Sionismo e antissemitismo
Tensão entre sionismo e neonazismo também está na base do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, que inspira o presidente brasileiro.
O neonazismo está na ordem do dia. Em fevereiro, o podcaster Monark defendeu a existência de um partido nazista, o que mobilizou o debate nacional por aqueles dias. Logo depois irrompeu a guerra na Ucrânia, quando nos tornamos mais familiarizados com as organizações neonazi naquele país – e nos demos conta de que uma delas, o Batalhão Azov, passou a integrar as forças armadas ucranianas em 2014.
Mas quero me ater aqui não ao neonazismo, e sim ao tema correlato da tensão entre sionismo e antissemitismo interna ao grupo de ideologias e atores que são suporte ao bolsonarismo.
Israel foi um dos países mais citados por Jair Bolsonaro ao longo de sua trajetória parlamentar. Há alguns anos as bandeiras israelenses – levantadas até mesmo por muitos não judeus – povoam as manifestações de direita no Brasil. Pouco depois de anunciar a pré-candidatura à Presidência, o político se batizou nas águas do Rio Jordão.
Foi precisamente no Clube Hebraica do Rio de Janeiro que Bolsonaro falou da fraquejada e que mediu quilombolas em arrobas. O candidato tinha como proposta transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. Eleito, declarou que retiraria a embaixada da Palestina do Brasil, por não a considerar um país. O próprio embaixador de Israel no Brasil, até 2021, era amigo de Bolsonaro e um de seus principais aliados. “Eu amo Israel”, disse Bolsonaro, em hebraico, ao lado do “irmão” Netanyahu.
De outro lado… há muita coisa. Já em 2015 Bolsonaro posou para foto ao lado de um sósia de Adolf Hitler.
Michel Gherman, coordenador do Instituto Brasil-Israel, alerta que com a eleição de Bolsonaro o Brasil teria se tornado uma “Disneylândia do neonazismo”.
Sara Winter, que buscava “ucranizar o Brasil”, criou o “grupo dos 300”, que organizou ação contra o STF em favor de Bolsonaro em 2020, com uma estética que inclusive remetia indiretamente à Ku Kux Klan.
Roberto Alvim, então Secretário de Cultura do Governo Bolsonaro, no começo daquele ano, gravou vídeo oficial parafraseando ninguém menos que o famigerado ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. Ernesto Araújo, à época chanceler, comparou as medidas de restrição decorrentes da Covid-19 com o Holocausto. Abraham Weintraub, quando ministro da Educação, fez analogia de operação da Polícia Federal à Noite dos Cristais de 1938.
Em 2021 Bolsonaro encontrou-se com a deputada alemã Beatrix von Storch, neta de Lutz Graf Schwerin von Krosigk, ministro das Finanças de Hitler. Posou com ela para foto, abraçados e sorrindo.
Os fatos levaram a manifestações públicas de repúdio de entidades israelitas brasileiras.
Essa mesma tensão entre sionismo e neonazismo está na base do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, líder que inspira o atual presidente brasileiro.
Trump transferiu efetivamente para Jerusalém a embaixada norte-americana em 2018. Em 2019 reconheceu a soberania de Israel sobre as Colinas Golã, área em disputa entre aquele país e a República Árabe Síria.
Mas na base de Trump está também a alt-right, que pode ser entendida, num sentido amplo, como extrema direita, ou no sentido mais estrito como a sua corrente supremacista branca. O líder do movimento, Richard B. Spencer, chegou a saudar publicamente o ex-presidente com nada menos que “Hail, Trump” em 2016.
Em 2017, quando a alt-right se reuniu em Charlottesville com bastões e bandeiras neonazistas e se confrontou com manifestantes antirracistas (levando inclusive à morte uma mulher, atropelada por um carro conduzido por um simpatizante neonazi), Trump deu declarações brandas que foram consideradas como um apoio aos extremistas de direita.
Como se explica esse mosaico cheio de contradições?

