Simulacros: a hiper-realidade do extermínio
Trabalhamos com 316 ocorrências de resistência seguida de morte, que somavam 388 vítimas da ação policial letal. Em 22 dessas ocorrências foram apreendidos apenas simulacros de arma de fogo e em catorze não houve apreensão de arma alguma. Confira o quinto artigo do dossiê “Estado de choque”, série de seis análises que publicaremos até julho de 2019
Um dos pontos mais polêmicos do “pacote anticrime” proposto pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, é a ampliação das previsões do que seria a legítima defesa nos casos de ação policial e/ou militar letal. Outrora chamados “autos de resistência”, no Rio de Janeiro, e “resistência seguida de morte” em São Paulo, os casos registrados como “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial” dependem hoje – ao menos formalmente – da presunção de que foram praticados para “revidar” ou “cessar” uma “injusta agressão”. Tal é o requisito para que sejam legitimados pela agora famosa “excludente de ilicitude”. Mas a proposta em voga é de que a anistia seja prevista também para os policiais que se utilizarem da violência letal para “prevenir” a agressão, e não mais apenas “revidar”, incluindo na letra da lei a ideia de “risco iminente de conflito armado”.
Somos aqui capturados pelo labirinto de imaginação acerca das situações em que seria possível identificar riscos potenciais a serem eliminados. Adentramos o terreno movediço dos confrontos armados virtuais, que produzem efeitos de morte antes mesmo de se tornarem reais. Uma nebulosa de significações ao redor de tudo aquilo que pode se parecer com o que não necessariamente é, porque oferece superfícies à inscrição das semelhanças. Objetos que se parecem com armas, sons que se parecem com tiros, gestos que se parecem com ameaças, corpos que parecem criminosos, territórios que remetem ao “risco” e investigações e processos que simulam a busca da verdade. Somos induzidos ao ardil de nos colocar na perspectiva daqueles que devem distinguir o falso do verdadeiro na urgência do instante. E é num esforço de escapar dessa armadilha que recuperamos algumas reflexões de Jean Baudrillard1 acerca dos simulacros.
Muito antes de as fake news ditarem destinos (inter)nacionais e a pós-verdade se tornar um problema teórico e político dos mais urgentes, esse filósofo francês já falava do simulacro como um componente fundamental da realidade contemporânea. Seu problema central não é a maneira pela qual o simulacro falsifica o real, e sim o fato de ele ser capaz de, por si mesmo e por sua própria proliferação, instaurar uma nova realidade – uma “hiper-realidade”, nos termos do autor. O simulacro não remeteria a um problema da ordem da representação do real, mas, sobretudo, a um problema da ordem da produção de realidade. O movimento cognitivo fundamental e urgente já não é, portanto, desvelar a realidade encoberta pela falsa (ou má) representação – no limite, o problema da ideologia. Agora, e cada vez mais, é importante encarar de frente a proliferação dos simulacros e, principalmente, “a precessão dos simulacros”, sua anterioridade relativa ao real. Desfaz-se então a dualidade estrutural entre, de um lado, a verdade dos fatos e, de outro, os símbolos, imagens e representações que lhes seriam ulteriores. Resta perscrutar a verdade dos símbolos, o fato das imagens, a realidade das representações.
Simulacro de arma
Tomamos essas sugestões como provocação para refletirmos sobre um tipo particular de simulacro: os simulacros de arma de fogo, não raro apreendidos em posse de pessoas mortas pela polícia. Lembremos que o “pacote anticrime ” é ainda um projeto, logo a resistência violenta à ação policial deve, em tese, anteceder a morte dos supostos opositores, como requisito para caracterizar uma situação de legítima defesa e estrito cumprimento do dever policial. Assim, a dificuldade que esses simulacros de arma impõem às instituições da ordem não deveria ser fácil de contornar. Afinal, como pode alguém efetivamente resistir à prisão com uma arma de brinquedo? Como pode alguém desferir uma “injusta agressão” com um artefato desprovido do menor potencial de dano efetivo? Para nós, o que está em jogo não é tanto a capacidade de uma arma de brinquedo enganar ou não uma vítima ou um policial – sua relação equívoca com a verdade do dano e da ameaça –; interessa-nos inquirir um conjunto de situações e eventos em que esses artefatos são mobilizados e geram efeitos; interessa-nos, principalmente, perscrutar com quais outros simulacros o simulacro de arma de fogo se encadeia, forma rede e compõe uma particular realidade.
