Os riscos da extrema direita: autoritarismo, violência e corrosão da democracia
Num contexto de eleição de Trump nos EUA e de prefeitos como Pablo Marçal em São Paulo, que funciona como carta coringa das forças de extrema direita, a crítica dissidente voltaria a ser sitiada, assim como as instituições e culturas capazes de produzi-las
Os pilares de sustentação da democracia vieram ao chão nos Estados Unidos da América. Uma decisão da Suprema Corte, com maioria conservadora, passou a conceder imunidade judicial aos presidentes da Casa Branca para cometer crimes, desde que atuem dentro de sua devida “Autoridade Constitucional”. Os Estados Unidos vivem uma forma de psicose política, econômica, cultural e social, evidente em políticas cruéis, neoliberais e de ódio à democracia; são graves episódios como esse que acabam passando desapercebidos pelo público em geral. Os crimes são naturalizados no cotidiano e se tornam rapidamente alimento para videogames e indústrias de Hollywood. Uma ideologia de dureza e crueldade atravessa a cultura norte americana como um raio, minando a força das relações sociais e de uma certa ética individual, humana. Tudo isso normaliza uma ecologia de crueldade e sadismo que promove uma “simbiose de sofrimento e espetáculo”.[1]
Bem-vindos ao Capitalismo Gangster. O mafioso ex-presidente dos Estados Unidos – Donald Trump – criminoso, condenado, nacionalista, radical, supremacista branco e aspirante a ditador, caso seja eleito nas eleições presidenciais de novembro de 2024, agora poderá ter respaldo legal da Suprema Corte para usar o seu poder “oficial” como justificativa perfeita para cometer os crimes necessários à implantação do seu plano de poder autoritário. As barreiras legais que sempre funcionaram como um limite de contenção do seu poder de destruição foram removidas. Justificando sua dissidência à decisão, uma das juízas alerta para as terríveis implicações que representa uma tomada de poder extraordinária deste tipo e caracteriza o caso como um exemplo flagrante de legalidade difamada. De acordo com a CNN – Cable News Network: “Quando o Presidente [dos Estados Unidos] usar os seus poderes oficiais de qualquer forma, segundo o raciocínio da maioria, ele estará agora isento de processo criminal. E assim, se ordena que a Marinha assassine um rival político? Imune. Organiza um golpe militar para manter o poder? Imune. Aceita suborno em troca de perdão? Imune. Imune, imune, imune”. Foi assim que nos EUA um Supremo Tribunal Federal corrupto, cheio de histórias de suborno, misógino, comandado por supremacistas brancos, acabou de colocar a democracia no mundo todo em risco. Lá na América do Norte, Trump está não só livre, mas solto. O estrago pode ser bastante grande e ainda maior que da primeira vez.
Imunidade significa neste caso impunidade. Entretanto, aqui não podemos deixar de fazer uma derivação pois, no caso do Brasil, a Justiça Eleitoral agiu muito rapidamente e puniu Bolsonaro proibindo-o de participar das eleições. Embora os fascistas de plantão possam sempre usar outros generais e capitães militares como marionetes do verdadeiro poder subjacente, o do capital internacional concentrado nas mãos de poucas famílias. Entretanto, não podemos desconsiderar que aqui no Brasil estamos vivendo também um momento político importante: nas cidades espalhadas por todo o país teremos a eleição de prefeitos e vereadores que representam as forças políticas locais. Infelizmente sabemos que aquela imunidade contra os crimes também é um privilégio de muitos políticos e empresários brasileiros.
A corrupção do sistema judiciário é um gravíssimo problema para a democracia pois multiplica a injustiça e a sensação de impunidade para os poderosos. Num contexto local de baixo crescimento econômico, desemprego, alto índice de subemprego, fanatismo religioso, nacionalismo patriarcal e baixíssima qualidade do projeto político pedagógico da educação no setor público, os riscos de crescimento dos governos de extrema direita se espalharem por todo o Brasil é real. E como consequência, um aumento do autoritarismo, explosão da violência e corrosão da democracia. Seria a municipalização da extrema direita e do “bolsonazismo”.
