Sonia Guajajara e a luta das mulheres indígenas por espaço na política institucional
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Sonia Guajajara fala sobre a relação das mulheres indígenas com o feminismo e da crescente articulação de candidaturas indígenas na luta por direitos
Sonia Guajajara é um dos maiores nomes da luta indígena da atualidade. Hoje coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sonia tem marcado os últimos anos de luta e organização política no país, inclusive sendo a primeira mulher indígena a participar de uma chapa presidencial nas eleições de 2018 – ao lado de Guilherme Boulos (PSol).
Nessa conversa com o Le Monde Diplomatique Brasil, Sonia fala sobre a relação das mulheres indígenas com o feminismo, a crescente articulação do movimento indígena por meio de candidaturas no legislativo e executivo e sobre a luta das mulheres pela terra em meio aos ataques do governo Bolsonaro.
O movimento feminista tem dado mais espaço e visibilidade para as mulheres indígenas nos últimos tempos? Acredita que esses avanços ainda são muito tímidos?
Acho que não é uma questão de não dar espaço, sabe? Somos nós, mulheres indígenas, que ainda estamos fazendo nosso próprio debate. Ainda estamos procurando nos entender também nesse contexto de feminismo, que para nós não é uma coisa tão simples.
No debate da Boitempo com a escritora Silvia Federici, você mencionou que “feminismo indigena” é um termo usado por outras pessoas para falar de vocês e por vocês. Não são as indígenas falando delas mesmas. Você vê essa fala de outras por vocês no campo do feminismo indígena como um tipo de silenciamento?
Não de silenciamento, é um tipo de categorização mesmo. As mulheres querem porque querem que a gente se assuma feminista, sabe? E para nós não tem essa necessidade. Então todo mundo que vem falar com a gente insiste nesse assunto, quer que a gente se assuma, mas a gente não acha essa necessidade. Se assumir ou não, não vai resolver os problemas que a gente tem.
O “feminismo indígena” é um conceito em construção?
A gente sempre fez essa luta por igualdade de gênero, por direito à participação, protagonismo feminino. Sempre estivemos nesse lugar de luta, sem precisar dar um nome para isso, sem precisar ficar categorizando. Sem aquela coisa de “mulher que faz isso é feminista” ou “não é feminista”, porque são diversas coisas que as mulheres fazem nesse sentido de buscar seu protagonismo e a sua participação. E aí vem essa categoria de feminismo, e a gente ainda não conseguiu entender direito esse conceito. Porque, para nós, é muito mais do que um conceito. É sobre saber o que tá fazendo e que é uma luta de mulheres mas não que necessariamente precisa estar categorizado. Por isso que, para nós, ainda é muito novo mesmo, a gente nunca discutiu profundamente. A gente tá aí buscando essa participação das mulheres, assumindo vários lugares na luta, vários espaços inclusive, mas nunca aprofundamos mesmo esse debate sobre feminismo.
Ainda nesse mesmo debate, você disse que demorou 518 anos para chegarmos ao ponto de ver uma mulher indigena em uma chapa para presidência, em 2018. Você acredita que, a partir de agora, a tendência é podermos dar passos mais rápidos nesse sentido ou vê que a resistência desse governo pode prejudicar maiores avanços?
Eu não sei se a gente vai conseguir entrar, mas estamos aumentando o número de mulheres que estão tentando, isso é um fato. Nas eleições municipais, a gente conseguiu eleger 44 mulheres, entre vereadoras, prefeitas e vice-prefeitas. Foi o maior número de todos os tempos e que já é um reflexo de toda essa campanha e toda essa articulação que a gente começou a fazer a partir de 2017. Então, apesar desse governo que estimula todo esse autoritarismo, estamos avançando nessa articulação. E uma das nossas bandeiras é essa: fortalecer as candidaturas de mulheres indígenas e fortalecer também a participação das mulheres eleitas, para não ser somente mais uma eleita, mas ser uma pessoa que está ali e tenha um projeto conectado com o próprio movimento indígena.
Como foi a experiência de ser candidata a vice-presidenta nesse contexto de polarização política que vivemos?
