O agendamento estratégico e os caminhos do protagonismo do STF
Para entender como foi possível uma reação tão contundente e eficaz ao 8 de janeiro, proveniente do menos político dos poderes, convém conhecer “Da Lei aos Desejos: o agendamento estratégico do STF”, de Grazielle Albuquerque
De todos os lugares barbarizados pelos golpistas no 8 de janeiro, o prédio do Supremo Tribunal Federal talvez seja o mais significativo. A fúria contra o tribunal já se revelava em atos antidemocráticos capitaneados pelo então presidente se consolidara em um slogan do populismo autoritário digno da tradição nazista (“Supremo é o povo”) e seus membros haviam sido achincalhados em praça pública, inclusive por Bolsonaro. A simbologia dos ataques do dia 8, da destruição do plenário ao apego à cadeira do Xandão, só não foi maior do que a forma como a Corte respondeu à arquitetura da destruição: a retomada urgente das sessões, a permanente memória do ataque e a campanha #DemocraciaInabalada.
Para entender como foi possível uma reação tão contundente e eficaz, proveniente do menos político dos poderes, convém conhecer Da Lei aos Desejos: o agendamento estratégico do STF, de Grazielle Albuquerque, recentemente lançado pela editora Amanuense. Por intermédio dele, podemos acompanhar o despertar do tribunal, desde quando ainda era um “ilustre desconhecido” até se transformar em um player que pauta e atua de forma estratégica.
O estudo de Grazielle se localiza na interseção entre a Comunicação, a Ciência Política e o Direito e, embora o livro seja produto de uma tese de doutorado, não sofre da aridez costumeira da linguagem acadêmica. A pesquisa busca reconstruir dois caminhos paralelos: de um lado descreve de forma minuciosa o progressivo empoderamento do STF, desde a Constituição Federal de 1988 até a Reforma da Emenda 45, em 2004; de outro, escrutina a transposição da política de comunicação do tribunal – do tempo em que divulgação era a produção da Revista Trimestral de Jurisprudência até a montagem de um complexo que envolve rádio, TV e a profissionalização de seu próprio jornalismo.
Nesta pesquisa, Grazielle se envolveu tanto com a leitura dos documentos oficiais, que informam a multiplicação dos profissionais (de 3 para 80 jornalistas), como também na produção de uma série de entrevistas com pessoas que produziram e testemunharam essas mudanças, para nos dizer como o tribunal saiu-se de um apego atávico à lei e à instituição, para uma postura que interage com o contexto político e se aproxima dos desejos sociais.
Para Grazielle, são importantes a mensuração dos chamados “picos de cobertura”, como a CPI da Corrupção, na antessala da Reforma do Judiciário, ou o julgamento da ação penal 470, conhecida como o processo do Mensalão. O gradativo conhecimento do STF perante a sociedade vai pautando uma forma não apenas de reagir, mas de influenciar a imagem que se faz dele. Neste percurso, chama a atenção para dois personagens que representaram as principais mudanças estruturais na comunicação da Corte e que foram, eles mesmos, fruto dos principais picos de cobertura, Irineu Tamanini e Renato Parente, numa mostra de como o STF aprendeu a lidar com seus maiores constrangimentos.
Grazielle descreve com minúcias o volume de instrumentos que foram paulatinamente colocados à disposição do Supremo, tonificando seu poder institucional e representando a centralização da magistratura. É preciso dizer, todavia, que não houve aqui a formação de um subproduto acidental ou mero efeito colateral. A Reforma do Judiciário se pautou efetivamente pelo desejo político de verticalização do poder, à conta do interesse de que as decisões judiciais tivessem maior previsibilidade, de modo a assegurar a garantia aos investimentos estrangeiros, fruto da inserção na globalização, que era a base da guinada econômica encampada por FHC.
Como reportamos em Os Paradoxos da Justiça; Judiciário e Política no Brasil (Contra Corrente, 2021), havia uma crítica intensa por parte do Executivo contra a excessiva judicialização da política que agiria como obstáculo às propaladas Reformas de Estado, das quais as sucessivas liminares contra processos de privatização de empresas públicas talvez fossem os exemplos mais bem acabados. A intenção de esvaziamento do poder das primeiras instâncias e o fortalecimento dos Tribunais Superiores, notadamente o STF, são perceptíveis desde os primórdios da reforma, quando Súmula Vinculante, avocatória e Controle Externo constituíam o tripé das primeiras propostas. Se a expansão dos legitimados a propor ações diretas, como lembrou Grazielle, foi o primeiro e principal instrumento do empoderamento do STF, já na Constituinte, a regulamentação das ações, que ocorre durante as discussões da reforma, como a de inconstitucionalidade por omissão e a arguição de descumprimento de preceito federal (ADPF) aumentaram ainda mais os caminhos diretos à Corte.
Por outro lado, o apoio da mídia à Reforma do Judiciário não se limitou à compreensão de uma modernização do poder, aliado a uma maior accountability, tão em voga nos debates da época. Esteve intimamente ligada ao fato de que as mudanças na Justiça representavam uma continuação, indispensável, inclusive, a todas as demais reformas do cardápio neoliberal, que a imprensa também apoiou de maneira entusiástica.