Para quem viveu o governo Bolsonaro no Brasil, uma versão bizarra de Trump nos trópicos, o tamanho do risco, comparativamente, seria mais ou menos como se tivéssemos agora no Brasil um governo Bolsonaro autorizado pelo Supremo Tribunal Federal a cometer crimes impunemente. Se ambos já cometeram vários crimes mesmo sem ter esse direito, e estão ambos respondendo por eles na justiça, imagine agora como essa imunidade, o governo se converteria rapidamente num absolutismo autoritário ansioso pela implantação de um regime ditatorial. Se antes, de algum modo, passavam pelo escrutínio moral da opinião pública com seus processos e julgamentos nos tribunais, agora teriam amparo legal e licença para matar. E não estamos falando no sentido figurado – isenção tanto para matar imigrantes latinos no Texas ou na Flórida como para matar indígenas e promover genocídio na etnia Ianomami na Amazonia brasileira. Financiados pela indústria de armas, empresários gananciosos e apoiados por forças conservadoras como a igreja pentecostal, as forças armadas e grupos nacionalistas radicais, estas figuras autoritárias são simplesmente exemplos da cara bizarra e medonha que o poder das forças de extrema direita opera em diversas partes do mundo. Por outro lado, as forças democráticas insistem e continuam demandando o diálogo permanente e problematizando o autoritarismo e a violência das formas de escravidão contemporânea.
Nos EUA, embora a troca de Biden por Kamala Harris no Partido Democrata dê alguma chance para que Trump e o Partido Republicano possam ser derrotados nas eleições presidenciais, a verdade é que a disputa eleitoral está muito acirrada e as pesquisas de intenção de voto confirmam que não há diferença estatística entre o candidato da extrema direita e a candidata do establishment na corrida para a presidência e o controle da Casa Branca. Há, portanto, um risco real de Trump vencer as eleições e vir a tomar posse. Neste caso, sabemos que a corrosão da democracia seria muito acelerada e que os serviços públicos que deveriam funcionar em nome da verdade, justiça e liberdade, seriam rapidamente desativados. Neste pesadelo os pilares dos direitos democráticos mais estruturantes poderiam voltar a ser minados. Os jovens voltariam a ser doutrinados em favor do nacionalismo, do colonialismo, do machismo e dos valores morais conservadores de família, tradição e propriedade. Níveis surpreendentes de desigualdade multiplicariam a miséria em massa, com a exploração dos trabalhadores e a repressão das forças de segurança. Por enquanto, há somente um grande risco de tudo isso acontecer, mas com o resultado das eleições de novembro, saberemos finalmente qual será o desfecho real desta tragédia.
Por aderência ao modelo do Império norte americano, as elites ignorantes e perversas da América Latina reproduzem a matriz ideológica e financeira com forças de extrema direita preparadas para copiar as técnicas, ferramentas e dispositivos utilizados para destruir o regime democrático. Sabemos o que decorre daí. Proibição de livros, perseguição de pensadores críticos e controle da população com impregnação de medo na subjetividade. É preciso recuperarmos exemplos das inúmeras ações de Trump, Bolsonaro e governos locais adeptos do regime ditatorial que seguem agindo nesse sentido. Precisamos resgatar a história dos crimes cometidos durante a pandemia de Covid-19, negando a ciência, promovendo fármacos sem efeito contra a doença e dificultando o acesso da população à vacina com discursos e ações organizadas por seus governos. Milhares de pessoas morreram sem necessidade na pandemia em ambos os países por decorrência de suas necropolíticas. Não se trata de retórica discursiva, mas de uma disputa acirrada entre civilização e barbárie, diálogo e força bruta, democracia e ditadura.
A força política da extrema direita, elitista e neofascista, está crescendo rapidamente em todo o mundo. Inculcando na cabeça da população a ideologia de que a democracia não funciona, estes movimentos radicalizam o discurso contra determinados grupos populacionais e difundem uma linguagem de violência que corrói os pilares da democracia e esgarça as relações sociais, aumentando a tensão, a repressão, os conflitos e o número de vítimas que se multiplica rapidamente. Ao colar a ideia de democracia e capitalismo, como se fossem sinônimos, se fortalece a ideologia de que o fracasso do capitalismo é o fracasso da própria democracia. A forma de governo passa então a ser responsabilizada pela miséria da vida cotidiana, escondendo a verdade mais explícita de que é a forma de produção que está esgotada. Desigualdade, miséria, fome, destruição do planeta, sofrimento humano, guerras. Assim, tudo o que na verdade é causado por esta versão contemporânea autoritária de capitalismo, o neoliberalismo, passa a ser atribuído à política, aos representantes eleitos pelo voto.
