Soberania comunitária haitiana: alternativa contra o arranjo realista-liberal do Conselho de Segurança
Sexto artigo da série Haiti em foco discute os limites do multilateralismo a partir das contradições do Conselho de Segurança das Nações Unidas
Ao assumir a igualdade entre as nações, o multilateralismo implicitamente se recusa a discutir e resolver as relações de poder entre os países. Também não problematiza as novas formas de imperialismo, de hegemonia e de contra hegemonia. Em mais de um século de existência, persegue objetivos frágeis. As consequências desse projeto, cujos mentores eram personalidades declaradamente racistas e sexistas, como Woodrow Wilson, projeta amargas consequências sobre países negros e sobre as mulheres. As evidências podem ser vistas no território haitiano, escolhido como uma espécie de “laboratório” das chamadas Missões de Paz das Nações Unidas, somando, no intervalo de três décadas, dez missões aprovadas sob a égide do Capítulo VII da Carta da ONU, portanto, com autorização do uso da força. A reiterada suspensão da soberania do Haiti o infantiliza e inviabiliza a derrocada do colonialismo e da construção de um Estado Democrático de Direito. Como alternativa, apresentamos neste artigo a necessidade de fortalecimento do conceito de soberania comunitária, passível de ser acionada em resposta aos abusos da comunidade internacional no uso do Capítulo VII da Carta da ONU. Além das instâncias legais das Nações Unidas, o mecanismo de consulta aos povos que sofrem as intervenções armadas precisa ser acionado, tendo em vista que os chefes de Estado, por ausência de legitimidade e compromissos internacionais não ditos, não conseguem proteger seu povo, cabendo às organizações comunitárias o direito de defender a sua própria soberania e seu direito de existência, em conformidade com a defesa contra crimes contra a humanidade prevista do Tratado de Roma.

Criminalização da luta política pelo multilateralismo
A tentativa de eliminação de partidos políticos de esquerda e de organizações populares na América Latina tem sido uma agenda prioritária de diversos governos locais e, no caso específico do Caribe, contou, ao longo da história do século XX e XXI, com o suporte logístico da Organização dos Estados Americanos e do Conselho de Segurança das Nações Unidas, demonstrando a multiplicidade de vezes em que o multilateralismo serviu a interesses imperialistas. A Missão de Estabilização Civil do Haiti (Minustah), no intervalo entre 2004 a 2017, dissolveu o Partido Lavalas, retirou o então presidente Aristide do poder e prendeu seu primeiro-ministro Yvon Neptune que, sem mandado ou acusação formal, foi mantido na Penitenciária Nacional do Haiti por mais de dois anos consecutivos, obtendo liberação apenas por meio de decisão da Corte Interamericana dos Direitos Humanos.1 O cenário político pós-Aristide seguiu repleto de violações graves aos direitos humanos,2 assassinatos e prisões irregulares de, ao menos, 117 líderes políticos do partido Fanmi Lavalas3 ocorridas entre 2004 e 2006.
