Sionismo e a dificuldade de furar as bolhas no Brasil
Ao lançarmos a divulgação do nosso Seminário no Instagram, começamos a receber uma série de manifestações hostis desqualificando o evento, como se ao propormos um debate sobre uma das expressões do sionismo no Brasil – o sionismo cristão – estivéssemos fazendo uma defesa da geopolítica do atual Estado de Israel
Instigado pelo crescente interesse dos evangélicos brasileiros por Israel, um grupo de cientistas sociais que realizam pesquisas em diferentes universidades – UFRJ, UFPE, UERJ, Unicamp e Wilfrid Laurier University – sobre a relação da religião com a política elaborou em 2019 um projeto de pesquisa sobre o Crescimento do Sionismo Cristão na América Latina, com foco em Brasil e Guatemala. A equipe, liderada pelos professores Joanildo Burity e Paul Freston, tem recebido financiamento da Fundação Joaquim Nabuco, para a realização de um estudo comparando o desenvolvimento do fenômeno no Brasil e na Guatemala, e da Sociedade Internacional de Sociologia da Religião, para a realização de um Workshop Internacional. Esse evento em formato híbrido no Rio de Janeiro, em 2021, com ampla participação de especialistas internacionais sobre a temática. Em 2022, parte da equipe viajou à Guatemala para realizar entrevistas e coletar dados, assim como apresentou trabalhos em congressos nacionais e internacionais. Artigos do grupo também foram publicados em revistas acadêmicas brasileiras, jornais e sites especializados e, no prelo, o Dossiê Sionismo Cristão na América Latina e suas múltiplas dimensões (Revista da ACSRAL). Finalmente, a equipe propôs a realização de um evento em novembro de 2023 na Universidade de Brasilia (UnB) para apresentar os resultados da investigação e dialogar não só com acadêmicos, mas também com atores políticos e agentes estatais interessados no ativismo político pró-Israel desenvolvido pelos evangélicos.
Os preparativos do evento estavam em andamento quando ocorreu o ataque do dia 7 de outubro em Israel, desencadeando uma forte reação do governo de extrema-direita encabeçado por Benjamin Netanyahu. No mundo inteiro, começou também uma cizânia, com setores sociais e alguns importantes governos se posicionando “a favor do direito de defesa de Israel” ou “pelo direito de os palestinos resistirem ao colonialismo imposto pelos líderes judeus nas últimas décadas na região”. Nos Estados Unidos, universidades como a de Columbia começaram a cancelar eventos acadêmicos e suspender grupos de discussões, como Voz Judaica pela Paz e Estudantes pela Justiça na Palestina, temendo a reação dos doadores judeus. Também no Brasil os embates surgiram nas páginas dos jornais, nas redes sociais e nas universidades com mal-entendidos envolvendo docentes judeus e muçulmanos, assim como alunos de diferentes universidades.
Ao lançarmos a divulgação do nosso Seminário no Instagram, começamos a receber uma série de manifestações hostis desqualificando o evento, como se ao propormos um debate sobre uma das expressões do sionismo no Brasil – o sionismo cristão – estivéssemos fazendo uma defesa da geopolítica do atual Estado de Israel, que, sem dúvida alguma, vem causando danos irreparáveis ao povo palestino. As reações desmedidas na mídia social, algumas com ameaças aos organizadores, expressavam uma incompreensão tanto da nossa proposta de discussão da pesquisa como do próprio fenômeno sionista. Se nos Estados Unidos algumas instituições suspenderam atividades acadêmicas com temáticas relacionadas à Palestina por temor de que fossem interpretadas como manifestações anti-semitistas e afetassem as doações, as reações à divulgação do nosso encontro sugeriam que o evento tinha um teor negativo para os palestinos. Diante de tanta incompreensão, a equipe de investigação achou melhor adiar a atividade acadêmica, para que o debate não fosse contaminado pelo contexto de intolerância instalado nas bolhas políticas do país.
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Deve-se esclarecer que múltiplas são as formas de sionismo e mesmo na comunidade judaica existente no Brasil existem setores de esquerda que questionam os descaminhos autoritários e o projeto colonizador de Israel na região da Palestina. Vários intelectuais judeus vêm travando esse debate na mídia e nas universidades. Nosso interesse é mais circunscrito e diz respeito ao filossemitismo, à judaização de igrejas evangélicas e ao ativismo político de setores cristãos pró-Israel, que cresceu significativamente nos últimos anos. O movimento do sionismo cristão tem uma racionalidade e os evangélicos que a ele aderem encontram justificativa para a ação política em diferentes formulações teológicas associando os fatos históricos que envolvem os judeus com a instalação do Reino de Deus e com a realização de profecias bíblicas. Analisar criticamente esse movimento do sionismo cristão em um contexto de crescimento da representação evangélica na população brasileira e guatemalteca, ao contrário do que fabularam os que atacaram a realização do evento, pode contribuir para identificar e esclarecer as redes transnacionais que sustentam a geopolítica de Israel e recrutam apoiadores cristãos nos Estados Unidos, Europa e América Latina. No entanto, para avançarmos nesse debate é preciso desarmar os espíritos e ouvir uns aos outros, sem pré-julgamentos sumários.
O evento está adiado. Mas a sua realização é uma obrigação inerente ao nosso fazer científico. Por isso aguardamos o momento oportuno para publicitar os nossos achados e debatê-los, pois é assim que a ciência avança.
Maria das Dores Campos Machado é pesquisadora e professora aposentada da UFRJ.
Joanildo Burity é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e professor da UFPE.
Paul Freston é professor Emérito da Wilfrid Laurier University
Cecilia L. Mariz é professora voluntária do PPCIS da UERJ.
Brenda Carranza é professora pesquisadora no Departamento de Antropologia Social da Unicamp e professora visitante do PPGHS-FFP/UERJ.