O ataque à democracia toma forma assustadoramente violenta quando passa do discurso retórico agressivo para a destruição física da infraestrutura onde a burocracia democrática opera. As Invasões ao Capitólio em Washington e à Praça dos Três Poderes no dia 08 de janeiro de 2023 em Brasília podem parecer cenas de filme de terror, mas são imagens reais que comprovam como os símbolos da democracia estão sendo atacados. Mesmo que posteriormente haja algum tipo de responsabilização jurídica aos indivíduos isolados que concretizaram as ações, os financiadores, ideólogos e poderosos por trás destes ataques nunca chegam verdadeiramente a ser investigados. O poder do capital internacional concentrado nas mãos de poucos, associado ao discurso autoritário, representam um risco real para a sociedade pois corrói os principais valores da democracia. E esse risco está disseminado por praticamente todos os países do continente americano – até mesmo em países de maioria progressista, como o Canadá, vemos o crescimento das manifestações de extrema direita com a captura do discurso sobre a liberdade.
Não podemos nos esquecer também dos inúmeros ataques às Instituições de Ensino e Pesquisa, ou o controle e censura que professores universitários e intelectuais sofrem em governos de extrema direita. Críticos que escrevem na mídia independente, artistas e diversos trabalhadores da cultura sofrem perseguições, são ilegalmente vigiados por órgãos de Estado e vivem baixo um regime de forte censura à produção e à circulação de suas ideias. Isso aconteceu nos EUA de Trump e no Brasil de Bolsonaro, mas segue acontecendo em diversas outras partes do mundo como na Argentina de Milei, no Congresso Fujimorista do Peru, na Turquia de Erdogan, em Israel de Netanyahu, e tantos outros exemplos espalhados pelo mundo em que a extrema direita tem chegado ao poder. Dezenas de professores, intelectuais progressistas e críticos que levantam a voz contra este crescente autoritarismo correm risco de vida e podem ser brutalmente assassinados como o jornalista Jamal Khashoggi, morto por denunciar o Príncipe da Arábia Saudita de assassinar opositores, escravizar e explorar trabalhadores asiáticos. Ou ainda o caso da Jornalista Shireen Abu Akleh da rede árabe AlJazeera que foi assassinada por militares de Israel ao retratar verdades sobre os ataques à população civil na Palestina.
Os riscos das eleições de 2024 são graves pois, num contexto de eleição de Trump nos EUA e de prefeitos como Pablo Marçal em São Paulo, que funciona como carta coringa das forças de extrema direita, a crítica dissidente voltaria a ser sitiada, assim como as instituições e culturas capazes de produzi-las. Sob um governo de lobistas fascistas, o pensamento crítico na educação pública e universidades será desestimulado, os problemas sociais serão criminalizados, a imprensa de oposição será perseguida, as mulheres perderão direitos, a comunidade LGBTTQIA+ será marginalizada e o Estado de bem-estar social se transformará num Estado de controle com dispositivos para Vigiar e Punir como descritos por Foucault. Assim como aconteceu no Brasil com o escândalo da ABIN Paralela envolvendo a família Bolsonaro, que vigiou e perseguiu dissidentes e dissonantes, tem também a CIA os seus próprios métodos.
No centro das práticas de um Estado autoritário e desonesto de extrema direita está uma guerra sistémica contra trabalhadores, jovens, negros e imigrantes com aumento da violência em massa. O Estado punitivo rapidamente transforma-se em Império do medo, dirigido por uma classe insensível, gananciosa e bilionária que destrói a democracia ao mesmo tempo que abraça a ideologia do nacionalismo autoritário. Com a decadência da política como diálogo e de um contrato social possível, passamos para uma nova fase da sociedade do espetáculo de Guy Debord, agora caracterizada também por rituais fundamentalistas nas redes sociais, espetáculos virtuais de massa, linguagem de extermínio da diferença e uma paixão psicótica por armas mortíferas e lucro no mercado de Bitcoins.