Por meio de uma parceria com o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, tivemos acesso a cópias do universo total de boletins de ocorrência das então chamadas “resistências seguidas de morte”, registrados pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), no município de São Paulo, no ano de 2012. Trabalhamos esse material em conjunto com outros pesquisadores da Universidade de São Paulo2 e, além de traçarmos um perfil dos registros de ocorrência, desarquivamos e analisamos os processos de uma amostra aleatória e representativa. Foi nessa experiência de pesquisa que o problema do simulacro de arma de fogo se nos impôs à reflexão.
Trabalhamos com 316 ocorrências de resistência seguida de morte, que somavam 388 vítimas da ação policial letal. Em 22 dessas ocorrências foram apreendidos apenas simulacros de arma de fogo e em catorze não houve apreensão de arma alguma. É possível afirmar, portanto, que em aproximadamente 12% dos casos de resistência seguida de morte, ocorridos no município de São Paulo em 2012, as pessoas mortas por policiais não portavam armas de fogo. O peso relativo dos casos de resistência seguida de morte envolvendo simulacros, pessoas desarmadas e mesmo armas brancas nos pareceu no mínimo instigante, dada a já mencionada dificuldade que se impõe à comprovação de uma resistência à ação policial que justificasse a neutralização letal do opositor.
Engano?
Uma longa série de “enganos” policiais ensina que os mais diversos objetos podem ser considerados simulacros de armas de fogo. Em 19 de maio de 2010, policiais do Bope da Polícia Militar do Rio de Janeiro assassinaram Hélio Barreira Ribeiro, no bairro do Andaraí, por confundirem com uma submetralhadora a furadeira que ele usava para fixar uma lona em sua laje. No dia 29 de outubro de 2015, Jorge Lucas Paes e Thiago Guimarães circulavam numa moto, na Pavuna, quando policiais abriram fogo ao confundirem com uma arma o macaco hidráulico que um deles carregava. Em 17 de setembro de 2018, na favela Chapéu Mangueira, Rodrigo Alexandre da Silva Serrano foi morto a tiros depois de policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) local confundirem um guarda-chuva com um fuzil e um canguru de carregar bebês com um colete à prova de balas.
Para ser morto num “engano” policial nem é preciso portar um objeto que possa parecer uma arma de grosso calibre. Em 16 de maio de 2017, no bairro da Lagoa, em Belo Horizonte, Paulo César Miranda foi morto depois de policiais confundirem com uma arma um telefone celular, como os que nós carregamos todos os dias. O simulacro que motiva a reação letal da polícia nem sequer carece de materialidade: pode ser um barulho ou um simples movimento. Em 28 de outubro de 2012, Rafael Costa conduzia um automóvel em Cordovil, no Rio de Janeiro, quando um pneu estourou. O barulho foi confundido com um tiro e o carro foi alvejado pela polícia – atingido no pescoço, o rapaz não resistiu. Em 3 de janeiro de 2018, em Nova Iguaçu, Luis Guilherme dos Santos foi morto a tiros depois de deixar a mochila cair durante uma abordagem policial.
