Sete lições para a esquerda
Para a esquerda, a luta não termina após a vitória nas urnas. A chegada ao poder inaugura novas batalhas pois as forças conservadoras não se desarmam, elas resistem, conspiram, corrompem. Tanto que a onda vermelha iniciada em 1998 começa a ser revertidaÁlvaro Garcia Linera
As revoluções não se parecem com escadas rolantes sem fim: assemelham-se mais com as ondas que quebram na praia. As revoluções se alteiam, avançam como que suspensas em seu movimento e caem mais uma vez para se erguer novamente. As etapas desse movimento contínuo dependem do vigor das mobilizações populares, que determinarão o futuro de nosso continente. Ora, as forças progressistas enfrentam diversas tensões e terão de superá-las. Aqui, identificarei sete delas.
A primeira diz respeito à democracia, que nossa família política concebe há tempos como um ponto situado desconfortavelmente entre a sociedade atual e o socialismo. A esquerda latino-americana demonstrou que semelhante visão era errônea: a democracia não nos dá apenas um método, mas também o quadro indispensável à transformação social. Os processos revolucionários regionais dos últimos anos tomaram corpo graças ao aumento da capacidade de organização autônoma da sociedade, que passou a participar e a investir mais nos negócios coletivos. Isso não ocorreu por acaso.
A concepção da democracia como o próprio espaço da revolução implica, porém, reinventá-la. Não há que se contentar com uma ideia fóssil vinda dos países do Norte. Não: a democracia que reinventamos na América Latina se quer plebeia, da rua. Afinal, o verdadeiro socialismo se caracteriza pela radicalização absoluta da democracia: nos locais de trabalho, no seio do Executivo e do Parlamento, na vida cotidiana. À falta de tal processo, qualquer luta com vista a mudar o mundo, quer passe pelas urnas ou pelas armas, oscilará entre reformismo e oportunismo.
Outra pergunta, tão velha quanto a esquerda: devemos tomar o poder ou construir um novo, longe do primeiro? Nós, da antiga escola, sempre achamos que nosso objetivo era a tomada do poder, esquecendo às vezes que todo Estado, por mais democrático que seja, é um monopólio comum, universal. Ora, apossar-se desse monopólio tal como foi constituído equivale a substituir uma burocracia por outra.
Renunciaremos então à tomada do poder? Alguns defenderam essa ideia. Fecharam-se em pequenas comunidades, propondo edificar o socialismo em escala menor; consagraram-se à luta contra a “comida de plástico”; criaram circuitos de troca não comerciais baseados no escambo etc. Mas se esqueceram de uma coisa: o poder não desaparece só porque fugimos dele. O poder continua a existir, monopolizado pelas oligarquias de sempre.
A dificuldade, no plano teórico, vem do fato de o Estado não existir unicamente na esfera material. Sua existência se consolida em torno de uma série de instituições, normas e procedimentos. Mas ele estrutura também as relações entre as pessoas. Ele orquestra o modo como concebemos, coletivamente, aquilo que nos liga uns aos outros: as estradas, a educação, o comércio, as questões de saúde, assim como os raciocínios lógicos e morais.
Se o Estado organiza assim os preceitos segundo os quais conduzimos nossa vida, sentindo-nos membros de uma mesma comunidade histórica, embora vivamos a centenas de quilômetros uns dos outros, então… precisamos tomá-lo! Como a esquerda revolucionária poderia prescindir de semelhante ferramenta? Porém, isso não significa que ela vai se contentar com a conquista do poder. A esquerda revolucionária deve transformar e democratizar a tomada de decisões. Sem isso, enfrentará uma nova elite, que reproduzirá o comportamento da antiga.
Terceira questão: a conquista da hegemonia, entendida como direção intelectual, moral, ética, lógica e organizacional imposta por determinado bloco social ao resto da sociedade. Toda transformação da relação de forças no seio de um Estado requer uma mudança prévia dos parâmetros de percepção lógica da sociedade, tanto quanto da maneira com que cada qual ordena o mundo, incluindo-se aí o plano moral.
Antes dos anos 2000, tudo ia pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. A privatização dos recursos naturais asseguraria o bem de todos: é o que nos prometiam. Essa convicção regulava a vida cotidiana, delimitando o horizonte das ambições de cada um.