A participação ativa do Exército brasileiro – cujo principal expoente e primeiro líder da Minustah, general Augusto Heleno, enfrenta atualmente acusações formais de tentativa de golpe de Estado no Brasil – sufocou sob seu mandato manifestações populares e lutas comunitárias anticoloniais e antiracistas. Na prática, a missão serviu de acúmulo para a promoção de uma intervenção militar nas favelas do Rio de Janeiro, em 2018, com os mesmos métodos de violência política aplicados no Haiti. É importante destacar que 2018 foi marcado no Brasil por grandes manifestações populares dentro das comunidades cariocas contra a prisão do então ex-presidente Lula. No ano seguinte, todos os comandantes militares da Minustah, à exceção dos que faleceram e do general Elito, passaram a ocupar o poder no governo Bolsonaro.4
O Haiti foi utilizado pelo Exército brasileiro – sob suposta legitimidade do Conselho de Segurança – como um laboratório de práticas repressivas contra povos negros e seus métodos de insurgência aplicado nas favelas do Rio de Janeiro. A controversa responsabilidade regional propalada pela nova doutrina do Conselho de Segurança trouxe para o Brasil uma grande oportunidade de testar métodos repressivos contra os haitianos e contra a sua própria alteridade interna: negra e pobre. Com tanto tempo e recursos disponíveis (cerca de US$ 500 milhões ao ano), a inteligência militar brasileira ganhou total controle da Missão, relegando a diplomacia brasileira e até mesmo o controle regulatório do Conselho de Segurança a papel secundário. Iniciou-se então um processo de práticas repressivas no Haiti que, na prática, funcionou como uma simulação para uso doméstico no Rio de Janeiro em 2018. Assim, o Exército brasileiro planejava retomar o poder político em Brasília, desmoronando-o por dentro por meio do “combate à corrupção” e construindo um contexto político de “tipo ideal”, em termos weberianos. Sua participação ininterrupta no comando do componente militar da Minustah também correspondeu aos interesses do multilateralismo ao transformar o Haiti em laboratório de práticas repressivas ao ativismo político.
Logo no início da Minustah em território haitiano, de acordo com o Relatório de James Cavallaro,5 o Exército brasileiro apoiou diversas violações de direitos humanos em conjunto com a Política Nacional Haitiana: a mesma que provocou o estopim sem precedentes que fez o Haiti mergulhar em uma nova crise após o assassinato de presidente Jovenel Moïse, em 2021, e que culminou na aprovação de uma nova intervenção armada aprovada pelo Conselho de Segurança sob a presidência do Brasil em outubro de 2023: a Resolução 2699 do Conselho de Segurança, que autorizou o envio de tropas quenianas ao país para controlar as gangues na capital Port-au-Prince.
Concluindo com perguntas de investigação
Muito trabalho de pesquisa ainda está por fazer. É preciso que coletemos subsídios qualitativos a partir da experiência de organização das lideranças políticas do extinto partido político haitiano Lavalas, das lideranças políticas de Cité Soleil e dos parentes das vítimas de assassinato político sobre as quais a Minustah atuou violentamente. A partir de distintos lugares de fala, as estratégias de soberania comunitária e popular podem ser revisadas historicamente e recolocadas no futuro a partir de uma frente política contra o direito de ingerência imperialista. O conceito de soberania popular e comunitária precisa alcançar o status de referencial teórico para impedir que novas intervenções armadas contra populações negras sejam aprovadas, para indicar para as oligarquias locais que os povos não irão mais aceitar novas formas de controle político por meio da violência, tampouco a desarticulação internacional da organização dos movimentos populares nesses cenários. Entendemos que, na América Latina, a resistência é endêmica e compõe a estrutura de organização popular de todo o continente. Por esse motivo, a soberania popular e comunitária não desaparece, mas é herdada por outras forças políticas ao longo do tempo. Conhecê-la, etnografá-la, dar-lhe visibilidade, é também resgatar a memória de luta de grandes lideranças que as historiografias oficiais conscientemente invisibilizam e instruir as novas gerações a reorganizar a herança política de resistência na região, de modo a estarem atentas e articuladas para as novas tentativas de controle da região que já se articulam no plano multilateral ao longo do século XXI.
O acúmulo de subsídios para consolidar o conceito de soberania popular e comunitária proposto por Jean Casimir6 requer estratégias de investigação coordenadas com as leituras orgânicas de comunitarismo por meio das quais as Ciências Sociais podem amadurecer e construir em conjunto com as lideranças políticas populares uma plataforma unificada de luta contra o direito de ingerência amplamente consolidado na comunidade internacional e ratificado dentro do multilateralismo a partir do Capítulo VII da Carta da ONU.