E ainda mais trágico para a democracia, se Trump for eleito, ele será capaz de instituir um sistema criminoso que poderá ser usado para exterminar oponentes, torturar imigrantes, prender os intelectuais e ativistas mais críticos ao seu governo e promulgar um conjunto de leis, normas e regulamentos editados pela extrema direita para controlar a sociedade e implantar um sistema autoritário que poderá vir a aniquilar o regime de democracia mais poderoso do mundo. Derrubada a peça da democracia nos Estados Unidos, como em um dominó enfileirado, o mundo ocidental poderia ver a queda em sequência de diversas outras democracias, caindo peça por peça. Falando assim, pode parecer muito trágico, mas não podemos nunca nos esquecer de que o governo Bolsonaro só foi possível no Brasil, porque houve antes um governo Trump.
Nenhuma destas hipóteses, dada a retórica de vingança e violência que Trump promete impor, deveria parecer impossível. Com o colapso dos freios e contrapesos que deveriam proporcionar um equilíbrio de poder, veremos um tsunami de barbárie e violência estatal se espalhar por toda a América Latina, animado pelos remanescentes da Itália fascista, do Chile sob Pinochet, da Alemanha nazista ou da ditadura militar brasileira com sua linha dura. A política fascista, que foi o ponto final de chegada do capitalismo moderno, com toda sua corrosão democrática, não é apenas uma questão histórica do passado. O fascismo não morreu na Itália, e enquanto ideologia higienista de limpeza étnica e controle populacional, infelizmente continua sendo um dispositivo poderoso na mão das corporações e dos governos que controlam grande parte do mundo. Parece que o ponto de chegada do neoliberalismo contemporâneo se encaminha para o neofascismo e a ditadura. Vivemos numa época em que “os horrores do passado estão muito mais próximos de nós do que gostamos de imaginar”. [2]
Se analisarmos com atenção, e observarmos as lições aprendidas com os governos Trump e Bolsonaro, podemos supor que, primeiro, emergirá uma série de estatutos e leis. À medida que for implementado, milhares de imigrantes serão detidos e colocados em prisões ou expulsos do país, dissidentes políticos serão colocados em privação de liberdade, certamente acontecerão alguns julgamentos espetaculares para animar a mídia de massa, distrair a população dos problemas e se financiará algumas ações repressivas e conservadoras no âmbito da cultura. Não podemos esquecer que o Ministério da Cultura foi extinguido no governo de extrema direita do Brasil. Em segundo lugar, todos os aspectos da vida social e do debate público serão militarizados, conduzindo a uma cultura de medo e de violência Estatal. A educação pública transformando-se em um conjunto de escolas e centros militares para doutrinação ideológica e disciplina populacional. Por trás disto estará a força legitimadora de uma ampla parcela totalmente corrupta do poder judiciário e do poder legislativo. Sempre, claro, atuando com todo seu aparelho estatal repressivo, incluindo a polícia, as forças armadas e até as agências de inteligência.
Com a morte lenta da justiça, a emergência de uma cultura de crueldade, o desprezo pelos que são considerados diferentes e o apagamento completo de quaisquer vestígios significativos do Estado de bem-estar social e da solidariedade coletiva, não é difícil imaginar o peso da profunda solidão que virá em decorrência. A corrosão da liberdade e da democracia como valores estruturantes da sociedade permitiram que uma crescente individualização e virtualização das pessoas seja a imagem de felicidade no centro do mundo neoliberal. O autoritarismo desenfreado poderá vir a se multiplicar sem quaisquer restrições, jurídicas ou políticas. Uma Era de centros de internamento e terrorismo de Estado disfarçados de entretenimento e reality shows, transmitidos diariamente nas redes sociais. Esta visão, embora pareça um tanto distópica, está claramente delineada no Projeto 2025 proposto pelas forças políticas de direita e extrema direita para um futuro governo Trump.
