Sobrevivendo no crédito
A persistência da alta inflação não afeta apenas o consumo e promove cortes de despesas e privações; também leva as pessoas a aguçar a inventividade por meio de aplicativos, cartões de crédito, descontos e outras estratégias financeiras, resgatando um costume muito presente na memória dos argentinos
Na cozinha, ainda de pijama, um homem prepara um mate. Quando uma pequena nuvem de pó sobe do recipiente, escuta-se uma voz que tosse; é o pacote de erva-mate, que parece estar vivo, e suplica: “Willy, me deixe descansar. Eu não vou chegar até amanhã”. A mensagem do anúncio enfatiza em off: “Os meses com 31 dias são muito difíceis. Por isso, transformamos os 31 em 3×1. Três planos para aproveitar ao mesmo tempo, de graça”. O anunciante é o Naranja X, a carteira eletrônica do Tarjeta Naranja: “Cuidamos do seu fim de mês. Cuidamos das suas finanças” é o slogan que encerra o anúncio divulgado em maio.
Em outro anúncio publicitário divulgado na Argentina nos últimos meses, uma empresa de bebidas promove sua nova plataforma de descontos, que é ativada na segunda metade do mês, “quando historicamente o bolso dos argentinos está mais apertado”. O comercial descreve o final do mês como um momento “difícil”: os desejos se tornam inalcançáveis e ceder à tentação deixa de ser uma opção.
Com um aumento de 8,4% em abril, o mais alto do ano e a variação mensal mais elevada registrada na última década, a inflação se consolida como a principal preocupação social. Chegar ao final do mês é a preocupação dominante para cada vez mais famílias e, como mostram esses anúncios, o mercado sabe disso.
Os aumentos de preços, que em alguns setores sensíveis como alimentos e vestuário superam os 10% mensais, exigem adaptação. As altas não têm o mesmo impacto em todos os bolsos, mas não poupam ninguém. Para manter o equilíbrio financeiro doméstico, são adotadas estratégias que afetam diretamente os bens e serviços consumidos, mas também os modos de gasto e financiamento.
Deixar de se “dar luxos”, trocar marcas de primeira linha por marcas de segunda ou terceira, e, nos casos mais extremos, suspender o consumo de certos alimentos como carne ou algumas frutas e verduras, fazem parte do cardápio habitual de respostas das famílias diante da inflação. Também fazem parte dessas estratégias as mudanças nos circuitos de compra, priorizando ofertas ou promoções semanais em certos estabelecimentos comerciais.
Além dessas decisões relacionadas ao consumo, há outras que visam compensar a queda de renda por meio de instrumentos de investimento e crédito. Nesse ponto, as mudanças observadas no cenário financeiro argentino não são alheias à forma como os argentinos lidam com a inflação.
Dos depósitos de curto prazo aos aplicativos
Embora a pandemia tenha agravado a situação, a inflação atual não pode ser atribuída exclusivamente à crise causada pela Covid. Com intensidade diversa, mas presença constante, o aumento dos preços e os desafios que isso acarreta para a economia doméstica estiveram na mesa de discussão econômica e política pelo menos nos últimos quinze anos. Historicamente, além disso, a inflação deixou marcas profundas na sociedade: os momentos mais trágicos relacionados a ela – como a hiperinflação de 1989 – não estão tão distantes a ponto de não haver pessoas vivas capazes de testemunhar essas lembranças. As lições de 25 anos de alta inflação ainda estão presentes na memória de muitas pessoas e são transmitidas de geração em geração.
Isso se reflete, entre outros indicadores, nas medições internacionais da educação financeira da população, como aquelas realizadas pelo Banco Mundial. Embora o desempenho geral dos argentinos esteja abaixo da média global, quando se trata de inflação e seus efeitos, eles se destacam nitidamente com mais de 60% de respostas corretas, dez pontos percentuais acima do resto do mundo.
Nos anos 1980, em meio às remarcações generalizadas, a propaganda pública convocava os consumidores a procurar os melhores preços e a defender o valor da moeda; a televisão transformava donas de casa em defensoras dessa luta. Enquanto isso, especialmente nos momentos mais críticos, o sistema financeiro disponibilizava aos assalariados o recurso que lhes permitiria estender o salário até o próximo dia de pagamento. Quando Armando relembra seus anos de trabalho em uma fábrica de motores em Córdoba, ele os descreve assim: “Lembro que eu pegava o salário e o colocava para render com juros. Sempre recebíamos no dia 30 ou 31, no máximo no 1º, e eu sabia como colocar o salário a sete dias de juros. Eu ia, colocava em uma financeira, me devolviam após sete dias e eu ganhava alguns pesos”.
Essencialmente, os objetivos que os consumidores buscam hoje são os mesmos de então: por um lado, tentar pagar o preço mais baixo possível pelo que precisam; por outro, “esticar o dinheiro” o máximo possível. Quarenta anos de democracia depois, a diferença não está nos objetivos, mas nos meios para alcançá-los.
