Sobre os rios de fumaça: crise climática, agronegócio e extrema direita
As enchentes no estado do Rio Grande do Sul e as queimadas (e seus “rios de fumaça”) que atravessaram o país são os principais exemplos de como a crise climática não é um problema do futuro
O ano de 2024 não acabou, mas certamente é um dos mais marcantes no que diz respeito a eventos climáticos severos no contexto brasileiro. As enchentes no estado do Rio Grande do Sul e as queimadas (e seus “rios de fumaça”) que atravessaram o país são os principais exemplos de como a crise climática não é um problema do futuro. Esse cenário articula um perigoso encontro entre elementos conjunturais da política e da economia brasileira (e mundial) com aspectos profundos de nossa formação socioeconômica.
Essa articulação forma um nó que tem asfixiado o enfrentamento profundo à crise climática no Brasil. Como esse nó será afrouxado (e quiçá desfeito) é questão central para definição das condições da vida humana na terra nos próximos anos.
Apropriação da natureza
Os setores proprietários rurais brasileiros têm entre suas características principais a intensa exploração do trabalho e da terra. Essas características atravessam a colonização e chegam ao Brasil contemporâneo com impressionante resistência.
No que diz respeito à terra, talvez o exemplo histórico mais relevante seja a (quase) completa destruição da Mata Atlântica. Anos de mineração intensa, monocultura de cana de açúcar e de café tornaram praticamente inexistente um dos mais diversos biomas do planeta, que atravessava o gigantesco litoral brasileiro e avançava centenas de quilômetros em direção ao centro do país.
Se essa relação do capitalismo com a natureza não é exatamente privilégio brasileiro, tampouco é irrelevante identificar que essa capacidade destrutiva da burguesia agrária no Brasil é central para compreensão das dinâmicas de nossa formação e relações contemporâneas.
O modelo agrário-exportador tem se intensificado nos últimos anos através do processo de desindustrialização e reprimarização da economia. Esse modelo, que tem origem nos grandes latifúndios de terra desde a época colonial, baseado na exploração do trabalho escravo, representou as principais disputas políticas também do início da república brasileira, através da rivalidade regional de tipos distintos de produção. Teve também sua tensão com o modelo do desenvolvimento industrial e o setor industrial, mas sua modernização durante a Ditadura Militar Empresarial, garantindo altas margens de lucro e um processo de financeirização, fez essa rivalidade se atenuar.
Atualmente, na divisão internacional do trabalho, onde o Brasil ocupa cada vez mais o papel de país exportador de commodities, a prevalência do Agronegócio na política brasileira é cada vez mais significativa, desenvolvendo uma disputa cultural de hegemonia dos valores da sociedade brasileira.
Há condições externas e internas para que o desenvolvimento de nossa formação tenha sido assim, mas o ponto central é que os setores proprietários nunca deixaram de ser apropriadores vorazes da natureza e sempre estiveram bem posicionados nas disputas políticas e institucionais no Brasil.
A principal questão é que hoje, para além da manutenção dessas características, esse setor passa a ser um dos sustentáculos políticos e sociais da extrema direita negacionista que se articula e ganha força internacionalmente.

Créditos: © Jader Souza/AL Roraima
Agronegócio e extrema-direita
Junto com as igrejas evangélicas e militares (e forças armadas em geral), as elites agrárias e os setores que elas organizam são hoje os grupos de sustentação social da política da extrema direita.
A bancada ruralista é hoje a maior bancada temática do Congresso Nacional, com 324 representantes na Câmara e 50 no Senado Federal e sua relação com a extrema direita não se encerrou com a derrota de Bolsonaro em 2022, ao contrário: em maio deste ano, a Frente parlamentar agropecuária se reuniu com o ex-presidente para reafirmar o compromisso de vetos de Bolsonaro à lei contra fake news e alterações à Lei de Segurança Nacional que aumentariam a pena de militares que atentarem contra o Estado Democrático de Direito.
