Tapas e beijos: as relações Brasil-China no governo Bolsonaro
Entre 2003 e 2018, os chineses investiram US$ 54 bilhões no Brasil, sendo que 89% para aquisição de empresas já existentes e 11% em novos projetos. Compraram 72 empresas e investiram em 29 projetos novos, sendo 84% nos setores de energia, mineração, petróleo e gás
As relações econômicas Brasil-China começaram a evoluir nos três últimos anos do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e cresceram bastante nos governos petistas de Lula da Silva e Dilma Rousseff, tanto em termos de trocas comerciais como na importação de capitais chineses pelo Brasil, na forma de investimentos diretos e financiamentos.
A Operação Lava Jato facilitou a entrada chinesa no Brasil, ao quebrar as empreiteiras nacionais que açambarcavam as privatizações em nossa infraestrutura.
Nesse contexto, o Brasil fez diversos acordos com a China em 2015, celebrados em Brasília entre Dilma Rousseff (PT) e Li Keqiang, primeiro ministro chinês, que envolveram US$ 53 bilhões em investimentos e US$ 50 bilhões em financiamentos, via o banco estatal ICBC, em obras de infraestrutura como portos, aeroportos, ferrovias, rodovias, habitação e energia. Além de um “fundo bilateral de cooperação”, de US$ 20 bilhões.
Entre 2003 e 2018, os chineses investiram US$ 54 bilhões no Brasil, sendo que 89% para aquisição de empresas já existentes (“brownfield”) e 11% em novos projetos (“greenfield”). Compraram 72 empresas e investiram em 29 projetos novos, sendo 84% nos setores de energia, mineração, petróleo e gás.
Ao final de 2018, a China já tinha investido US$ 69,2 bilhões, incluindo 155 projetos já desenvolvidos ou confirmados. Ademais, havia mais 162 investimentos anunciados no valor de US$ 64,7 bi, totalizando, entre efetivados, confirmados e anunciados, US$ 133,9 bi (CARIELLO, 2019).
Com o impeachment de Dilma Rousseff, ao contrário do que se especulou, os negócios aumentaram. Não por acaso, Michel Temer (MDB) fez duas viagens à China, sendo o primeiro país visitado por ele, e a China consolidou sua exportação de capitais para o Brasil.
Desde 2009, a China é o maior parceiro do Brasil, com o comércio bilateral passando de US$ 3,1 bilhões em 2001 para US$ 98 bi em 2019 e, desde 2015, é o maior investidor direto de capitais no país.
Bolsonaro, a China e as contradições com sua base social
A campanha eleitoral de Bolsonaro foi fortemente anti-China, chegando ao ponto de ofender política e simbolicamente aquele país, ao visitar Taiwan em 2018. Os chineses protestaram moderadamente.
Um tema forte em sua campanha foram as relações exteriores dos governos anteriores quando a China estaria sendo supostamente privilegiada por causa de aproximações ideológicas entre o PT e o Partido Comunista chinês. Além disso, a China estaria “predando” e “comprando” nosso país e ele, como “patriota”, nos defenderia disso.
Mais uma vez, especulou-se, à direita e à esquerda, sobre uma redução nas relações econômicas Brasil-China se Bolsonaro vencesse.
Em resposta às sinalizações negativas de Bolsonaro em relação à China, governantes, empresários e órgãos da mídia chinesa se movimentaram institucionalmente, com lobbies, declarações públicas, reportagens e editoriais “semi-oficiais” na mídia do país asiático.
A retórica patriótica de Bolsonaro é um fake anticomunista, mas serve para justificar o alinhamento à política externa de Donald Trump e aos interesses dos monopólios dos EUA. Só não é um alinhamento totalmente automático justamente por causa dos negócios com a China e países do Oriente Médio.
Por isso, depois da posse, seguindo pressões do grande capital brasileiro do setor primário-exportador, especialmente do agronegócio e da mineração, o novo presidente alterou a sua política em relação à China, passando a ser tutelado pelos setores que dão forte sustentáculo ao seu governo, além dos militares, que também foram afirmativos a favor de boas relações econômicas com a RPC.
Foi o que vimos já em janeiro de 2019 quando, a convite dos chineses, um grupo de parlamentares, principalmente do PSL, foi à China visitar empresas de exportação, especialmente um sistema de segurança de reconhecimento facial digital, gerando conflitos agressivos nas hostes bolsonaristas, a começar por Olavo de Carvalho, considerado guru da família presidencial, que atacou os parlamentares com xingamentos e teve retorno no mesmo baixo nível, além de argumentações em defesa de “relações racionais”.
Com isso, setores do capital primário exportador e seus representantes políticos deixaram claro que não aceitam aventuras ideológicas em detrimento de seus lucros, através da exportação de suas commodities e investimentos diretos chineses na construção e administração de uma infraestrutura privatizada para reduzir seus custos de produção e escoamento de mercadorias. Que é tudo que a China também quer, além da exportação de suas mercadorias de maior valor agregado.