Hoje, com todos os assalariados registrados e os beneficiários da seguridade social recebendo seus salários por meio de contas bancárias, com a enorme expansão do mercado de cartões de crédito ocorrida entre 2000 e 2010 e, desde a pandemia, com a crescente penetração das carteiras eletrônicas (e do universo das fintechs em geral), quase todas as respostas dos lares ao avanço da inflação são intermediadas por instrumentos financeiros. O depósito a prazo fixo de sete dias mencionado por Armando é algo que poucos lembram hoje, mas as contas remuneradas oferecidas pelas carteiras eletrônicas são um bom substituto: garantem retorno a curto prazo sem imobilizar o dinheiro depositado e, embora não acompanhem a inflação, pelo menos compensam uma parte.
Lucas tem 23 anos e trabalha em uma empresa de tecnologia. A gestão diária de sua economia pessoal é organizada entre duas ferramentas: uma carteira eletrônica e o cartão de crédito: “No dia do pagamento, eu transfiro tudo para o Mercado Pago, nesse nível. Eu não uso muito as contas bancárias, exceto para o cartão de crédito. Não uso as contas bancárias porque o dinheiro que está lá sempre vale a mesma coisa… Se é dinheiro que você vai usar, mas quer que não deprecie muito, vai para o Mercado Pago”. O cartão é útil para otimizar essa estratégia. “Depois faço todos os pagamentos possíveis com cartão de crédito. Desse modo, enquanto isso, se você tem dinheiro, pode investir, enquanto só precisa pagar no próximo mês; assim, faz sentido adiar o pagamento por mais alguns dias e permitir que esse dinheiro continue investido.”
Jessica também transfere todo o seu salário mensalmente para o Mercado Pago: “Eu coloco um lembrete para cada uma das datas de vencimento, sei lá, o monotributo que vence no dia 20, os cartões vencem no dia 10, então coloco um calendário para cada coisa, coloco tudo no Mercado Pago e isso me deixa com o dinheiro que eu teria pago antes, no dia 1º, rendendo; então espero até o último dia da data de vencimento e ganho um pouco mais de dinheiro que eu não teria visto… E é bom, eu diria, poder fazer uma diferença, porque a inflação também é muita, é demasiada”.
Além de permitir pequenas margens de lucro diárias, as carteiras virtuais também oferecem descontos. Jessica os acumula de acordo com os benefícios oferecidos: “Tenho 20 mil e uso cada um dependendo da sua função”, diz enquanto mostra todos os ícones na tela do celular.
A massificação dos cartões
Nos anos 1980, os cartões ainda eram um privilégio reservado a uma pequena parte da população, associados a um tipo específico de consumo, excepcional ou luxuoso. Nas últimas décadas, no entanto, os cartões não apenas se democratizaram, como também suas utilidades foram se transformando. Especialmente em tempos de crise, o uso dos cartões para pagar despesas correntes se tornou cada vez mais comum. Eles passaram assim de um sinal de distinção para um instrumento de consumo em massa. Em momentos de variações de preços acentuadas como o atual, eles são a ferramenta mais simples para adiar pagamentos até a chegada do próximo salário – ou, por meio do pagamento mínimo, até que as contas o permitam.
Dada a abrangência que alcançaram, o uso dos cartões de crédito também é um bom termômetro do consumo interno. Segundo os últimos dados da Prisma Medios de Pago, nos primeiros três meses de 2023, as operações com cartão de crédito registraram um aumento em termos de montantes abaixo da inflação. Isso indica, em primeiro lugar, um corte de gastos por parte dos lares. Entretanto, também é uma expressão de algumas mudanças na oferta de financiamentos disponíveis: a diminuição dos planos de parcelamento sem juros e a desatualização dos limites de compra estabelecidos pelos bancos, que ficam “curtos” diante do aumento dos preços. Isso explica a alta de 30% nos limites para compras parceladas anunciada pelo Ministério da Economia, que visa impulsionar a atividade.
Contudo, quando se mede o uso dos cartões em termos da quantidade de transações realizadas (e não do montante), observa-se um crescimento de 22,44% em relação ao primeiro trimestre de 2022. Isso pode indicar o uso desses cartões para pagamentos que anteriormente eram feitos de outra forma. Por exemplo, nos primeiros três meses deste ano, o uso de cartões de crédito para pagamentos em farmácias aumentou 20%, e também houve elevações menores no setor de supermercados. Isso marca uma mudança em relação ao padrão histórico de uso dos cartões, que geralmente eram usados para a compra de bens duráveis ou despesas extraordinárias. A mesma tendência é apontada pelos dados do Relatório Mensal de Pagamentos de Varejo do Banco Central, que inclui informações de todos os provedores de cartões: em março deste ano, as transações com cartões de crédito aumentaram mais de 11% em relação ao mesmo mês do ano anterior, embora a queda tenha sido de 1,5% se considerados os montantes envolvidos.