Longe de ser uma aproximação pontual, a bancada ruralista também tem apoio dos demais setores da extrema direita. No início do presente ano, por exemplo, a Frente Parlamentar da Agropecuária, grupo que reúne parlamentares da Câmara e do Senado, indicou que suas prioridades em 2024 seriam a derrubada do veto de Lula ao PL do veneno (que faz com que agrotóxicos tenham que ser aprovados apenas pelo Ministério da Agricultura, não mais pelo IBAMA e Anvisa também) e a aprovação do Marco temporal como emenda constitucional.
Se, por um lado, a desregulamentação total das relações trabalhistas e ambientais parece ser um ponto de encontro óbvio, por outro é possível afirmar que essa relação é bastante mais profunda e articula um projeto de país autoritário, reacionário e ecocida.
Não à toa, são esses setores que estão em constante investida contra as Ministras Sonia Guajajara e Marina Silva. Além de terem como bandeiras fixas a luta pelo Marco Temporal (que o ministro Gilmar Mendes insiste em não reconhecer a inconstitucionalidade) e a perseguição a movimentos sociais do campo (com destaque para o MST) e de defesa do meio ambiente.
Essas investidas e bandeiras se associam a um modo de produção que envolve a monocultura, as queimadas (a ministra Marina Silva e Polícia Federal afirmaram publicamente a autoria da maioria dos incêndios é criminosa e que o combate às chamas foi dificultado violências físicas contra brigadistas), o desmatamento, o uso intensivo de agrotóxicos e a concentração de terra e renda.
Se esse comportamento, como apontado, não é novo entre as elites agrárias brasileiras, a força que apresenta na atual conjuntura e a necessidade de enfrentamento imediato à crise climática brasileira tornam a situação ainda mais preocupante.
Secas (o rio Madeira enfrenta a pior seca em 60 anos, por exemplo), incêndios, destruição de florestas tropicais, ondas de calor são situações graves no que diz respeito à crise ecológica que somente podem ser mitigadas se interesses do agronegócio forem enfrentados.
Ao se observar, por exemplo, o pantanal, os números são alarmantes. Segundo o cientista do clima Carlos Nobre, caso a situação se mantenha como está, o bioma será destruído até 2070 e na mesma data, metade da Amazônia terá sido destruída.
A temática do Marco Temporal continua sendo central para esse desenlace. As populações indígenas são as principais protetoras da floresta e da diversidade ambiental brasileira. A necessidade de saída dos povos indígenas da mesa de negociação do STF (já que o espaço caminha para aprovação do marco), e a chance de vitória do agronegócio na pauta com a continuidade da negociação mesmo após esse importante meio de pressão optado pela organização indígena, apontam para a possibilidade de uma derrota importante na proteção ambiental.
De igual modo, as queimadas criminosas ocorridas nos últimos dias no país inteiro, colocando o Brasil no lugar de um dos piores países do mundo em termos de qualidade do ar, com o tempo extremamente seco e esfumaçado, representam o quanto esse setor segue empoderado e sem freio na sua atividade ecocida. Mesmo durante o governo Lula, não se estabeleceu marcos fiscalizatórios capazes de impedir esses acontecimentos (ainda que melhoras significativas, em especial na Amazônia, sejam observadas).
Diante desse cenário, uma agenda de combate aos setores negacionistas de extrema direita do agronegócio é absolutamente necessária. Ou seja, sem o combate inegociável ao marco temporal, a fiscalização contra o desmatamento em todas os biomas (para isso, fortalecimento institucional do IBAMA é condição mínima, assim como o não asfaltamento da BR 319), alterações de matriz energética e políticas ambientais estruturadas e de reflorestamento. Essa agenda precisa, urgentemente, estar no centro político das lutas sociais e da disputa eleitoral na sociedade brasileira.
Lucas Zinet é Advogado, mestre em Direito pela UFMG.