No dia 7 de abril de 2019, oitenta dos mais de duzentos tiros disparados por soldados do Exército atingiram o carro de uma família, confundido com o carro de “bandidos”, matando, no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro, o músico Evaldo dos Santos Rosa e o catador de materiais recicláveis Luciano Macedo. No dia 4 de maio de 2019, dez tiros foram disparados de um helicóptero da Core da Polícia Civil do Rio de Janeiro – que tinha em seu interior o governador Wilson Witzel – contra uma tenda de orações de evangélicos confundida com uma casamata de traficantes em Angra dos Reis. Casos como esses mostram que o problema do simulacro não é tanto se ele efetivamente replica ou não uma arma de fogo. Mais propriamente, esses casos sugerem que o simulacro é um agenciamento que ultrapassa o objeto e, no limite, independe dele – compondo-se fundamentalmente de um corpo – sobretudo negro – e de um território – sobretudo pobre.
Simulacro de bandido
A interpretação circunstancial da ameaça pela semelhança remete diretamente aos processos sociais de acusação que, segundo Michel Misse,3 contribuíram para a “acumulação social da violência”. Misse formulou o conceito de “sujeição criminal” para designar a incriminação de um suposto sujeito autor de crimes que antecede a classificação de um curso de ação em um tipo penal. O crime se desloca do fato para o sujeito, produzindo a incriminação preventiva de tipos sociais considerados potencialmente criminosos, processo que incide sobre a identidade pública e íntima dos sujeitos. Dos jovens negros de periferia detidos pela polícia a caminho da praia às pessoas executadas por possuírem antecedentes criminais, não faltam exemplos de assujeitamento criminal. Misse, contudo, deixou de fora de seu esquema teórico uma reflexão acerca do racismo.
Entre as 388 vítimas apontadas nos boletins de ocorrência por nós analisados, havia, conforme a atribuição policial, 242 pessoas negras (62%), 131 pessoas brancas (34%) e outras quinze sem registro de raça/cor das vítimas (4%). É digno de nota que tal proporção é diametralmente inversa à distribuição populacional da cidade de São Paulo, onde 60,6% da população se autodeclarou branca ao Censo de 2010.4 Observamos ainda que, nos casos sem arma de fogo apreendida, a proporção de vítimas negras era ainda maior: 26 negros e doze brancos.
O racismo fundamenta-se em pretensas diferenças biológicas ou genéticas lidas no fenótipo pelo “olhar branco”, mecanismo a que Frantz Fanon5 se referiu como “epidermização”, ou “esquema corporal”. Não se trata aqui de um efeito óptico, e sim de uma distorção do real que, segundo Achille Mbembe,6 escapa às limitações do concreto, cobrindo o rosto humano com um véu; substituindo-o por um duplo, uma máscara, um simulacro de rosto. O racismo opera, portanto, como força de desvio do real que fixa afetos; como dispositivo de segurança que marca indivíduos como “tipos” dentro de um cálculo geral do risco. Assim, a “sujeição criminal” deve ser compreendida em sua relação com esse olhar que tem o corpo como objeto de fixação da disputa sobre a humanidade de terceiros; o olhar que, dentro de uma economia de signos e imagens, ao menor sinal de semelhança com alguma ameaça, substitui o corpo negro por um simulacro de bandido.
Simulacro de justiça
As mortes causadas pela polícia por conta de simulacros de várias naturezas não podem ser vistas como “engano”. Tal percepção se confirma ao considerarmos o destino que o sistema de justiça costuma assegurar a tais ocorrências: o arquivo. O caso do policial que matou Hélio portando uma furadeira nem sequer foi a tribunal. O próprio Ministério Público – instituição constitucionalmente responsável pelo controle da atividade policial – defendeu a inocência do réu.
Entre os processos que desarquivamos em nossa pesquisa, constava apenas um envolvendo simulacro de arma, no qual, segundo os policiais, um rapaz encapuzado estaria assaltando uma mercearia e teria esboçado o movimento de sacar uma arma quando os viu chegando. O que chama a atenção nesse processo é que, não obstante se tratar de um simulacro, a investigação e o posicionamento do Ministério Público e da juíza são em tudo similares aos que encontramos nos demais casos que analisamos. A investigação policial foi técnica e protocolar como todas as outras. Os policiais requisitaram e compilaram laudos periciais diversos e a investigação se completou com os depoimentos da mãe e da irmã da vítima, ambas confirmando que se tratava de um dependente químico com antecedentes criminais.