Muito difícil, porque as candidaturas em si já são sempre muito complexas. Sempre já tem todas essas complexidades (entre direita e esquerda, mulher e homem) e ali para mim, ser mulher, ser indígena e em um momento totalmente polarizado foi um desafio muito grande. Então enfrentei como se nada disso existisse. E vamos defender o nosso projeto político, a nossa bandeira. O importante ali foi trazer as pautas que nunca foram pautas principais no debate público, no debate político. Como a própria pauta ambiental, que sempre foi uma pauta secundarizada, a pauta indígena, a pauta dos movimentos sociais das diferentes lutas – da população LGBT, de mulheres, da luta por moradia. A gente trouxe tudo isso. Então, para nós, era mesmo para trazer à tona esse projeto humanitário, civilizatório e anti sistêmico que é real e que nas campanhas não se toca nesses assuntos. Todo mundo fala muito sobre saúde, educação, PIB, emprego – mas fala tudo de forma muito genérica. Nenhum dos candidatos consegue aprofundar essas discussões de acordo com essa diversidade, de acordo com essas especificidades, e a gente trouxe isso muito forte. Então eu acho que isso foi muito bom porque inovou as eleições de 2018.
Como você vê o resultado das eleições municipais de 2020 no campo da representatividade indígena para as mulheres?
A gente teve o maior número de candidaturas indígenas de todos os tempos, articulamos as candidaturas indígenas, nos reunimos frequentemente com vários candidatos – homens e mulheres – e fizemos várias orientações e apoio de comunicação. Como resultado a gente teve 237 indígenas eleitos e isso representou um número bem maior do que nas últimas eleições. Eu acho que isso tende a avançar muito, porque está tendo muito mais interesse dos indígenas de se candidatarem e procurarem o movimento indígena. E isso para a gente é importante: não ter candidaturas avulsas, por si, mas sim ter candidaturas articuladas com a luta do movimento. Então isso já começou a germinar. O fato foi que aumentou o número de candidatos indígenas, mas também de eleitos. Acho que essas articulações tendem a aumentar, inclusive na eleição de 2022.
Também no debate da Boitempo, você mencionou que quando menina não enxergava um tempo no qual indígenas poderiam falar por si mesmos. Você acha que os avanços nos últimos anos têm mudado essa perspectiva para os indígenas mais jovens? Acha que eles conseguem se ver mais representados e encorajados do que a Sonia jovem?
Sim, com certeza. Eu acho também que esse acesso à internet facilitou muito o acesso à informação, para os indígenas saberem e entenderem o que está acontecendo. Eles podem acompanhar mais o movimento e essas mudanças. Eu acho que, hoje, temos muito mais essa aproximação e isso é muito claro.
Acha que essa representatividade política que a gente tem tido nos últimos anos ajuda também?
Sim, com certeza. As pessoas que a gente já tem [em cargos políticos] são espelho para muitos e isso já é bem constatado. Muita gente, principalmente os jovens, procuram a gente para falar disso: que se inspirou em nós, que busca, que também tem vontade de se candidatar e assumir algum cargo político. E aí com certeza que tudo o que a gente tá fazendo hoje já tá sendo reconhecido por muita gente.
O que você sente que tem ajudado e impulsionado as mulheres indígenas a conquistar mais visibilidade?
Essa necessidade mesmo, de lutar por direitos, de garantir seus territórios. Porque chega uma hora que não dá para ficar só olhando, não dá para ficar só ali no território também. Se tem espaço para a gente chegar, então vamos lutar por isso.
Você pode falar um pouco sobre as resistências das mulheres indígenas em seus territórios?
A mulher é a primeira a sentir porque tem essa relação mais direta com a terra. Então toda e qualquer luta que as mulheres façam, a primeira preocupação é essa defesa da terra. E quando a gente fala terra, é tudo o que tem: é água, floresta, os animais, a continuidade da cultura, da sobrevivência, dos filhos… Então essa luta pela terra, para nós, é a base de tudo. É exatamente essa garantia que é determinante para que a gente possa lutar por todas as outras políticas
Algo a acrescentar?
A gente lançou no dia 8 de março a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e estamos seguindo uma programação do mês de março, cada segunda feira com uma live realizada por mulheres de biomas diferentes. No mês de fevereiro a gente assumiu o mês inteiro trazendo orientações sobre a vacinação para indígenas, para orientar sobre a importância da vacina. E a gente vai seguir com essa articulação, com essa mobilização de mulheres durante todo o ano. É uma articulação que não tem mais volta.
Samantha Prado faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil