Sítios arqueológicos negros conectam São Paulo e Salvador na luta por passado, presente e futuro
Descobertas no Bixiga e no Campo da Pólvora, ocorridas nos últimos anos, podem representar a chance de nos reavermos com uma história que precisa ser conhecida.
Abril de 2022 – maio de 2025. Três anos separam dois eventos que a força da existência impulsiona para cima da terra, que dialogam e contam a história de um povo. É sobre dor, mas também é sobrevivência e resistência. É sobre o passado, mas também é o presente e é o futuro.
O Sítio Arqueológico Quilombo Saracura Vai-Vai foi descoberto quando do início das obras do metrô em São Paulo, Linha 6 Laranja, às margens da Avenida Nove de Julho, sobre o rio Saracura que, mesmo soterrado, persiste fluindo suas águas sob o solo. Sua descoberta não foi comemorada, tampouco visibilizada, tendo sido a comunidade, após importante alerta, aquela quem trouxe aos holofotes o achado. Achado esse que não tinha o nome do quilombo, que sabidamente, seja pela história oral contada de avós para netos na comunidade, seja pela pesquisa científica realizada por historiadores, antropólogos, arqueólogos, urbanistas já era de conhecimento de que no Bixiga existira um Quilombo.
Em três anos a escavação arqueológica, que vem sendo feita sob olhar vigilante e participativo da comunidade do Bixiga organizada no Movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai, já conta com mais de noventa mil peças encontradas. Objetos que, devidamente pesquisados, permitirão o saber sobre a história do povo negro que ali viveu. Que lugar era aquele onde tantos artefatos de religião de matriz africana foram achados? Entre conchas de mar, louças desenhadas, partes de quartinhas, contas e imagens de orixás, onze autoridades religiosas que visitaram o sítio afirmaram categoricamente tratar-se de um espaço sagrado religioso, que pode trazer conhecimento sobre práticas talvez, inclusive, desconhecidas. Para além disso, como vivia quem ali residia? Qual seu cotidiano? Com o que trabalhavam? E como foi essa saída que deixou tantos objetos importantes, que numa situação “normal” nunca seriam deixados para trás? E, como evitar que isso não aconteça novamente? Como dissemos acima: é sobre o passado, mas é sobre o presente.
O Bixiga, e não só ele, é perpassado por ondas de chegada de “desenvolvimento” marcadas por expulsões da população pobre e preta que invariavelmente é obrigada a procurar moradia em regiões afastadas dos centros comerciais e financeiros. Apesar disso, aqui ainda resiste um povo de tez escura e ancestralidade africana, organizando-se de maneira forte e contundente na cultura, no samba, na capoeira, na religião e numa lógica de interação comunitária marcada pelo estar junto e celebrar a vida. O samba, com a escola centenária e suas rodas, a capoeira, as festas, e o ritual de limpeza da rua treze de maio são exemplos de atuações de rExistência, referências práticas de um quilombo que persiste.

Um cemitério. É forte o impacto da notícia. As manchetes chamam atenção para aquele que pode estar entre os maiores cemitérios de escravizados da América Latina: a estimativa inicial é de que se encontre por volta de cem mil, sim, isso mesmo, cem mil ossadas. Uma dor lancinante perpassa o peito. Impossível evitar as lágrimas.
Em Salvador, bem em seu centro, onde encontra-se o estacionamento do Complexo da Pupileira, hoje um cerimonial de eventos, uma faculdade, o arquivo histórico e a administração da Santa Casa, a pesquisadora Silvana Olivieri, doutoranda em Urbanismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA) utilizou mapas e plantas do século XVIII e relatos históricos para descobrir a localização atual do cemitério Campo da Pólvora, um local que funcionou por aproximadamente 150 anos e era destinado a africanos escravizados e outros grupos socialmente excluídos.
Após a descoberta a pesquisadora e o professor Samuel Vida, coordenador do programa de Direito e Relações Raciais da UFBA, encaminharam um dossiê ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) onde apontaram o provável perímetro do cemitério e solicitaram apoio institucional para a realização de uma pesquisa arqueológica no local. E foi isso que se iniciou no dia 14 de maio, com a realização de um ato interreligioso, em memória às pessoas sepultadas no local e aos ancestrais que resistiram à escravidão. Esta data marca os 190 anos da morte de mártires da Revolta dos Malês, que inclusive foram também ali enterrados.

O cemitério encontrado não era um segredo, sua existência era sabida, no entanto, assim como em São Paulo (Cemitério dos Aflitos) ou Rio de Janeiro (Cemitérios dos Pretos Novos e de Santa Rita) a invisibilização e desprezo pela história do povo negro continuam a ser a tônica instaurada principalmente nas instituições estatais.
João José Reis, historiador e professor da UFBA, no livro A morte é uma festa (1991) relata que o cemitério do Campo da Pólvora possuía valas comuns e superficiais, o que deixava os corpos à mercê de animais, cabendo, na época, aos responsáveis pela limpeza pública enterrar esses cadáveres: “(…) corrupção nos ares, ou os cães despedaçarem os corpos como se tem achado por várias vezes (…) O enterro de africanos pagãos equivalia, sem meias palavras, à remoção de lixo. A preocupação em enterrá-los bem não objetivava dar-lhes sepultura decente, mas evitar a disseminação de doenças. Com o passar do tempo, o Campo da Pólvora, já sob o comando da Santa Casa, se tornaria o destino da maioria dos escravizados mortos na Bahia, fossem pagãos ou não.”
O cemitério do Campo da Pólvora – registrado pelos arqueólogos como “Cemitério dos Africanos”, “Cemitério dos Africanos do Campo da Pólvora” ou “Antigo Cemitério do Campo da Pólvora” – foi o destino de milhares de pessoas: pobres, revoltosas, escravizadas, e também líderes de revoltas que buscavam uma sociedade com justiça e sem escravização como a dos Malês ou a dos Búzios. Sim, a escravização no Brasil é algo tétrico que precisa ser contado. Faz-se necessário falar sobre o genocídio do povo africano cometido em nossas terras. O número de africanos escravizados trazidos para o Brasil é estimado em 5 milhões de pessoas, entre os séculos XVI e XIX.
É imprescindível realizarmos uma volta ao passado para descortinar as atrocidades da escravidão: navios tumbeiros, sequestro, grilhões, fome, trabalhos forçados, ausência de dignidade mesmo frente à morte: certeza de todos nós. Tudo isto devidamente instaurado na prática estatal. Não, não há justificativas econômicas que deem conta de tamanha crueldade.
Os sítios arqueológicos do Saracura Vai-Vai e do Cemitério Campo da Pólvora não são apenas descobertas arqueológicas, detentoras de uma história do passado. Os sítios arqueológicos podem representar a chance de nos reavermos com uma história que para ser ultrapassada precisa ser conhecida. História de um povo que compõe o país, que o construiu em meio a tanta dor e dificuldade, trazendo conhecimentos vários: do ferro à arte de levantar paredes, do cio da terra aos saberes dos céus, a religiosidade africana ponto fundamental na identidade cultural brasileira.

No Bixiga, bairro no centro da mais rica capital do país, a oportunidade de conhecer como as pessoas viviam, seus jeitos e modos, suas crenças e atividades. Em Salvador, a imprescindível obrigação de tirar da invisibilidade uma história real que continua significando nossas realidades, objetiva e subjetivamente.
É sobre ontem, para que hoje reescrevamos a história e possamos ter um outro, fraterno, solidário e igualitário, amanhã.
Rosemeire Almeida é socióloga e integrante do movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai.