“Que morram”: a greve de fome e as indiferenças do Estado
O ato extremo de dispor o corpo à oportunidade da morte ataca as arbitrariedades profundamente cortantes, porém finamente discretas, do fazer burocrático. Confira o terceiro artigo da série Estado de Choque, publicada no Le Monde Diplomatique Brasil entre fevereiro e julho de 2019
Quando Jaime Amorim segurou o microfone diante das centenas de pessoas que se aglutinavam em frente ao prédio do Espaço 13, no centro do Recife, nós éramos tristeza. Estávamos perto das 19 horas do domingo, dia 28 de outubro de 2018, e o resultado parcial das eleições, divulgado pelo Tribunal Eleitoral, já apontava a irreversível vitória de Jair Bolsonaro para a Presidência do Brasil. Havia mais de 10 pontos percentuais de diferença entre Bolsonaro e Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores, o candidato das esquerdas, o nosso candidato.
A tristeza que éramos, de tão densa, podia ser tocada. Materializava-se nas lágrimas e nos abraços partilhados por amigos ou desconhecidos. Ecoava num “não saber dizer”, talvez uma desolação coletiva, uma solidão cúmplice que parecia nos apartar de um país desacreditado dos valores democráticos que julgamos fundamentais. Agitava-se na voz de um Jaime derrotado, como nós, evidentemente cansado, mas imbuído da missão de oferecer palavras de esperança e futuro a todos que o escutávamos.
Ali, perante a tristeza que éramos, falava o integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; o rapaz que começara sua militância em 1979, aos 20 anos de idade, quando ingressou na Pastoral da Juventude em Guaramirim (SC), e que em 1985 participaria do I Congresso do MST; o dirigente popular que em 1992 passou a morar em Pernambuco para participar do processo de organização do movimento no estado brasileiro que, décadas atrás, deflagrara as Ligas Camponesas. Ali falava Jaime, desconfortável dentro de um colete à prova de balas, enfrentando ameaças de diversas ordens.
Eu, que o conheço desde os meus próprios 20 anos, quando, em meados da primeira década dos anos 2000, ainda compunha o núcleo de assessoria jurídica popular da Faculdade de Direito do Recife, que cheguei a atuar como advogado do MST em casos em que Jaime, criminalizado em razão da luta por direitos, era levado à condição de “réu”, eu, que testemunhei Jaime se colocar fisicamente diante de pelotões de choque da Polícia Militar, armas de fogo em riste e autoridades de Estado, acreditei estar presenciando, naquela noite de domingo, um dos instantes mais difíceis de sua vida – e, portanto, de nossa vida. Foi só aí, no interior cortante dessa crença, que eu me dei conta do quanto Jaime havia emagrecido, do impacto que a greve de fome e a consequente perda de 13 quilos trouxeram a seu corpo de homem de 58 anos.
Entre 31 de julho e 25 de agosto de 2018, Jaime Amorim e seis outros militantes de diferentes movimentos sociais ligados à Via Campesina1 protagonizaram uma greve de fome em frente ao Supremo Tribunal Federal, em nome da liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Lula era então o principal candidato à Presidência da República. Apesar de preso desde abril de 2018, somava, de acordo com pesquisa do DataFolha realizada entres os dias 20 e 21 de agosto, 39% das intenções de voto, contra 19% de Jair Bolsonaro, 8% de Marina Silva e 6% e 5% de Geraldo Alckmin e Ciro Gomes, respectivamente. À época, sua prisão já era interpretada pelos setores de esquerda e, inclusive, pelos grevistas como o segundo e definitivo momento do golpe de Estado inicialmente perpetrado em 2016 contra a presidenta eleita, Dilma Rousseff. O golpe iniciado com a deposição de Dilma, sendo assim, completar-se-ia com a inelegibilidade de Lula.
Jaime e os outros seis militantes empreendiam a greve de fome ante o STF porque lá restava, entre os seus nove ministros e duas ministras, a possibilidade da liberdade do ex-presidente e, dessa maneira, a possibilidade de sua candidatura. Isto porque, naquele tribunal, já se achavam pendentes para julgamento duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (as ADCs 43 e 44), ambas sob a relatoria do ministro Marco Aurélio Mello, que obrigariam os ministros a novamente se posicionarem acerca da interpretação do princípio constitucional da “presunção da inocência” – previsto no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal e segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A interpretação adotada pelo STF desde 2016 é a de que esse princípio pode ser relativizado, de forma que, mesmo com recursos em aberto, mesmo antes da finalização do processo judicial e das chances de defesa, mesmo antes do “trânsito em julgado”, portanto, um réu condenado em segunda instância pode ser preso.