Por isso, Bolsonaro foi o único presidente do Brasil que, no primeiro ano de mandato, esteve mais vezes com um presidente chinês: três encontros, quando foram selados diversos acordos bilaterais. A visita à China foi saudada pelo jornal oficial do PCCh (Diário do Povo) como uma prova da “normalidade das relações sino-brasileiras” e, antes dele, o vice Mourão já tinha sido recebido por Xi Jinping em Pequim, quando, de acordo com o jornal China Daily, declarou que o governo Bolsonaro “atribui grande importância às relações com a China, admira a ideia do Partido Comunista da China exercer o poder para o povo e elogia muito as importantes contribuições da China para o crescimento econômico global”.
No encontro, o presidente brasileiro chegou a pedir aos chineses o favor de investir no leilão das bacias de petróleo que estava em curso, pois nenhuma empresa estrangeira estava interessada e o governo brasileiro precisava dar alguma satisfação ao público. De fato, o leilão acabou sendo um fracasso e a única entrada de capital estrangeiro foi da estatal chinesa CNODC, que fez uma parceria com a Petrobrás.
Além disso, o Brasil recebeu Xi Jinping, sediou uma reunião dos BRICS e indicou para a presidência do banco da instituição (NDB), sediado em Pequim, Marcos Troyjo, que era Secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia do governo Bolsonaro.
Finalmente, o Brasil manteve os acordos multilaterais e bilaterais com a China em diversos setores, inclusive no sensível programa CBERS de cooperação aeroespacial para construção e lançamento de satélites, que lançou o sexto satélite em dezembro de 2019.
As contradições estão presentes até entre os próprios filhos do presidente. Enquanto o deputado Eduardo (PSL) ataca sistematicamente os chineses, seu irmão, senador Flávio (Republicanos), participou de uma delegação à China, tendo elogiado os anfitriões antes, durante e depois da viagem, quando esteve na sede da Huawei e com dirigentes do PCCh e declarou buscar investimentos chineses bilionários no setor de petróleo e gás do Rio de Janeiro.
Como vemos, o grande capital brasileiro, na sua histórica relação subordinada ao capital internacional, está pouco interessado em discursos ideológicos estratosféricos e na origem desses capitais, preferindo fazer negócios e obter os seus lucros particulares, mesmo que prejudiciais a um projeto nacional que possa romper nossa dependência histórica.
Chegando à China para a visita oficial, Jair Bolsonaro disse que estava “num país capitalista”, talvez para se justificar perante sua base anticomunista e neofascista. Foi uma das poucas vezes que Bolsonaro acertou pois, desde as reformas pró mercado iniciadas pelo PCCh e o estado chinês no final dos anos 70, a China vem consolidando o modo de produção capitalista, domesticamente e nas relações internacionais (SOUZA, 2018, ALMEIDA 2019).
Tem hoje o segundo PIB do mundo (FMI) ou, de acordo com os critérios do Banco Mundial, o primeiro. Possui o maior PIB industrial, é o maior exportador do mundo e avança rapidamente em ciência e tecnologia. As relações de produção capitalistas foram se generalizando, acompanhadas de descoletivização do campo, privatizações amplas, estatais a serviço de um projeto nacionalista de mercado, desmonte da seguridade social e, apesar da diminuição da pobreza, uma explosão da desigualdade. Agora é uma potência defensora da chamada globalização e da abertura econômica.
Pandemia: “vírus chinês” x “vírus mental”
Em 2019, Bolsonaro e seu governo evitaram fazer críticas à China e não interpuseram obstáculos a que tudo continuasse mais ou menos como antes.
Mas, com a pandemia da Covid 19, a xenofobia e o anticomunismo anabolizaram os discursos mais reacionários de governantes federais e seus apoiadores, provocando novos atritos e muitas notícias desencontradas sobre aquisição de equipamentos médicos chineses, realimentando especulações e gerando confusões à direita e à esquerda.
A temperatura subiu quando, em março, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara Federal disse que a China era culpada pela pandemia do “vírus chinês” e de ter censurado sua divulgação, como na “ditadura soviética”.
A China respondeu através de seu embaixador no Brasil, Yang Wanming, que, repudiando “veementemente” a fala do deputado, exigiu uma “desculpa ao povo chinês”, acusando-o de ter contraído um “vírus mental” em Miami.
Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores do Brasil, veio em defesa do deputado e exigiu que o embaixador se retratasse, piorando as relações diplomáticas e gerando boatos de prejuízos à economia brasileira.