O neoliberalismo, com suas práticas gerenciais, padrões de produtividade e normas de disciplina, levam milhares de pessoas ao sofrimento mental, depressão e diversos outros problemas decorrentes da internalização de valores da sociedade de consumo. As redes sociais, como espetáculo contemporâneo da vida cotidiana, chamam atenção para o fato de que o modo de existir nesta sociedade autoritária, classista e racista, é um modo de existência alienado, pouco reflexivo, isolado, triste, que não satisfaz os desejos humanos e tampouco as necessidades sociais. Os valores partilhados foram substituídos não só por medos coletivos, mas também pelo colapso da formação política e do exercício da cidadania crítica. Funda-se um novo sistema de valores, em que a intimidade e a compaixão, outrora centrais à vida pública, desaparece, e é substituído pelo discurso da meritocracia, performatividade, gerencialismo e produtivismo. As pessoas assim vão se transformando em cadáveres, marionetes, súditos devotados à adoração do dinheiro, da violência e da ganância.
O pensamento crítico tornou-se perigoso, com universidades sitiadas por nacionalistas e conservadores de direita e controladas pelos bilionários que sustentam esse capitalismo implacável.
Como James Baldwin observou certa vez: “É preciso roubar momentos para pensar”. As pessoas estão enredadas numa névoa de amnésia histórica e social que alimenta a ignorância e a alienação mútua. A fragmentação social evoluiu para uma espécie de loucura, prendendo indivíduos que são cada vez mais vítimas do falso sentido de comunidade, oferecido nas redes sociais e grupos de whats app pelos propagadores do ódio e intolerância. A decadência do capitalismo reduz as pessoas a mercadorias sem vida, que lutam para confiar umas nas outras, atoladas na pobreza, fragilidade emocional, e no medo de expressar compaixão e dignidade. A corrosão que o neoliberalismo causa na democracia tem como base inimigos fabricados, oferecendo aos desencantados, a ilusão de sentir alguma coisa, qualquer coisa. Mesmo que seja ódio ou indiferença.
Em todos os níveis da política, interna e externa, os fantasmas do autoritarismo são evidentes, oferecendo um vislumbre dos horrores que nos aguardam à medida que o século XXI se desenrola. Ao nível da política externa, o sangue jorra das guerras, com bombas, artilharia, aviões e tanques financiados pelo mercado bélico, alimentado por conflitos violentos como na Palestina ou Ucrânia. Parece que vai ficando cada vez mais claro que trazer soluções diplomáticas para as guerras é menos importante do que os lucros e empregos criados pelas máquinas mortíferas e indústrias de defesa. A cultura de guerra e a linguagem de ódio enchem todos os meios de comunicação, legitimando a violência como forma de oportunismo político.
Até mesmo a tentativa de assassinato de Trump foi transformada num artifício promocional pela mídia de massa que lucrou com a imagem e repercussão do incidente. O que parece ter passado despercebido nos principais meios de comunicação social é uma certa ironia em torno do atentado, dadas repetidas alegações falsas de que Federais e Biden estavam tentando assassiná-lo. Neste caso, essa mentira fictícia repetida tantas vezes com motivação política passou do reino do discurso para uma realidade potencialmente mortal. Como alvo de tal violência, Trump passou então a reformular sua linguagem num desempenho público de vitimização e homem forte. Embora possa ser somente uma coincidência, não deixa de ser notável a semelhança com o caso da facada no Brasil.
Uma cultura que celebra não apenas a violência, mas também as armas, perdeu sua humanidade e celebra-se a si mesma através dos rituais de barbárie. A violência e o medo são usados para manipular grande segmento da sociedade, fazendo com que sintam alguma coisa, mesmo que seja o pulso fraco no corpo coletivo, quase um cadáver. A violência se tornou o modo mais importante de comunicação, mercantilização e identidade de classe, uma patologia patrocinada pelo Estado, um modo de entretenimento, um produto valioso para a política, independente de qualquer sentido de responsabilidade ou noção das consequências sociais e éticas desta barbárie.
A propaganda para armas de fogo, embora adornadas com valores familiares e religiosos distorcidos, ficou evidente quando políticos de direita posaram para retratos de Natal com espingardas. A frieza da morte e o vazio moral emanam dessas narrativas. Em vez de lamentar a morte de crianças e outras pessoas, a extrema direita celebra as armas que mataram. O horror do lobby das armas é inacreditável, envolto numa mistura arrogante de fundamentalismo econômico, político e religioso que não se limita a encobrir a violência, mas é cúmplice dela.
