boas práticas], Éditions de l’Aube, La Tour-d’Aigues, 2016.
4 Vincent Béal, “Trendsetting cities: les modèles à l’heure des politiques urbaines néolibérales” [Cidades criadoras de tendências: os modelos atuais das políticas urbanas neoliberais], Métropolitiques, 30 jun. 2014. Disponível em: www.metropolitiques.eu.
5 Yves Viltard, “Diplomatie des villes: collectivités territoriales et relations internationales” [Diplomacia das cidades: coletividades territoriais e relações internacionais], Politique Étrangère, n.5, Paris, outono de 2010.
6 Citado em Ronald Brownstein, “The growing gap between town and country” [O crescente fosso entre cidade e campo], The Atlantic, Washington, DC, 22 set. 2016.
7 Ver Isabelle Bruno e Emmanuel Didier, “L’évaluation, arme de destruction” [A avaliação, arma de destruição], Le Monde Diplomatique, maio 2013.
8 Michele Acuto e Simon Curtis, “The foreign policy of cities” [A política externa das cidades], The RUSI Journal, v.163, n.6, Londres, dez. 2018.
9 Ver Roberto Stefan Foa e Jonathan Wilmot, “The West has a resentment epidemic” [O Oeste tem uma epidemia de ressentimento], Foreign Policy, Washington, DC, 18 set. 2019; Thomas B. Edsall, “Reaching out the voters the left left behind” [Atrás dos eleitores que a esquerda deixou para trás], The New York Times, 13 abr. 2017.
10 David Adler e Ben Ansell, “Housing and populism” [Moradia e populismo], West European Politics, v.43, n.2, Abingdon-on-Thames (Reino Unido), jun. 2019.
11 Ver Robert Muggah e Misha Glenny, “Populism is poison. Plural cities are the antidote” [Populismo é o veneno. Cidades plurais são o antídoto], Fórum Econômico Mundial, Davos, 4 jan. 2017. Disponível em: www.weforum.org.
12 Citado em Nicolas Maisetti, “Le Retour des villes dissidentes” [A volta das cidades dissidentes], Rapport pour le Ministère de la Transition Écologique et Solidaire, Paris, out. 2018.
13 Nicolas Bosetti, “Londres peut-elle échapper au Brexit? La ville globale comme acteur autonome des relations internationales” [Londres pode escapar do Brexit? A cidade global como agente autônomo das relações internacionais], Revue Internationale et Stratégique, v.112, n.4, Paris, 2018.
14 Benjamin Barber, If Mayors Ruled the World: Dysfunctional Nations, Rising Cities [Se os prefeitos governassem o mundo: nações disfuncionais, cidades em ascensão], Yale University Press, New Haven, 2014.
15 Lawrence R. Jacobs, “Minnesota’s urban-rural divide is no lie” [A divisão cidade-campo em Minnesota não é uma mentira], Star Tribune, Minneapolis, 26 jul. 2019.
16 Sobre o caso de Wisconsin, ver Katherine J. Cramer, “For years, I’ve been watching anti-elite fury build in Wisconsin. Then came Trump” [Por anos, vi a fúria antielite crescer em Wisconsin. Então, veio Trump], Vox, 16 nov. 2016. Disponível em: www.voxmedia.com.