O momento mais tenso foi quando o presidente Bolsonaro buscou acomodar o conflito, tentando telefonar para o presidente Xi Jinping. Porém, a Embaixada da China negou o telefonema dizendo que Eduardo Bolsonaro tinha “que pedir desculpa ao povo chinês”. Mas a conversa acabou acontecendo uma semana depois e Jair Bolsonaro informou que “os laços de amizade” e comércio tinham se ampliado.
Contudo, depois disso, vários rounds se sucederam. Eduardo Bolsonaro voltou a atacar o “vírus chinês”, sendo contestado pelo Consul da China no Rio de Janeiro, que o chamou de “ingênuo”, “ignorante” e incapaz de “representar o grande país que é o Brasil”. Abraham Weintraub, fez uma piada xenófoba e foi contra-atacado como “racista” com “objetivos indizíveis”.
Em maio, veio a divulgação do vídeo de uma reunião ministerial de 22 de abril, quando o presidente e o ministro Paulo Guedes atacaram a China, mas o embaixador chinês minimizou o fato. Porém, em seguida, o filho nº 03 voltou à carga num vídeo com uma bandeira de Taiwan e o slogan “Viva Taiwan”.
Enfim, não houve retratações nem retaliações econômicas. As respostas dos chineses seguiram sua orientação pragmática pois, para eles, a uma única condição indispensável para manter relações diplomáticas e bons negócios com outros países, é o reconhecimento da RPC como sendo a única China e não o governo de Taiwan, considerada parte do país.
Quem sai ganhando?
O saldo comercial é bem positivo para o Brasil mas, estrategicamente, é desfavorável pois nossa importação é de industrializados e a exportação é de bens primários. A política econômica brasileira durante o chamado neodesenvolvimentismo dos governos petistas, facilitou os interesses chineses, especialmente comerciais. Mas, veio o esgotamento do modelo, o aprofundamento da crise econômica e o enfraquecimento das empresas nacionais, ao tempo em que a China avançava sua estratégica expansionista. Isso permitiu também o aprofundamento da exportação de capitais para cá, justamente quando a China, em abrangente aliança estratégica com a Rússia, despontava como principal potência desafiante dos EUA, expressando uma competição de tipo interimperialista.
Foi um salto de qualidade dos asiáticos, pois a exportação de capitais é uma das características principais de um país imperialista e, no caso, da dependência do Brasil, inclusive dentro dos BRICS.
Pensando num projeto de verdadeira independência nacional e de transição democrática e popular ao socialismo, a implementação de capitais monopolistas estrangeiros, reforça a nossa dependência, diversificando-a, porém, aprofundando-a.
Bolsonaro encontrou relações imperialismo-dependência entre China e Brasil, estrutural e superestruturalmente, estabelecidas e com amplo apoio na classe dominante e nas elites políticas conservadoras, neoliberais, social-liberais e neodesenvolvimentistas, que aderiram à “atração de investimentos de capitais”, como se isso fosse “desenvolvimento”.
Por isso, independentemente dos desejos ideológicos de Bolsonaro, no seu governo os negócios Brasil-China continuam fortes, mesmo com os conflitos na pandemia. No primeiro semestre de 2020, as exportações brasileiras para a China bateram recordes aumentando 11,3% e as agrícolas cresceram 30%. Os investimentos também voltaram a crescer em 2019, após uma reduzida durante a campanha de 2018, quando os chineses, e os estrangeiros em geral, foram mais cautelosos.
Além disso, as relações comerciais não dependem somente do governo federal. O empresariado, diretamente, e os governos estaduais e prefeituras também as fazem e as estão patrocinando, buscando “atrair investimentos”. Exemplo significativo, foram os contatos formais que o “Consórcio dos Estados do Nordeste” tem feito com a embaixada da RPC para negociar investimentos.
No entanto, a questão mais estratégica no momento é a importação pelo Brasil do sistema de Internet 5G. Quem tem a melhor tecnologia e preço é a empresa Huawei, que vem sendo boicotada pelos EUA sob a acusação de estar a serviço da espionagem chinesa. A Anatel realizaria o leilão neste ano mas, apesar de não ter sofrido restrições do Gabinete de Segurança Nacional (GSI), foi adiado para 2021, sob alegação de dificuldades geradas pela pandemia da Covid-19.
Jorge Almeida é professor do Departamento de Ciência Política e do PPG de Ciências Sociais da UFBA
Referências
ALMEIDA, Jorge. As Relações China-Brasil em leitura comparada nos governos de Lula-Dilma, Temer e Bolsonaro. Anais do 43º Encontro Anual da ANPOCS, 2019, Caxambu.
CARIELLO, Túlio. INVESTIMENTOS Chineses no Brasil 2018: O quadro brasileiro em perspectiva global. CEBC – CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA, Rio de Janeiro, 2019.
SOUZA, Renildo. Estado e Capital na China. Salvador, EDUFBA, 2018.