A linguagem e as práticas cruéis de degradação e destrutividade humana alimentam uma crescente política autoritária com a pretensão de destruir a democracia. Os demagogos se vangloriam das suas fantasias raciais ou sexuais, da adoração desenfreada da violência como forma de pacificação social. Está ligada à morte da consciência histórica, à mentira na política, à indiferença frente as guerras dentro e fora do país. Uma cultura de carnificina predatória e crueldade em que a violência passou a ter mais valor cultural do que a justiça, a compaixão, o cuidado e os valores fundamentais de uma verdadeira democracia. Parece que a metáfora proposta por Ingmar Bergman para o nascimento do autoritarismo – O Ovo da Serpente – está prestes a eclodir. Como Bergman observou numa época anterior, o abismo do fascismo “avança ameaçadoramente”. As palavras de Bergman ressoam com uma política fascista que agora se baseia na cultura da vida quotidiana e, ao fazê-lo, espalha as suas ideologias, valores, relações sociais e cultura de crueldade em instituições, práticas, políticas e experiências de dominação que assumem o tom de senso comum, envolto no discurso de liberdade, vitimização, mentalidades fechadas e fronteiras armadas.
Num mundo moldado pelo autoritarismo emergente, tornou-se cada vez mais difícil saber o que é uma democracia significativa. A democracia como ideal está sob ataque dos fundamentalistas do mercado, militares e líderes religiosos de extrema direita. Cada vez mais, torna-se desafiante habitar as esferas públicas onde a política prospera, onde os sujeitos que pensam, falam e agem se envolvem e abordam criticamente as principais forças e problemas que afetam as suas vidas. Neste momento atual da história, que muitas vezes se assemelha aos pesadelos do passado fascista, tem sido de certo modo naturalizado um comportamento autoritário de apagamento da história, ataque às pessoas não binárias, multiplicando uma ideologia de nacionalismo exacerbado, coronelismo, patriarcado e escravidão. A amnésia histórica e social tornou-se um princípio organizador da sociedade. A mentira transforma-se em desinformação e as notícias falsas multiplicam-se.
Uma linguagem corrompida e bizarra passa a fazer parte do maquinário de destruição social com a reificação da cultura de consumo e o banimento da moral e da ética nas zonas de conflito político e social. A subjetividade, a formação de identidade e o anseio de comunidade tornaram-se elementos poderosos de uma política de agressão. Uma cultura digital, baseada em imagens, celebra a miséria humana, transforma monstros em celebridades políticas que pregam a morte dos indesejados, impotentes e insolventes. A mídia conservadora normaliza líderes que prosperam com a energia dos mortos, fracos e descartáveis. Tudo isso mostra o quão profundamente enraizados os valores de extrema direita já estão na vida cotidiana, na sociedade e na cultura.
Alguns exemplos recentes demonstram a sombria política autoritária de extrema direita avançando nos Estados Unidos, corroendo a democracia com a intenção de destruí-la. Recentemente Jack Posobiec no seu discurso da Conferência de Ação Política Conservadora declarou: “Bem-vindos ao fim da democracia. Estamos aqui para derrubá-la completamente. Não chegamos lá em 6 de janeiro [em referência à data de ataque ao Capitólio], mas faremos o possível para nos livrar dela. Depois de queimarmos aquele pântano, estabeleceremos a nova república americana sobre suas cinzas, e nossa primeira tarefa será a punição daqueles que traíram a América”.[3]
Outro exemplo é a fala do político Mark Robinson durante as eleições para governador na Carolina do Norte. Apesar de sua retórica extremista, ele é tratado como um candidato normal pela mídia de massa, embora tenha se referido à população LGBTQIA+ como “vermes e bosta, são equivalentes ao que as vacas deixam para trás”.[4] Ele afirmou também que desejava voltar aos dias em que as mulheres não podiam votar e atribuiu os frequentes massacres com armas de fogo a uma espécie de carma espiritual por conta do aborto. As declarações deste político de extrema direita deixam claro que a ignorância intencional é uma pré-condição para a implantação de uma política autoritária baseada na cultura. Crueldade e ódio se tornaram ferramentas normalizadas pelo oportunismo político conservador.