Os partidos políticos de esquerda e as lideranças comunitárias que foram extintos por força de uma operação multilateral podem aproximar as Ciências Sociais de uma estratégia mais amadurecida no trato com os interesses imperialistas que estruturam o multilateralismo. Reconectar essas experiências é central para a consolidação do conceito de soberania comunitária e popular. Entendemos que o fio condutor que estrutura as lutas populares será capaz de traçar uma plataforma conjunta de luta, tendo em vista que líderes políticos e intelectuais haitianos entendem que podem cumprir um papel pedagógico para a América Latina de demonstrar aos povos negros excluídos do continente que é possível viver livre em uma terra que verdadeiramente os pertença, como é o caso da experiência de mais de dois séculos no Haiti.
Renata de Melo Rosa é diretora do Instituto Maria Quitéria (@instmquiteria – https://iquiteria.org/). Realizou pós-doutorado na Université D’État D’Haïti. E-mail: [email protected].
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O Haiti como prisma para a compreensão do passado e do presente
Nesta série especial, apresentamos estudos e reflexões sobre o contexto haitiano a partir de diferentes perspectivas (filosófica, histórica, política internacional, cultural, das migrações, etc.). E elas são tão variadas quanto os campos que reúnem os pesquisadores do grupo de pesquisa Haiti: descolonização e libertação – estudos contemporâneos e críticos. Registrado junto ao CNPq e sob a liderança da UNILA, o grupo reúne pesquisadores de diferentes instituições interessadas em investigar as lutas populares por soberania, o pensamento haitiano no contexto caribenho, continental e mundial e as migrações e a cooperação internacional.
Recentemente, o grupo publicou o livro Haiti na encruzilhada dos tempos atuais: descolonialidade, anticapitalismo e antirracismo [de acesso aberto e disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/haiti-na-encruzilhada-dos-tempos-atuais-descolonialidade-anticapitalismo-e-antirracismo/] Os capítulos publicados nessa obra são um esforço desse coletivo, que inclui pesquisadores haitianos, que se interessa e se compromete a contribuir com o conhecimento da sociedade brasileira e regional acerca da realidade haitiana, contra as intervenções estrangeiras e pelo reconhecimento da autonomia e soberania do povo haitiano. Os artigos publicados nesta série pretendem apresentar ao público brasileiro alguns achados dessas pesquisas.
Confira a seguir a relação completa de artigos da série seguida da sua data de publicação:
- Revolução, patrimônios difíceis e dignidade no Haiti, por Loudmia Amicia Pierre Louis (publicado em 8 de abril de 2025)
- Intervenções dos Estados Unidos no Haiti: a continuidade da violência sob o pretexto de paz, por Tadeu Morato Maciel e Sarah Rezende Pimentel Ferreira (publicado em 15 de abril de 2025)
- Triste lembrança e memória colonial da escravidão, tripla dívida da independência nacional, por Vogly Nahum Pongnon (publicado em 22 de abril de 2025)
- Movimento popular, mulheres, revolução haitiana e história da libertação latino-americana, por Carlos Francisco Bauer (publicado em 29 de abril de 2025)
- A cooperação internacional e o Haiti: assistência ou ingerência?, por Marina Bolfarine Caixeta e Roberto Goulart Menezes (publicado em 6 de maio de 2025)
- Soberania comunitária haitiana: alternativa contra o arranjo realista-liberal do Conselho de Segurança, por Renata de Melo Rosa (publicado em 13 de maio de 2025)
- O Movimento Constitucional Haitiano de 1801 a 1816 como precursor de um Constitucionalismo Emancipatório Amefricano, por Maria do Carmo Rebouças dos Santos (publicado em 20 de maio de 2025)
- A comunidade migrante acadêmica haitiana na República Dominicana, por Judeline Exume (publicado em 27 de maio de 2025)
- Colonialidade sem branquitude: entre dilema e desafio da integração do Haiti no Sistema-Mundo neocolonial, por Samuel Morancy (publicado em 3 de junho de 2025)