Solidão polarizada
Relações pessoais que foram rompidas ou abaladas pela política importam
Lendo e ouvindo Steven Levitsky, cientista político e autor do livro Como as democracias morrem, acredito que o Brasil é hoje um terreno fértil para um cemitério democrático. Nossa democracia está encurralada nos quatro pilares descritos por ele: baixíssimo compromisso com as regras, deslegitimação de oponentes, encorajamento à violência e restrição da liberdade de críticos e da mídia. Esses quatros itens são cada vez mais parte da nossa rotina política. Alguns deles também têm estado presentes, de certa forma, nas nossas rotinas familiares, especificamente a deslegitimação de pessoas com as quais discordamos.
Essa reflexão vem de um lugar muito vivo e presente: parte da minha família tem um posicionamento político oposto ao meu. E, sim, nossas relações sofreram impactos diretos graças às nossas divergências eleitorais e todo o contexto pandêmico apocalíptico que estamos vivendo. Quando penso nisso, as sensações são uma grande confusão que percorrem o medo, raiva, preguiça, cansaço, decepção e várias outras que talvez ainda não saiba nomear.
Fato é que eu fui criada por eleitores que não votam como eu voto, e guardo deles lembranças incríveis de viagens, conselhos e muito carinho. Quando flerto com a ideia de que com eleitores antagônicos a mim não cabe diálogo, é importante lembrar que existem entre eles alguns que amo muito. E mesmo que me sinta ameaçada socialmente e politicamente, nossas divergências políticas não podem nos fazer inimigos, mas sim oponentes. Reconheço que pensamos diferentes, mas isso não pode nos impedir de coexistir de forma legitima. E, para mim, estar sempre com essa diferença em mente tem sido muito importante.
Desejar que as pessoas que discordam de nós simplesmente morram ou desapareçam é sinal de ideias e desejos violentos, sectários e antidemocráticos. Um desejo bem próximo de uma realidade ditatorial. O que precisamos lembrar, e reconhecer, é que essas relações pessoais que foram rompidas ou abaladas pela política importam. Talvez esse rompimento familiar possa significar pouco agora, mas é bom lembrar que temos raízes, laços e pessoas com quem podemos contar – mesmo que essas pessoas admirem esse ou aquele político repugnante. E eu também sei que a resistência em se aproximar de quem discorda é muito bem justificada pelo cansaço. Sim, quem é que não está exausta de ter que viver um momento histórico? Quem é que não está contando os dias para colocar o bracinho de fora para a vacina?
Tenho refletido muito sobre quão confortável e sedutora essa justificativa também pode ser. Quase como uma barganha não para se comprometer com a discordância ou lidar com o conflito – e tudo o que vem junto com ele.
E também reconheço que diante dessas relações abaladas pela polarização existem várias camadas de complexidade: família, traumas, crenças limitantes e mais um monte de inseguranças que muitas vezes se conectam com o medo. No livro Emocionário, Cristina Núñez Pereira e Rafael Valcárcel descrevem que o medo surge quando você acredita que vai sofrer algum tipo de dano, e que normalmente o desconhecido nos causa medo.
A política e as estratégias de desinformação e fake news nunca se estruturaram tanto no medo quanto nos dias de hoje, e isso indiscutivelmente tem funcionado muito bem. O medo nos faz buscar um espaço seguro, em grupos que nos acolham, que nos entendam – em outras palavras, que pensam como nós. E esse movimento tem tido um impacto profundo nas nossas relações. Muitas vezes acabamos nos afastando, por divergências políticas, dos nossos laços fortes, aqueles com quem trocamos afeto com grande vínculo e intensidade emocional, relações baseadas em confiança mútua. Estamos nos limitando a relações de laços fracos que têm maior importância na dinâmica das redes e se estruturam numa fluidez incerta e frágil. Uma das consequências disso nesse contexto pandêmico tem sido um círculo vicioso degradante envolvendo medo e ansiedade – que geram afastamento, que geram solidão e assim continua.
Se a polarização corrói a democracia, a solidão polarizada consome individualmente a todos nós. Um círculo vicioso que mina nossas relações mais íntimas, nutre o medo e se conecta à exaustão atingindo nossos valores mais essenciais.
Hoje, para mim, a ação ativista mais fácil, segura e urgente é a aproximação daquele tio radical ou do seu pai que duvida da ciência. Independente de qual extremo, meu apelo é pelo resgate de laços fortes para que possamos, a partir do diálogo com os nossos, exercitar nossa capacidade de encontro. Só assim o medo poderá se tornar complacência, a ansiedade poderá se tornar compreensão e o afastamento e a solidão poderão se tornar comunidade.
Maisa Diniz é ativista e coordenadora do Despolarize, organização que atua em defesa da democracia e pela não violência política eleitoral. Coorganizou a Virada Política, maior evento de inovação política do país, e cofundou o Vote Nelas. Recentemente foi a mobilizadora da campanha com votação histórica que afastou o deputado Fernando Cury por importunação sexual na Alesp.