Menos consumo, porém mais uso do cartão parece ser a fórmula do momento: o dinheiro não é suficiente e o plástico ajuda a cobrir as lacunas (ou a ganhar tempo enquanto se tenta multiplicar, mesmo que minimamente, o que resta do salário). No entanto, o que acontece quando chega a data de vencimento? Com o último aumento das taxas, os juros anuais aplicados aos saldos dos cartões daqueles que fazem o pagamento mínimo subiu para 88% a partir dos extratos de junho, desde que estes sejam inferiores a 200 mil pesos. Todavia, isso se aplica apenas aos cartões bancários. Aqueles emitidos por outros provedores de crédito cobram taxas muito mais altas. Com um aumento nos salários que dificilmente pode acompanhar o ritmo da elevação dos preços e dos juros, o alívio inicial é passageiro. O resultado é uma população com emprego e renda, mas cada vez mais empobrecida e endividada.
O pior cenário
O que é pior para um trabalhador? Há mais de vinte anos, quando a crise de 2001 ainda não havia explodido, mas sua sombra já pairava no horizonte, um grupo de economistas e sociólogos se envolveu em uma discussão acalorada sobre a pergunta se era pior o cenário de alta inflação e salários insuficientes, ou o de estabilidade com desemprego [1]. Até então, o grande fantasma era o de 1989, e nada parecia mais grave do que a hiperinflação desenfreada. Porém, em 2001, após mais de três anos de recessão, com o desemprego atingindo 20% e o Estado reduzindo os salários, aquela convicção começava a fraquejar: nada parecia pior do que estar desempregado.
A história que se seguiu ao colapso foi a consagração dessa ideia. Nas décadas seguintes, o emprego e os salários foram recuperados e uma estrutura sólida de benefícios sociais foi construída para os grupos mais vulneráveis. E embora essas conquistas não tenham alcançado a todos igualmente nem se mantido estáveis ao longo do tempo, foram suficientes para que o foco não saísse do trabalho como grande conquista da política pós-crise.
O retorno da inflação de três dígitos abala novamente essas certezas. Os meses são contados como inimigos contam as costelas. O pequeno jogo de bolso que permite ganhos modestos está de volta, na versão 3.0. Aqueles que não conseguem cobrir a cesta básica não são apenas os trabalhadores informais que sobrevivem com trabalhos ocasionais, mas também os empregados da economia formal, com conta bancária, contracheque e horário fixo.
Em 2021, a Pesquisa Nacional de Endividamento e Cuidados realizada pela Cepal mostrou como a pandemia impactou a vulnerabilidade financeira dos lares argentinos, ou seja, suas capacidades monetárias para enfrentar situações críticas. Para fazer isso, a pesquisa construiu um índice de endividamento dos lares, que quantificou pela primeira vez, em nível nacional, o peso da dívida nas economias familiares. De acordo com seus resultados, mais de um terço dos lares argentinos apresentava níveis críticos de endividamento e apenas um quinto estava no nível baixo. Essa vulnerabilidade financeira não estava distribuída de forma homogênea: os mais afetados eram os lares de baixa renda liderados por mulheres e com mais presença de crianças ou adolescentes.
Dois anos depois, é muito provável que essa tendência continue ou até tenha se agravado: com a inflação girando em torno de 100% ao ano por dois anos consecutivos e os salários e aposentadorias correndo atrás, especialmente no setor informal, hoje existem mais lares que recorrem ao endividamento para cobrir o que não é possível pagar com a renda disponível; além disso, são também mais famílias que destinam uma parte significativa desses recursos para quitar dívidas anteriores. Por sua vez, a pandemia não é um sonho distante, mas um pesadelo recente, que em muitos casos esgotou as economias que poderiam amortecer situações críticas e espremeu ao máximo as redes de apoio mais próximas.
Quanto tempo dura o cartão estourado, o crédito dos aplicativos, o fiado na mercearia do amigo? Quanto tempo levará até que as estratégias para chegar ao final do mês se tornem uma fonte de maior vulnerabilidade para as economias familiares? Mais de trinta anos após a hiperinflação, a inflação é novamente o grande monstro que a política deve domar. A poucos meses das eleições presidenciais, enquanto se decide quem tentará torcer o braço da inflação, nas ruas o desafio é cotidiano: os meses estão cada vez mais longos e algo precisa ser inventado.
Mariana Luzzi é socióloga e pesquisadora do CONICET-UNSAM (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – Universidad Nacional de San Martín).
[1] A discussão ocorreu no contexto do Encontro “Trabajo, integración y sociabilidad: nuevos dilemas en la Argentina de hoy” [Trabalho, integração e sociabilidade: novos dilemas na Argentina de hoje], organizado pelo Departamento de Sociologia da UNGS (Universidad Nacional de General Sarmiento) em novembro de 2001.