A centralidade do tema de Israel para Trump e Bolsonaro se deve, em grande medida, à relevância das bases cristãs a seus mandatos e por conta do sionismo cristão – movimento de evangélicos que, por motivos teológicos, contribui para o processo de apoio ao Estado de Israel. Maria das Dores Machado, Cecilia Mariz e Brenda Carranza publicaram artigo recente destrinchando o tema.
Na campanha de 2018, por exemplo, representantes da direita cristã norte-americana, ligados a Trump, vieram ao Brasil pedir votos a um candidato que defendesse a causa de Israel – sugerindo o apoio a Bolsonaro.
Mas há motivo adicional para essa predileção. Os colaboradores do Instituto Brasil-Israel, Fábio Zuker e Pedro Beresin, registram que Bolsonaro mobiliza a judaicidade como signo de pertencimento a um grupo influente e poderoso. Para os autores, “ele usa e abusa de um imaginário antissemita: faz crer que a proximidade com judeus o torna aliado de um grupo seleto, com enorme capacidade de controlar o poder e manipular a realidade”.
E por que autoridades de Israel demostram apoio a Bolsonaro?
Les Field, professor de antropologia da Universidade do Novo México, dá uma pista. Embora ele não se dirija ao caso do Brasil – ele trata dos Estados Unidos sob Donald Trump, da Hungria sob Viktor Orbán e da Argentina sob a ditadura de 1976–1983 –, o autor afirma que os governos de Israel várias vezes mantêm relações com Estados em que prevalece uma política antissemita.
Em outras palavras, Israel separaria o antissemitismo doméstico desses países e políticas externas pró-Israel.
Para Field, a lógica é a de que, para Israel, os judeus se afirmariam em sua judaicidade apenas quando retornassem, da diáspora, para o Oriente Médio; de modo que Israel, em vez de se tornar um defensor do povo judeu em todos os lugares, privilegiaria alianças políticas, econômicas e sociais que fortalecessem o poder do Estado de Israel. Seria quase um “judaísmo em um só país” substituindo o judaísmo permanente.
E por que os judeus brasileiros apoiam hegemonicamente Bolsonaro?
A premissa dessa pergunta é falsa. Não há estudo que indique que os judeus, mais do que algum outro grupo demográfico brasileiro, apoie Bolsonaro. É preciso registrar também que no Hebraica do Rio, judeus protestaram do lado de fora; e o Hebraica de São Paulo recusou-se a receber Bolsonaro em suas dependências. Judaísmo e sionismo, diferente do que pode parecer à primeira vista no Brasil de hoje, não são sinônimos de direita.
Os antropólogos Michel Gherman (já citado acima) e Misha Klein sustentam que grupos conservadores da comunidade judaica brasileira, notadamente a partir de 2013, não mais que reproduziram lógicas que hegemonizaram as camadas médias urbanas – não se diferenciando, portanto, por pertencimento religioso ou sociocultural.
Ben Lorber ajuda a entender um pouco mais o relevo acidentado.
Para o analista, parte da extrema direita nos Estados Unidos estaria profundamente dividida sobre a questão de Israel. De um lado, Israel teria se tornado um símbolo de um conjunto de valores a respeito de nacionalismo, cristianismo e até “orgulho branco”.
Nessa visão, Israel representaria uma elite superior e mais civilizada, e mesmo uma espécie de arquétipo primordial, incorporando um ideal religioso-nacionalista enraizado na Bíblia que está na base do próprio Ocidente – também nesse sentido argumentam os pesquisadores Amílcar Barreto e Hyung Jin Kim.
De outro lado dessa divisão, para Lorber, muitos nacionalistas brancos nos Estados Unidos ansiariam por um mundo onde cada “raça” ocupasse seu próprio etnoestado homogêneo – e o sionismo representaria, para eles, a aplicação direta desse princípio.
Na base de Bolsonaro e de Trump está um ambiente heterogêneo da direita, que tem contradições internas como qualquer grande campo político. Certamente essas tensões, sejam as mais gerais, seja essa especificamente, ainda serão objeto de estudos nas ciências sociais, que no Brasil e no mundo vêm se esforçando para decifrar nuances da onda direitista que atravessa oceanos.
Marina Basso Lacerda é doutora em Ciência Polícia e autora do livro O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk, 2019).