Essa interpretação havia sido fundamental para a prisão de Lula. Na tarde de 4 abril de 2018, quando nossas atenções se voltavam ansiosas para os ministros do Supremo e o julgamento do habeas corpus preventivo impetrado pelos advogados de Luiz Inácio com a intenção de garantir sua liberdade, foi a interpretação firmada no STF a respeito da relativização da presunção de inocência que garantiu o lastro narrativo, a justificação jurídica, para que, numa decisão apertada, por seis votos a cinco, o pedido de liberdade fosse rejeitado, o que levaria à prisão. Lula então já havia sido condenado pelo juiz Sérgio Moro em primeira instância, num processo judicial acusado de ilegalidade por inúmeros juristas,2 mas cuja sentença foi validada em segunda instância por desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre.
Acreditava-se, porém, que o julgamento das ADCs poderia trazer mudanças nesse cenário. É que um daqueles seis votos que recusaram o habeas corpus pertencia à ministra Rosa Weber, a princípio contrária à relativização da presunção da inocência e, desse modo, à posição atual do STF acerca desse tema. Weber, entretanto, votou pela denegação do habeas corpus porque, segundo ela própria, juízes se encontram “a serviço de um propósito institucional”, e não de suas compreensões individuais. De acordo com a ministra, o julgamento do habeas corpus de Lula não seria o momento adequado para o exercício de novas interpretações da Constituição, e sim para a aplicação da já existente posição firmada no Supremo sobre o princípio da presunção da inocência. Disso se presume que aquele momento adequado estaria no futuro julgamento das ADCs 43 e 44. Daí a esperança no julgamento das ADCs, daí a greve de fome diante do Supremo Tribunal Federal. As ações precisavam ser levadas à pauta de julgamento. Isso dependia, contudo, da vontade da presidenta do Supremo, a ministra Cármen Lúcia.
O ministro Marco Aurélio, relator das duas ADCs, havia devolvido as ações para julgamento pelo plenário do Supremo ainda em dezembro de 2017. Desde então, punha-se a pressionar Cármen Lúcia para que as ações fossem julgadas, inclusive antes da apreciação do habeas corpus de Lula, ocorrida, como dito, em 4 de abril de 2018, algumas semanas após um curioso encontro, na casa da ministra Cármen Lúcia, entre ela e o então presidente Michel Temer. Em junho de 2018, Marco Aurélio chegou a acusar a ministra de “manipulação da pauta”. Igualmente em junho, durante uma discussão acerca do pedido de liberdade de José Dirceu na Segunda Turma do STF, o ministro Ricardo Lewandowski também cobrou que a ministra Cármen Lúcia pautasse as ADCs 43 e 44. A ministra, porém, deixou a presidência do Supremo sem levar as ações ao plenário. A greve de fome tampouco foi suficiente para afetar as vontades de Cármen Lúcia.
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A greve de fome consiste numa estratégia política de reivindicação e tem sido empregada por diferentes sujeitos, em diferentes contextos políticos. Apenas a título de exemplo, podem-se citar a histórica greve de fome dos presos políticos pela anistia, que ocorreu de 22 de julho a 22 de agosto de 1979; a greve de fome realizada pelo bispo Dom Luiz Flávio Cappio contra a transposição do Rio São Francisco, em 2007; a greve de fome, de dez dias, realizada por seis militantes de movimentos sociais que intencionavam impedir a aprovação da Reforma da Previdência, no Congresso Nacional, em dezembro de 2017; a greve de fome empreendida por Marcola e outros integrantes do PCC, em novembro de 2006, em razão das consequências de uma reforma na penitenciária de Presidente Bernardes, onde se encontravam presos etc.
Durante os 26 dias da greve de fome, Jaime Amorim escreveu diariamente. No texto do 22º dia da greve, ele afirmou: “Não fizemos greve de fome por Lula como cidadão, estamos em greve de fome por tudo o que Lula representa neste momento político que vivemos no Brasil”. De acordo com Jaime, dessa forma, a greve de fome de que ele participava transcendia a liberdade de Luiz Inácio e, acionando certa noção de representatividade, implicava-se na defesa da experiência democrática, daquela que Jaime chamou, no artigo de 31 de julho, de “sofrida democracia brasileira”. Corpo e democracia sofrem, sendo assim, reciprocamente.
Nas palavras de Jaime e Rubneuza Leandro de Souza, sua companheira e também dirigente do MST em Pernambuco, a greve de fome ante o STF consistiu num “ato extremo” que dispôs corpos e vidas dos sete militantes “a serviço da luta dos trabalhadores”.3 A extremidade do ato político, portanto, conduzia o corpo ao extremo, ao “sacrifício”, à fronteira da degradação e da morte, num contexto em que os ataques à democracia obstaculizavam não só a elegibilidade de Lula, mas os direitos e a vida dos trabalhadores, por isso sua inexorabilidade. Era preciso, como Jaime e Rubneuza diriam após a greve, “furar o cerco do Judiciário imposto pelos golpistas”. O ato extremo de dispor o corpo à oportunidade da morte atacava as arbitrariedades profundamente cortantes, porém finamente discretas, do fazer burocrático.