Pouco a pouco, esse artefato intelectual se tornou intolerável. Não gozava mais de credibilidade, por não corresponder ao mundo tal qual as pessoas o percebiam. Todas essas ideias-força, que organizavam o cotidiano, foram questionadas. O momento de ruptura simbólica, em que se modifica o “senso comum”, tornou as pessoas receptivas a novos projetos. Emergiram então Hugo Chávez (Venezuela), Rafael Correa (Equador), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil) e Evo Morales (Bolívia). Eles não caíram do céu, mas surgiram em meio ao redemoinho da mudança. Porém, transformar os parâmetros culturais não basta: cedo ou tarde, o processo deve conduzir à prova de força, à derrota do adversário para que a nova hegemonia possa se irradiar e se consolidar.
Em que pé estamos agora? No curso dos últimos anos, um intenso debate coletivo transformou um conjunto de ideias revolucionárias em força concreta. Contudo, entramos numa fase de estagnação extremamente perigosa. Devemos retomar a guerra das ideias; não podemos deixar cair a bandeira da esperança. Revolução é esperança em movimento. Ganhamos muito, mas não tudo. A batalha pela hegemonia se tornou decisiva.
Mais uma lição: em vários países da América Latina, nós, que militamos nas universidades, nos sindicatos e nas associações, tivemos de nos consagrar à gestão dos governos. Isso era indispensável, mas nos obrigou a abandonar nossa retaguarda. Precisamos voltar à carga, nos lembrar de que um dirigente sindical à testa de sua confederação conta tanto quanto um ministro. Não desertemos da frente de batalha social. Perpetramos esse erro na Bolívia – e é justamente lá que a direita tenta se reorganizar.
Outra dificuldade: quando estamos na oposição, o importante é gerar e encarnar ideias de esperança. Uma vez no poder, isso continua necessário, mas é preciso também mostrar capacidade para gerir a economia. A resposta dos revolucionários latino-americanos a esse desafio determinará seu destino.
Os ciclos heroicos da mobilização não são eternos. Conhecem períodos de desaceleração que podem durar semanas, meses ou anos. É quando nos preocupamos com o dia a dia, com resultados concretos; é quando as pessoas se voltam para os dirigentes políticos a fim de lhes dizer: “Lutei muito. Sacrifiquei-me. Mas também gostaria de colher os frutos da revolução. Onde está minha água potável, minha escola, meu hospital?”. Nesse exato instante é que devemos exibir a outra face do revolucionário: a do bom administrador. Precisamos nos mostrar à altura dessa exigência durante a etapa de transição que se inicia.
Uma quinta tensão que afeta nossos processos revolucionários opõe o bem-estar econômico e social à preservação da Terra-Mãe. Daí o célebre debate sobre o “extrativismo”, tão em moda na América Latina. O Equador, a Venezuela e a Bolívia arcam com uma pesada herança nessa área. No caso da Bolívia, tudo remonta ao ano 1570, quando o vice-rei Francisco de Toledo instaurou o trabalho obrigatório no Cerro Rico, a montanha que domina a cidade de Potosí. Ele converteu assim a Bolívia em produtora de matérias-primas destinadas à metrópole. Depois de 450 anos, a divisão internacional do trabalho impôs esse mesmo papel ao país, como ao resto da América Latina. Mas nossas sociedades se caracterizam também por enormes taxas de pobreza e desigualdade, por necessidades materiais de nossas populações, que foram relegadas à própria sorte.
Que fazer então? Se produzirmos para satisfazer nossas necessidades materiais, obteremos bons resultados econômicos, mas trairemos a herança indígena que nutre nossa visão do futuro. Do mesmo modo, não podemos nos contentar em proteger as árvores deixando a população na miséria – pois as condições de vida dos povos indígenas não têm nada de idílico; eles vivem numa indigência colonial construída ao longo dos últimos quinhentos anos. Contudo, precisamente a isso nos convida o que chamo de ecologismo colonial: “Caros latino-americanos, deixem de sonhar com o progresso”, diz-nos ele. “Se desejam fazer alguma coisa pela humanidade, ocupem-se da proteção das árvores. Nós, no Norte, nos encarregaremos de cortá-las a fim de produzir e espalhar o gás carbônico pelo mundo.” Ou seja, que os países do Sul financiem a mais-valia ambiental e interrompam o desenvolvimento, renunciando a seu futuro.
