Situação de rua e os desafios para os candidatos às prefeituras
Estar em situação de rua não apenas é resultado da violação do direito humano a uma moradia digna, mas representa com contundência a violação de uma série de direitos. Nesse sentido, a inter-relação entre o direito a uma moradia digna e outros direitos é indiscutível,Alderon Costa e Rose Barboza
Este artigo não visa apresentar soluções prontas para a situação de rua. A complexidade e extensão da questão, a diversificação territorial, o número de pessoas em situação de rua e os orçamentos de cada cidade são dimensões que devem ser consideradas na proposição de políticas públicas fundamentadas na consolidação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), nas normativas do Conselho Nacional de Assistência Social (Cnas) e nas diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída pelo Decreto n. 7.053, de 23 de dezembro de 2009, e respeitando os compromissos assumidos em pactos e tratados internacionais de direitos humanos dos quais o país é signatário, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Situação de rua como violação de direitos fundamentais
Viver em situação de rua significa estar exposto a múltiplas violências e discriminações. É conviver com permanentes violações aos direitos fundamentais e, entre outras coisas, significa ter problemas para dormir, alimentar-se ou chegar ao trabalho todos os dias no mesmo horário. Significa constantes obstáculos para manter relações com amigos e/ou familiares. E lidar cotidianamente com limitações para satisfazer necessidades básicas, como acessar banheiros ou beber um copo de água potável. A médio e longo prazo, os resultados físicos e psíquicos de tal experiência são extenuantes, e fatores externos como leis e políticas de controle do espaço público colocam diariamente em risco a vida de quem está nessa situação.
Em outras palavras, estar em situação de rua não apenas é resultado da violação do direito humano a uma moradia digna, mas representa com contundência a violação de uma série de direitos. Nesse sentido, a inter-relação entre o direito a uma moradia digna e outros direitos é indiscutível, uma vez que ter um teto salvaguarda outros direitos, como a privacidade, a autodeterminação e o desenvolvimento pessoal e coletivo. Por isso é que costumamos dizer que, ao levarmos em conta o marco dos direitos humanos, a situação de rua ao mesmo tempo representa a consequência de diversas violações e a causa de violações posteriores.
A situação de rua e os fatores sistêmicos
Embora estejamos acostumados à ideia de que a situação de rua não nos diz respeito como sociedade, esse é um equívoco comum. A situação de rua não é obra do acaso nem reflexo de algum tipo de fracasso pessoal, ou uma questão voluntarista, em que supostamente alguém estaria na rua por vontade própria. Tal situação encontra suas raízes em um modo de acumulação altamente desigual, que distribui seletivamente recursos, ao passo que veda o acesso igualitário aos direitos. Embora as dimensões sociais e políticas da situação de rua sejam frequentemente invisibilizadas, são políticas ativas de distribuição de renda, uso do solo urbano e acesso à terra, políticas de emprego e educação que têm sido responsáveis nos últimos anos pelo aumento na quantidade de pessoas que são obrigadas a sobreviver nas e das ruas.
Quanto mais desigual é a estrutura de uma sociedade, maior é a vulnerabilidade das pessoas que se encontram nessa situação. Por exemplo, em 2003, na cidade de São Paulo, foram contadas 10.399 pessoas em situação de rua. Apenas doze anos depois, em 2015, 15.905 pessoas se encontravam nessa situação, um aumento de mais de 65%. Se analisarmos atentamente os condicionantes políticos e o contexto financeiro da cidade, no mesmo período, veremos que políticas públicas e leis municipais e estaduais incentivaram a concentração de renda, o aumento de aluguéis e do valor do solo e os despejos forçados em áreas de interesse do mercado imobiliário. Além disso, percebemos uma queda brusca no incentivo público à fixação de empresas e a retirada de benefícios e subsídios a pequenos e médios empresários, que culminaram no aumento dos índices de desemprego. Também é possível notar o incremento do poder punitivo do Estado, traduzido no aumento do encarceramento arbitrário de pessoas em situação de rua, na militarização das guardas civis metropolitanas e na repressão a manifestações públicas.
Tal situação, entretanto, não está mais restrita aos grandes centros urbanos do país e seus centros comerciais e financeiros. As periferias e as pequenas cidades veem hoje o aumento de pessoas em situação de rua. Essa realidade vai desde uma pessoa que dorme na praça, passando pela falta de abrigos adequados, violência policial – em particular a violência das guardas municipais –, até indivíduos que têm violado seu direito à saúde.
Sujeitos de direito, autonomia
e protagonismo
Um dos grandes desafios ao enfrentamento da situação de rua é reconhecermos essas pessoas como sujeitos de direitos, resistentes em suas lutas por sobrevivência e dignidade, sem descuidar do fomento à autonomia e ao protagonismo. Isso porque a experiência e o trabalho conjunto com pessoas com trajetória de vida nas ruas, movimentos sociais, organizações sociais, Defensoria Pública, Ministério Público, além da construção de espaços participativos e conselhos de políticas públicas, nos têm levado a afirmar que, se por um lado, encarar a situação de rua com base na garantia dos direitos humanos enfraquece explicações morais que costumam culpar a vítima por sua situação, retirando autonomia e entregando-a ao assistencialismo, por outro, tem nos permitido revelar os padrões de desigualdade e injustiça que costumam negar às pessoas em situação de rua o acesso aos direitos e, assim, incentivado uma construção coletiva de saída das ruas, que aposta na autonomia e no protagonismo das pessoas como propulsores da transformação social.