Visto hoje, é curioso constatar que as tentativas de controlar a judicialização da política acabaram por representar um tiro no pé, pois o Judiciário inseriu-se muito mais nas decisões políticas depois da Reforma do que fazia antes. O que é em grande medida produto de uma tempestade perfeita, em parte pela criação desta ampla gama de instrumentos colocados à disposição do STF, em parte pelo giro hermenêutico que revelou o desprestígio crescente do positivismo jurídico, em prol de uma nova via interpretativa que não só dava mais atenção aos princípios, como advogava a eficácia imediata dos direitos fundamentais. Enfim, a compreensão de que a Constituição, como ensinava Luis Roberto Barroso, devia ser vista como um documento jurídico, a ser diretamente exigido nos tribunais, e não apenas um documento político endereçado aos parlamentares. O tempo de entender as declarações de direitos como normas programáticas, letras mortas de pura poesia, havia ficado para trás.
É também significativo como a grita dos parlamentares contra o excessivo poder do Judiciário vem a reboque justamente das leis por eles aprovadas, algumas das quais sob fortes alertas da comunidade jurídica, como a criação das Súmulas Vinculantes, enunciados com poder de lei, e a própria Ficha Limpa, que transferiu razoável poder do eleitor ao juiz. A ausência de qualquer reação congressual à forma como o STF retalhou recentemente a figura do Juiz das Garantias, a pretexto de exercer o controle de constitucionalidade, dá mostras de que a questão está longe de ser bem compreendida pelos políticos.
Grazielle maneja com segurança o instrumental teórico do behaviorismo judicial para discutir as hipóteses dos modelos atitudinal e estratégico, e com argúcia propõe a transposição da abordagem estratégica da tomada de decisões para o modelo de comunicação, enfatizando a permeabilidade à conjuntura que teria sido a principal arma do tribunal nesse caminho. Um caminho não isento de críticas, porém.
Essa imersão da lei aos desejos, como retrata Grazielle, não deixa de influir no próprio corpo de decisões do tribunal, como, por exemplo, na questão do Mensalão, a que ela se refere como o “primeiro ponto da grande mudança de ato com a opinião pública”. Luis Roberto Barroso, durante a sabatina para o cargo de ministro, chegou a dizer que o julgamento do Mensalão havia sido “um ponto fora da curva” na jurisprudência do STF. E não é difícil caracterizá-lo com uma certa inflexão na função contramajoritária do Judiciário, que ainda viria a se agravar profundamente na apreciação inicial das questões da Lava Jato, como o esfacelamento da presunção de inocência, na adesão que manteve a prisão em segundo grau.
Esse mergulho na colheita do anseio popular merece bem a advertência que Rafael Mafei apresenta no prefácio, denominando de “sacrifício da servidão à lei, em benefício da satisfação dos desejos”. A crítica de Mafei aponta as insuficiências para o papel pretendido pelos homens do Direito: “não somos munidos com ferramental que nos permite sequer diagnosticar, com segurança, qual o desejo social sobre certa matéria, que dirá para agir de modo a satisfazê-la”.
A pesquisa de Grazielle é ainda mais relevante porque inédita. Ou, como ela mesmo admitiu, “era preciso explorar o campo, antes de descrever a hipótese”, estruturando-o na própria caminhada. A metodologia tem muito a ver com a trajetória da própria autora que da área de comunicação foi se aproximando da Ciência Política, para, com esse instrumental, mergulhar na Justiça. Trilhando os marcos temporais de sua pesquisa, posso dizer que também exerci esse relativo nomadismo, pois me encontrava em 1988 na redação de um jornal trabalhando com textos sobre a nova Constituição e no começo do século 21, já como membro da Associação Juízes para a Democracia, defendendo propostas para a reforma do Judiciário. Em que pese termos emplacado algumas sugestões, como o fim das sessões secretas, a redução das férias forenses e o instrumento de deslocamento de competência, é inequívoco que a democratização do poder, como bem lembra a autora, não restou um tema de grande prestígio nas discussões do Congresso. De todo o modo, foi justamente o interesse compartilhado nos destinos da Reforma que permitiu que nos encontrássemos e mantivéssemos um contínuo diálogo desde então.
Da Lei aos Desejos: o agendamento estratégico do STF é indispensável a quem quer entender o Judiciário de hoje, seja pela via da política, seja pelo caminho da Comunicação. Mas é importante também para quem é do Direito e pretende se localizar nesse novo mundo, em que pautar a comunicação sobre a decisão é tão importante quanto prolatá-la. Sua pesquisa descortina o caminho tomado pelo STF entre os anos de 1988 e 2004, mas fornece inúmeras pistas para o que viria a acontecer anos depois. A inequívoca mudança de patamar que temos presenciado, todavia, tende a cobrar que ela se debruce sobre o tema mais uma vez, em especial, para traduzir o que as gestões de Alexandre de Moraes, no TSE, e a de Luis Roberto Barroso, no STF, ainda poderão nos revelar sobre essa inter-relação entre Direito, Política e Comunicação.
Aguardo ansioso pela segunda temporada.
Marcelo Semer é Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e escritor. Mestre em Direito Penal e Doutor em Criminologia ambos pela USP. Autor, entre outros, de “Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil” (Ed. Contra Correntes, 2021).