O inquérito foi concluído em pouco mais de um ano e encaminhado ao Ministério Público, que imediatamente formalizou a “promoção de arquivamento” nos seguintes termos: “[os policiais,] uníssonos em suas declarações, alegaram que, ao se aproximarem da vítima, esta se virou bruscamente na direção deles, com o desígnio de pegar a arma de fogo que portava, quando, então, foi surpreendida por disparos efetuados por estes […] vislumbra-se a existência de causa excludente de ilicitude em favor dos policiais militares averiguados, qual seja, o estrito cumprimento do dever legal. Isso porque a polícia tem o dever de zelar pela sociedade e reprimir a prática de delitos e, in casu, os averiguados foram forçados a usar as armas que portavam para conter o agressor que contra eles atentou. A propósito, verifica-se que estes atuaram dentro dos rígidos limites da lei, sem que tenha sido constatado abuso ou excesso, inclusive providenciando o socorro necessário à vítima”. Dez dias depois, a juíza determinou o arquivamento do caso.
No processamento judicial do caso, portanto, o fato de se tratar de um simulacro não faz a menor diferença. Se o simulacro, por representar uma arma de verdade, é assimilado pela justiça como se fosse uma arma de verdade, o mesmo se passa com a atuação no caso da Polícia Civil, do Ministério Público e da magistrada: simulacros de investigação, de controle da atividade policial e de justiça. Todos seguem um protocolo de atuação que remete ao ideal de um sistema de justiça, mas, assim como insistimos no caso do simulacro de arma de fogo, o problema central desses simulacros de processamento penal não é o que eles falseiam, e sim seus efeitos – estes, sempre verdadeiros: a legitimação institucional dos homicídios cometidos por policiais.
Uma solução fake?
Diante de tal quadro, podemos reconhecer no “pacote anticrime” do ministro da Justiça mais um simulacro. Ao tentar legalizar a “confusão” e o “engano”, apelando para termos como “escusável medo” e “violenta emoção”, o ex-juiz não está mais do que reafirmando o entendimento que seus colegas já manifestam nos autos. E então, uma vez mais, devemos deixar de lado a dimensão falaciosa da iniciativa para poder vislumbrar seus efeitos positivos: a sinalização às forças da ordem de uma licença para matar ampla, geral e irrestrita.
Confira os textos da série “Dossiê Estado de Choque”
Morrer antes da morte
Fazer sumir: o desaparecimento como tecnologia de poder
“Que morram”: a greve de fome e as indiferenças do Estado
Políticas da morte e seus fantasmas
A violência como forma de governo
Carolina Christoph Grillo é pesquisadora de pós-doutorado e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense; Rafael Godoi é pesquisador de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1 Jean Baudrillard, Simulacros e simulações, Relógio D’Água, Lisboa, 1992.
2 Juntamente com Juliana Tonche, Fábio Mallart, Paula de Braud e Paula Telles, no âmbito do Projeto Temático Fapesp “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista” (2014-2018), sob coordenação de Vera da Silva Telles. Contamos também com a colaboração de Thiago Oliveira.
3 Michel Misse, “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria ‘bandido’”, Lua Nova, São Paulo, n. 79, 2010, p.15-38.
4 Ver: <http://bit.ly/2VHMu4Q>.
5 Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, Edufba, Salvador, 2008.
6 Achille Mbembe, Crítica da razão negra, Antígona, Lisboa, 2014.
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Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chamados simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do poder político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais mobilizam técnicas de fazer sumir, que são parte integrante de uma ampla maquinaria da produção de morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia política na luta por direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é publicamente aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tempos sombrios – de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a resolução de conflitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins –, o presente dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abominável que marca as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais.
Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.