Para o dramaturgo e poeta Bertolt Brecht, por baixo das sociedades aparentemente democráticas existem forças obscuras, perigosas e voláteis à espera de serem libertadas pela dinâmica do capitalismo. Para Brecht, ninguém pode dizer a verdade sobre o autoritarismo sem se manifestar contra os horrores do capitalismo. “Os horrores do autoritarismo espreitam nas sombras da vida quotidiana. Se alguém quiser descrever o fascismo e a guerra, desastres que não são catástrofes naturais, precisa fazê-lo em termos de uma verdade prática. Precisa escrever a verdade sobre as condições de modo que suas causas evitáveis possam ser identificadas. Se as causas evitáveis puderem ser identificadas, as condições malignas poderão ser combatidas.” [5] O desafio é reconhecer como as sementes do autoritarismo emergem nas sombras do discurso, das práticas e das relações sociais. As micro agressões cotidianas da extrema direita são muitas vezes tratadas como se residissem apenas na teatralidade do excessivamente dramático, de um espetáculo exagerado, na bizarra histeria egoísta em massa que prende a atenção. Não seria este o motivo pelo qual Pablo Marçal virou celebridade nas eleições para a prefeitura de São Paulo?
Por fim, o que há de novo aqui é uma esfera subjetiva onde a irracionalidade funciona como glamour cultural e um tranquilizante ético. Mas a política está armada com violência. O espetáculo do ultrajante celebra a força autoritária com um sorriso malicioso. O que é esquecido é o poder do discurso autoritário nas relações cotidianas, que lentamente se torna normalizado e acelerado, legitimado e expandido, tornando a eficácia do indizível de antes, num elemento central do cotidiano no dia seguinte. Embora a linguagem seja frequentemente minimizada como uma forma de espetáculo, na prática, ela corporifica-se no horror do mal absoluto de um mundo liderado por bárbaros onde não há espaço para o diálogo e nem confiança para um pacto político. No atual período histórico, com os riscos de destruição da democracia e renovação da escravidão do colonialismo, a política de descartabilidade, eliminação e morte é acionada para despolitização da sociedade. É assim que as eleições se constituem num grande risco. Uma vez que perdermos de vista como as dinâmicas do poder se escondem na linguagem do cotidiano, o autoritarismo chegará novamente, não com um grande estrondo, mas com o silencioso agitar da bandeira nacional e um fedor de morte bem conhecido pelos militares. As luzes correm o risco de apagar aqui nas Américas. Não estamos muito otimistas, mas ao mesmo tempo, embora a esperança diminua, ela não se perde. Lutemos agora para que a resistência democrática possa persistir, mesmo frente a probabilidades inimagináveis no futuro.
Henry Armand Giroux é Pesquisador no Departamento de Estudos Culturais e Professor Titular da Cátedra Paulo Freire de Pedagogia Crítica na McMaster University, Canadá.
Gustavo de Oliveira Figueiredo é Pesquisador Visitante na McMaster University e Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
Esta iniciativa teve apoio do Programa Institucional de Internacionalização da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Ministério da Educação.
Referências
[1] Mark Reinhardt e Holly Edwards, “Traffic in Pain”, em Beautiful Suffering: Photography and the Traffic in Pain, ed. Mark Reinhardt, Holly Edwards e Erina Duganne (Chicago: University of Chicago Press, 2006), p. 9.
[2] Paul Gilroy, “The 2019 Holberg Lecture, by Laureate Paul Gilroy: Never Again: refusing race and salvaging the human,” Holbergprisen, [Nov. 11, 2019]. Online: https://holbergprisen.no/en/news/holberg-prize/2019-holberg-lecture-laureate-paul-gilroy
[3] Ben Goggin, “Calls to ‘fight’ and echoes of Jan. 6 embraced by CPAC attendees,” NBC News (February 23, 2024). Online: https://www.nbcnews.com/politics/2024-election/jack-posobiec-jan-6-2024-cpac-rcna140225
[4] Kira Lerner, “Hitler-quoting candidate wins North Carolina Republican gubernatorial primary,” The Guardian (March 6, 2024). Online: https://www.theguardian.com/us-news/2024/mar/05/mark-robinson-north-carolina
[5] Bertold Brecht, “Writing the Truth-Five difficulties,” Revolutionary Socialism.com (March 2015, 1935). Online: https://revolutionary-socialism.com/en/writing-the-truth-five-difficulties/