Spider-Man 2: o indivíduo-empresa na sociedade de controle
Novo game exclusivo para o PlayStation 5 dissemina ética de conduta individualista
“Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa”
Gilles Deleuze
O novo game exclusivo para o PlayStation 5, Spider-Man 2, quer difundir os mecanismos ideológicos da sociedade de controle em detrimento da colaboração entre os trabalhadores. O primeiro game da série apresenta um Peter Parker que ajuda a tia May a organizar um abrigo para pessoas desamparadas. Um refúgio para a comunidade afetada por várias mazelas sociais. Já neste segundo game, Parker é um homem formado, um professor de TI, que perde seu emprego e vai trabalhar na empresa de Harry, seu amigo rico, filho de Norman Osborn.

Os velhos amigos de classes sociais distintas tinham um pacto: usar a tecnologia para salvar o mundo. É a ideologia californiana que promete um modo de vida melhor sem o Estado mediante o uso da tecnologia.
No entanto, Harry está doente e acaba sendo tratado mediante a manipulação, ainda em estudo, de uma criatura alienígena, o simbionte, que o transformará em Venom.
Após possuir o poder alienígena, Harry mantém o sonho de salvar o planeta. A bizarra criatura é capaz de curar doenças, porém todos os indivíduos são possuídos pela personalidade Venom. Uma entidade coletiva que se espalha por todo mundo.
Harry, portanto, acaba realizando sua utopia, mas se torna um bizarro monstro autoritário. Todos se submetem a um cérebro central, Venom.
Peter Parker, Miles Morales e Mary Jane se unem para combater essa forma fascista de governamentalidade, uma racionalidade política violenta e antiliberal. Começa uma jornada para recuperar o sonho liberal californiano (embora o game se passe em Nova York), o mesmo defendido hoje pelos anjos troncos do Vale do Silício.
Parker, no primeiro game da série, convidava as pessoas que queriam ser salvas para ir à ONG de sua tia. Venom é uma figura bastante diferente. Quer salvar as pessoas impondo um sistema opressor e tirano. Acontece que Parker é um proletário do subúrbio de Nova York, enquanto Harry, que compartilha sua consciência com Venom, é membro da alta burguesia. A união de classes antagônicas à procura de uma melhora do mundo só pode gerar uma criatura bizarra como o Venom. Se a narrativa focasse na derrubada de Venom para implantar o modelo de solidariedade do primeiro game seria interessante. Contudo, a história do game descamba para outro caminho.
Os ideais de uma esquerda liberal são bem destacados. Nós podemos controlar Miles, um afroamericano filho de uma porto-riquenha vereadora da cidade de Nova York. Também encontramos o discurso de inclusão, pois a menina pela qual Miles se apaixona é portadora de uma deficiência auditiva. A linguagem de sinais nunca foi tão presente em um game. É esse jovem rapaz que irá salvar o mundo da ditadura Venom.
Empresário de si
Contudo, o ponto alto do game é quando Mary Jane é possuída pelo simbionte e começa a falar da exploração que sofre do seu chefe, J. Jonah Jameson, dono do jornal novaiorquino Clarim Diário que tece críticas virulentas ao Spider-Man. Ele a humilha, a sobrecarrega. Ela, então, desabafa em uma luta alucinante com seu companheiro.
A crítica a sobrecarga de trabalho apresenta duas soluções. Unir-se à entidade coletiva e matar todos os opositores ou demitir-se. A visão de direita – manifestada pelos que se unem a Venom – é o desejo de exercer a violência para aliviar a pressão. O sociólogo Zygmunt Bauman mostra que, nos tempos atuais, o Estado vem perdendo o monopólio da violência legítima. O Estado mínimo foi decretado e com isso passa-se a responsabilizar o indivíduo. Se antes o Estado era o responsável pela violência legítima, agora o indivíduo se sente no dever de exercê-la. Não se trata de uma violência causada por ideologia ou pressão totalitária, mas pela incapacidade de se atingir o que foi prometido pela sociedade neoliberal. É a violência causada pela frustração. “A atração mórbida da violência consiste em trazer alívio temporário para o sentimento humilhante da própria inferioridade – fraqueza, impotência, indolência, nulidade…”[1]
No fim, Jane segue o conselho de seu namorado e pede demissão. Em seguida, cria seu próprio podcast, tornando-se empresária de si.
É a substituição da fábrica pela empresa. Venom representa a sociedade disciplinar. Já os Spiders (como Parker e Miles são chamados) representam a sociedade de controle. Podemos usar Deleuze para interpretar o discurso incutido no game: “numa sociedade de controle a empresa substitui a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás […] A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo”.[2] Mary Jane cria sua própria empresa, seu podcast, como solução para a exploração da relação de trabalho. Uma solução individual, atomizada, ideal para manter o sistema.
A aparente forma grotesca do poder, a qual é corporificada em Venom, é parte de um mecanismo tradicional de dominação. Os diversos tiranos do passado a usaram. De acordo com Michel Foucault, o “grotesco de alguém como Mussolini estava absolutamente inscrito na mecânica do poder. O poder se dava essa imagem de provir de alguém que estava teatralmente disfarçado, desenhado como um palhaço, um bufão de feira”.[3] Daí surgem figuras como Trump, Milei, Bolsonaro e Venom.
Usa-se a figura grotesca de Venom para forjar o discurso de que é impossível salvar o mundo de forma coletiva. E que toda tentativa levará a ficção científica de Evguéni Zamiatine, no clássico Nós, no qual “o ‘meu’ é impossível. Apenas o ‘Nós’ tem direito de ir e vir”.[4] Na visão neoliberal da sociedade de controle, tudo deve ser realizado na ação de cada um. Cada um deve ser empresário de si. E as palavras de Bauman, mais uma vez, nos ajudam a compreender o processo social que vemos se manifestar no game. A utopia coletiva, da sociedade perfeita não existe mais. “Utopia, como muitas coisas na vida, foi privatizada. A utopia privatizada não é sobre uma sociedade melhor, mas de indivíduos melhores (…) dentro de uma sociedade ruim”.
Enquanto que no primeiro game buscava-se melhorar o mundo por meio da ação humana, pela ajuda mútua entre os membros da mesma classe social, o novo game suprime essa ideia e privatiza a felicidade, a justiça etc. No final, Parker se aposenta e vai viver uma nova vida com Mary Jane deixando Nova York nas mãos de Miles Morales e de sua mãe, representante da esquerda estadunidense, uma similaridade óbvia com Alexandria Ocasio-Cortez.
Spider-Man 2 foi uma forma de sepultar a ideia de coletividade do primeiro game da série. Seria óbvio que a união de duas classes antagônicas em um projeto utópico daria na figura bizarra do Venom. Contudo, o game quis promover outra ideologia que vem dominando a contemporaneidade. Trata-se do indivíduo-empresa, da sociedade de controle. Na sociedade disciplinar buscava-se salvar o capitalismo por meio da instituição (escola, prisões, hospício etc.), na sociedade de controle busca-se salvar o capitalismo por meio da individualização. Cada um faz a sua parte e vigia os que não estão fazendo. Não é necessário uma instituição de caridade, mas sim incutir a ideia de que cada um é uma empresa em potencial. E assim, por meio do entretenimento, uma ética de conduta é disseminada; e, se ela não for problematizada, em forma e conteúdo, faremos de nossas ideias as ideias da classe dominante.
[1] BAUMAN, Z. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017, p. 40.
[2] DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 221.
[3] FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 16.
[4] MATTELART, A. História da utopia planetária. Porto Alegre: Sulina, 2002, p. 307.