Alguns de nossos companheiros do altiplano moram em casas de pedra; têm de caminhar cinco horas para chegar à escola mais próxima e dormem o dia inteiro para esquecer a fome. Respondam-me: já se viu economia capaz de prosperar em tais condições? Sair do “extrativismo”? Sim, sem dúvida – mas não para voltar à Idade da Pedra. A transição implica utilizar nossos recursos naturais a fim de estabelecer as condições – culturais, políticas e materiais – que permitam ao povo passar para outro modelo econômico.
Sexta dificuldade: a lógica que escapa a essa esquerda que critica os governos progressistas latino-americanos, acusando-os de não ter construído o comunismo em algumas semanas. Enquanto faz seus exercícios matinais ou participa de seminários generosamente financiados pelo estrangeiro, ela zomba de nossa incapacidade de aderir ao mercado mundial ou de instaurar, do dia para a noite (e por decreto!), a “vida próspera”. Os radicais de salão atuam como inocentes úteis do neoliberalismo, fazendo eco à melopeia deste sobre o fracasso inevitável das revoluções. Não sugerem medidas concretas, não apresentam nenhuma proposta alicerçada nos movimentos sociais ou suscetível de impulsionar as dinâmicas revolucionárias. Corifeus medíocres da nova ofensiva imperialista, colocam seu pseudorradicalismo a serviço das classes dominantes, cujo único objetivo é saborear nosso fracasso.
Último desafio, o Estado. Em escala mundial, o neoliberalismo passou por duas grandes fases. A primeira teve início nos anos 1980, com a chegada ao poder de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher, no Reino Unido. Estendeu-se até 2005, mais ou menos. Durante esse período, o neoliberalismo se valeu do Estado para privatizar as riquezas públicas e obter legitimação ideológica.
Estamos agora na segunda fase. Os Estados nacionais perderam sua utilidade aos olhos dos neoliberais, que se empenham em desmembrá-los. De início, facilitando a formação e a mobilização de oposições políticas, e criando zonas em que o Estado não mais seja soberano (regiões autônomas, territórios ocupados etc.). Depois, enfraquecendo a soberania orçamentária e monetária dos países, instaurando, por exemplo, a mecânica da dívida, como se observa na Grécia. A defesa do Estado – agora lacaio de um novo bloco social – deve, pois, se tornar uma das prioridades da esquerda.
QUINZE ANOS NO GOVERNO
Dezembro de 1998. Eleição de Hugo Chávez na Venezuela.
Julho de 2000. Chávez se reelege em um pleito com o qual se comprometera durante o referendo de abril de 1999, que propunha a convocação de uma Assembleia Constituinte.
Outubro de 2002. Eleição de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil.
Maio de 2003. Eleição de Néstor Kirchner na Argentina.
Dezembro de 2005. Eleição de Evo Morales na Bolívia.
Outubro de 2006. Reeleição de Lula.
Novembro de 2006. Eleição de Rafael Correa no Equador.
Dezembro de 2006. Reeleição de Chávez.
Outubro de 2007. Eleição de Cristina Fernández de Kirchner, esposa de Néstor Kirchner, na Argentina.
Abril de 2009. Reeleição de Rafael Correa.
Dezembro de 2009. Reeleição de Evo Morales.
Outubro de 2010. Eleição de Dilma Rousseff no Brasil.
Outubro de 2011. Reeleição de Cristina Kirchner.
Fevereiro de 2013. Reeleição de Rafael Correa.
Abril de 2013. Eleição de Nicolás Madurona Venezuela.
Outubro de 2014. Reeleição de Dilma Rousseff e Evo Morales.
Novembro de 2015. Derrota do Partido Justicialista de Cristina Kirchner.
Dezembro de 2015. Derrota do chavismo nas eleições legislativas da Venezuela.
*Álvaro García Linera é vice-presidente da Bolívia. Este texto é uma versão editada de uma conferência que ele pronunciou em 29 de setembro de 2015, em Quito, Equador.