Desafios
A maioria das pessoas em situação de rua já trabalhou, teve casa, conviveu em família, tem filhos, ou seja, tem a experiência de estar fora da rua. Todos passam por um longo processo até chegar à situação de rua. Nesse sentido, a saída da rua não acontece de forma simples e rápida e não está no controle do poder público ou das organizações. Estes têm a função de criar condições e possibilidades para que as pessoas possam sair das ruas.
As políticas públicas continuam conservadoras, não proporcionam transformação, tutelam as pessoas e não consideram a complexidade da situação. Tais políticas passam pela tentativa de solução imediatista e paliativa, como passagens para voltar para a cidade de origem, expulsão do centro da cidade, procura pela família e encaminhamentos para “casas de passagem”. Não há a busca de uma solução efetiva.
Embora muitas das reclamações recebidas pelos órgãos públicos se refiram à retirada de pessoas da frente de casas e lojas, vale lembrar aos candidatos e candidatas à prefeitura que a solução para a situação de rua não se encontra na criminalização autoritária e higienista de quem vive nas ruas. Uma solução efetiva passa pela realidade local, a inclusão de pessoas em situação de rua nos debates e desenhos de políticas públicas e iniciativas que rechacem a repressão e as respostas prontas.
Também não custa lembrar que há a necessidade de investimento em políticas públicas, inclusive com recursos federais e estaduais e dotação orçamentária municipal para que sejam introduzidas políticas de longa duração e com resultados efetivos que possibilitem saídas de longa duração.
O desafio central aos prefeitos e prefeitas é tirar a intersetorialidade do papel e fomentar políticas que dialoguem entre si. Moradia, trabalho, saúde, cultura, direitos humanos e assistência social têm de possuir uma sintonia fina de trabalho, com fluxos claros de acolhida, conhecimento, construção, encaminhamentos e acompanhamento por tempo indefinido.
É importante ressaltar que, por meio de um olhar atento ao que ocorre nas ruas, a demanda mais importante no campo das políticas públicas é haver um lugar de suporte, onde se possa dormir, guardar pertences e ter uma referência. Uma política de moradia permanente, na linha do interesse social, precisa ser desenvolvida para que as pessoas recuperem sua autonomia e sejam acompanhadas por profissionais capacitados. Uma política de moradia permanente também deve estar integrada à formação e criação de alternativas de trabalho e à assistência médica.
Por autonomia e acesso aos direitos
Como argumentamos, a situação de rua é uma grave violação de direitos humanos. É uma situação complexa, e mudar esse quadro exige vontade política, dotação orçamentária, formação permanente e gestão eficiente que conte com permanente monitoramento e articulação com todos os órgãos possíveis, inclusive defensorias públicas e Ministério Público. Levando-se em consideração esses aspectos, vale sublinhar que não há solução efetiva ou transformação social sem participação de pessoas em situação de rua no desenho dessas políticas.
Assim, deixamos aos candidatos e candidatas algumas sugestões e recomendações, frutos de um trabalho coletivo que vem sendo construído em todo o Brasil com a participação de vários atores sociais.
1. É preciso criar e priorizar políticas de moradia permanente como o primeiro passo para a saída das ruas.
2. A política pública precisa ser referendada na diversidade de questões levantadas pelos estudos e a experiência acumulada pela sociedade. Deve ter metas, objetivos e prazos claros e realizáveis durante o mandato.
3. A política pública precisa levar em conta a complexidade dos processos sociais e estruturais que levam as pessoas à situação de rua, ter respeito ao seu tempo, possibilitar sua saída ou sua permanência com dignidade.
4. Dada a heterogeneidade das pessoas que vivem em situação de rua, é necessário criar e colocar em prática políticas públicas transversais atentas às questões de gênero e raça. De acordo com os últimos censos realizados, a maioria da população que vive nas ruas é negra, e o número de mulheres em situação de rua e LGBTT tem aumentado sensivelmente, criando novos desafios e exigindo políticas adequadas.
5. É preciso desenvolver e monitorar programas de formação permanente aos funcionários públicos, incluindo a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana (GCM), extensivos aos profissionais das organizações sociais na área social e dos direitos humanos.
6. Deve-se criar mecanismo autônomo de controle externo às atividades da GCM com participação da sociedade civil, tal como ouvidoria externa.
7. É preciso abolir os despejos e as reintegrações de posse, em particular nos imóveis de propriedade das prefeituras, responsáveis nos últimos anos por um incremento no número de pessoas em situação de rua.
8. É preciso criar e fortalecer formas de participação da sociedade civil no controle e introdução de políticas públicas para as pessoas em situação de rua com a indicação de dotação orçamentária e a instalação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (Ciamp/RUA) em todos os municípios, conforme prescreve a política nacional.
9. É preciso criar e colocar em prática políticas públicas articuladas de saúde, educação, assistência social, habitação, geração de renda, emprego e trabalho, de forma intersetorial e transversal, garantindo a estruturação de rede de proteção às pessoas em situação de rua.
10. A situação de rua não é algo isolado, mas reflexo da forma desigual como nossas sociedades estão organizadas. Enfrentar a situação de rua passa pela universalização de políticas sociais de caráter estruturante.
Alderon Costa é ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Rose Barboza é pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.