Essas arbitrariedades se faziam presentes tanto na injustificável indisposição pessoal da ministra Cármen Lúcia para conduzir as ADCs ao plenário quanto no apego formalista da ministra Rosa Weber a um excessivamente abstrato “propósito institucional” – o qual ela, com seu voto, ajudava a construir – que a impedia de modificar a jurisprudência do STF naquele momento, a despeito de ser aquele o mesmo plenário, com idêntica composição de ministros, competente para o futuro julgamento das duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade.
A “resposta de Estado” à greve de fome foi a indiferença. Dos onze ministros do STF, somente três receberam pessoalmente os grevistas em seus gabinetes após pedido de audiência: as próprias Cármen Lúcia e Rosa Weber e o ministro Ricardo Lewandowski. O ministro Edson Fachin se recusou a receber os manifestantes; sua chefe de gabinete alegou incompatibilidade de agenda. Questionado sobre a greve, o ministro Marco Aurélio afirmou que, embora se tratasse de uma manifestação popular que se deveria respeitar, o “Supremo não fica sujeito a esse tipo de pressão, de forma alguma”. Os ministros lavaram as mãos e, com isso, aceitaram a possibilidade daquelas mortes, corroborando com o desejo mais explícito expresso por leitores nos comentários de uma matéria jornalística acerca da greve de fome: “Que morram”, diziam.
O “ato extremo” da greve de fome não “furou o cerco” das relações de poder interiores ao Supremo Tribunal Federal. Luiz Inácio, afinal, permanece preso numa cela em Curitiba. Jair Bolsonaro, portanto, ocupa a Presidência do Brasil, mantendo como ministro da Justiça o juiz que, um ano e meio antes de sua posse no governo, decidiu pela condenação de Lula, o principal adversário eleitoral do presidente. Os grevistas, no entanto, pareciam compreender a impenetrabilidade daquele cerco de togas pretas.
No texto do nono dia da greve, Jaime acusou ministros de traição; teriam eles “se apaixonado pelas doutrinas conservadoras das elites”. Também nesse texto, numa discussão acerca das tomadas de posição dos advogados de Lula, Jaime afirmou que os militantes não se achavam em greve de fome para seguir “orientações técnicas de burocratas encantados com as manobras judiciais”, e sim porque acreditavam que a greve afetaria as correlações políticas, lançaria luz sobre a injustiça da prisão de Lula e, assim, mobilizando “a força do povo”, poderia modificar o posicionamento judicial. A greve de fome, um “instrumento da luta política”, segundo os termos de Jaime, prestava-se ao adensamento da organização popular, ao fortalecimento da disputa democrática.
Era, afinal, também a isso que se prestava o corpo emagrecido do militante que falava àquelas centenas de pessoas em frente ao Espaço 13, na noite de 28 de outubro de 2018, perante a tristeza que nós éramos. Esforçando-se para encontrar palavra exatamente onde emudecíamos, nos interstícios da nossa derrota, Jaime Amorim investia em quem seríamos, juntos, naqueles dias que ainda estavam por vir. Do corpo constrangido pelo colete à prova de balas ressoava a voz cansada que não se dobraria a órgãos de Estado, processos eleitorais ou procedimentos burocráticos, mas que os conduzia, na luta democrática, ao extremo de suas próprias contradições. Aquela voz cansada – a nossa voz, enfim – é ainda o que ouço quando, nestes dias difíceis de nossa história, a esperança vacila.
Confira os outros textos da série “Dossiê Estado de Choque”
Morrer antes da morte
Simulacros: a hiper-realidade do extermínio
Fazer sumir: o desaparecimento como tecnologia de poder
Políticas da morte e seus fantasmas
A violência como forma de governo
*Roberto Efrem Filho é professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.
1 Ao lado de Jaime, participaram da greve o frei Sérgio Antônio Gorgen e Rafaela Santos, do Movimento dos Pequenos Agricultores, Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, da Central dos Movimentos Populares, Leonardo Soares, do Levante Popular da Juventude, e Vilmar Pacífico e Zonália Santos, também do MST.
2 A polêmica sentença de Moro foi analisada por 122 juristas no livro Comentários a uma sentença anunciada, organizado por Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele Ricobom e João Ricardo W. Dornelles e publicado pelo Projeto Editorial Praxis e pela Canal 6 Editora em 2017.
3 Jaime Amorim e Rubneuza Leandro de Souza, “Fome contra fome: o olhar de Jaime Amorim sobre a greve de fome de 26 dias”, Revista Debates Insubmissos, v.1, n.2, Caruaru, 2018, p.194-220.
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Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chamados simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do poder político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais mobilizam técnicas de fazer sumir, que são parte integrante de uma ampla maquinaria da produção de morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia política na luta por direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é publicamente aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tempos sombrios – de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a resolução de conflitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins –, o presente dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abominável que marca as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais.
Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.